PSICOLOGIA
DO TESTEMUNHO: FALSAS MEMÓRIAS NO PROCESSO PENAL
Nos processos que tentam a
(re)construção do fato criminoso pretérito, podem existir artimanhas do
cérebro, informações armazenadas como verdadeiras, ou induções dos
entrevistadores, de outras pessoas e/ou da mídia que, no entanto, não condizem
com a realidade. Estas são as chamadas falsas memórias, processo que pode ser
agravado, quando da utilização de técnicas por repetição de perguntas, como as
empregadas de forma notória no âmbito criminal.
Falsas memórias consistem em
recordações de situações que, na verdade, nunca ocorreram ou aconteceram de
forma diversa de como lembrado pela vítima/testemunho. A interpretação errada
de um acontecimento também pode desencadear esse processo.
Embora não apresentem uma experiência
direta, as falsas memórias representam a verdade como os indivíduos as
lembram[1]. Podem surgir de duas formas: espontaneamente ou através de uma
sugestão externa.
Além disso, a qualidade da prova pode
estar comprometida também quando da decorrência de lapso temporal exacerbado
entre a coleta dos depoimentos policiais e os testemunhos judiciais,
favorecendo a produção de memórias falsificadas.
A influência do tempo já foi
reconhecida judicialmente como prejudicial à qualidade da prova, como
vemos: “Parte da prova oral colhida em juízo, cinco anos depois,
certamente foi prejudicada pela ação do tempo, que opera o esquecimento dos
fatos e até a inclusão de falsas memórias”[2].
Enxergar, através dos olhos da
testemunha, é um dos desafios comuns ao juiz durante o processo penal. Apesar
desta dificuldade e de todas as possíveis “impurezas”, advindas deste tipo de
prova, não é possível prescindir de sua existência[3]. Isto porque existem
crimes, especialmente os materiais, que dificilmente poderão ser analisados de
outra forma que não pela testemunha. O homicídio é um claro exemplo desta
situação.
Mas, como o juiz poderia utilizar-se
desta experiência da testemunha? A resposta é bastante complexa.
Ao presenciar o fato, certamente, a
testemunha o interpreta, de acordo com sua própria vivência que, na maior parte
das vezes, não é a mesma do juiz. Alexandre Morais da Rosa nos traz uma
possibilidade interessante: “A melhor maneira de julgarmos um processo
crime é imaginar o enredo sem o ato violento ou criminalizado”[4]. É
necessário, portanto, um certo afastamento para consegui-lo[5].
Aqui deixamos bastante evidente que não
se trata apenas de avaliarmos as atuações do órgão acusatório e da
magistratura, mas, necessariamente, de todos eles que terão participação ativa
na (re)construção do fato passado. Portanto, processos que gerem falsas
memórias não dependerão apenas de quem tem a função de acusar e a quem julga,
mas também, daqueles defensores que, em contraditório, lançarão mão das
melhores estratégias para evitar distorções.
O sistema de oitiva de testemunhas,
adotado na legislação brasileira, a partir da reforma processual de 2008, é
semelhante ao cross examination (ou exame direto e cruzado[6]) norte-americano,
já que, em ambos, a acusação e a defesa realizam os seus questionamentos
diretamente às testemunhas. Neste formato, as partes ficam sujeitas ao
contrainterrogatório de seu oponente. Existe, porém, importante diferença: o
processo penal brasileiro não limitou a atuação do juiz, no sentido de somente
presidir o ato, mas também permitiu a ele a faculdade de complementar a
inquirição acerca dos pontos não esclarecidos[7].
O artigo 212 do CPP traz algumas
limitações às perguntas realizadas. Estas não poderão induzir resposta, nem ter
relação com a causa e importar em repetição, sendo o magistrado responsável por
fiscalizar a inquirição[8]. Neste ponto, constatamos importante dificuldade de
nosso regramento legal: inexistem definições do que seriam perguntas que
induzem à resposta.
Estas são questões cruciais a serem
enfrentadas em nossos próximos textos, incluindo a análise das estratégias
atualmente utilizadas nas legislações comparadas.
Por enquanto, precisamos saber que
falsas memórias existem, possuem repercussão crucial (inclusive judicial, como
visto) e são de difícil identificação, pois quem relata crê verdadeiramente em
sua versão.
Desta forma, será necessária profunda
análise acerca dos métodos/técnicas recomendados na melhor literatura para
tentar prevenir a formação de falsas memórias. Apenas desta forma, talvez
poderemos efetivamente impedir erros judiciais traduzidos em insuportáveis
privações de liberdade.
Gustavo Noronha de Ávila é
Doutor e Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS. Professor do Mestrado em
Direito do Unicesumar, onde ministra a disciplina “Psicologia do Testemunho e
Efetivação de Direitos Humanos”. Professor de Direito Penal e Criminologia das
Faculdades de Direito da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e da
Unicesumar. Também é docente nos cursos de especialização em Direito Penal e
Processual Penal da Universidade Estadual de Maringá, Unicesumar, Instituto
Paranaense de Ensino e do Centro Universitário Ritter dos Reis (Porto
Alegre/RS). Autor da obra “Falsas Memórias e Sistema Penal: A Prova Testemunhal
em Xeque” (2013), e co-autor, com Vera M. Guilherme, de “Abolicionismos Penais”
(2015), ambas publicadas pela Editora Lumen Juris (RJ).
REFERÊNCIAS
[1]
BARBOSA, Cláudia. Estudo experimental sobre emoção e falsas memórias. Porto
Alegre: PUCRS, 2002. Dissertação (Mestrado em Psicologia), Faculdade de
Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2002, p. 26.
[2]
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Apelação criminal 70020430146/RS.
Julgamento em: 29/11/2008. Diário de Justiça do Rio Grande do Sul, em
08/11/2007. Acesso em: 15 nov. 2008. Disponível em: . Acesso em: 3 fev. 2014.
[3]
CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o processo penal. Campinas: Bookseller,
2004, v. 1, p. 292.
[4]
MORAIS DA ROSA, Alexandre. Quando se fala de juiz no novo CPP de que juiz se
fala? In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; CARVALHO, Luis Gustavo
Grandinetti Castanho de. O novo processo penal à luz da Constituição (Análise
crítica do Projeto de Lei nº. 156/2009, do Senado Federal). Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2010, p. 128.
[5]
Ibidem, p. 128.
[6]
GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Provas. In: MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis
(Coord.). As reformas no processo penal: as novas Leis de 2008 e os projetos de
reforma. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 284.
[7]
DI GESU, Cristina Carla. Prova penal e falsas memórias. Dissertação (Mestrado
em Ciências Criminais) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: 2008, p. 102.
[8]
GIACOMOLLI, Nereu José. Reformas (?) do processo penal – Considerações
críticas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 57.