O Direito de Vizinhança no
Novo Código Civil
1. Introdução
O direito de vizinhança é o ramo do direito civil que se
ocupa dos conflitos de interesses causados pelas recíprocas interferências
entre propriedades imóveis próximas. Não há necessidade, como se sabe, de serem
as propriedades imóveis contíguas; basta serem próximas para que possa ter
lugar a interferência, que será, então, coibida pelas normas protetoras dos
direitos de vizinhança.
Portanto, trata-se de normas que tendem a compor, a
satisfazer os conflitos entre propriedades opostas com o objetivo de tentar
definir regras básicas da situação de vizinhança. Busca-se, como disse, a
satisfação de interesses de proprietários opostos.
2. Características do direito de vizinhança
São características dos direitos de vizinhança, em primeiro
lugar, regular situações entre proprietários, estabelecendo, nesse sentido,
limitações, restrições ao uso da propriedade, ou seja, trata-se aqui de deveres
criados pela lei.
Uma outra característica do direito de vizinhança é que
nesse tema não se busca criar vantagens para os proprietários, para qualquer
prédio, ao contrário, visa-se tão-somente a evitar prejuízos. Daí essas
restrições serem denominadas pela doutrina restrições
defensivas. As restrições, no direito civil, podem decorrer também da
autonomia privada. Como exemplo de restrição negocial, nós temos as servidões
que, ao contrário do direito de vizinhança, visam a conferir justamente maiores
Mais uma característica do direito de vizinhança: procura-se, mediante as normas que compõem as relações de vizinhança, coibir as interferências indevidas nos imóveis vizinhos. Hoje em dia é adotado pela doutrina o termo interferência, que substituiu o termo anterior - imissão - por se entender que este último possui um significado algo material, concreto, palpável. Por isso, com a evolução do direito de vizinhança, o termo técnico que significa o incômodo, o distúrbio indesejado passou a ser interferência, para se ampliar a possibilidade de defesa do proprietário diante das ingerências não corpóreas, não palpáveis.vantagens para os proprietários, para os prédios dominantes. A servidão, portanto, se distingue do direito de vizinhança, seja pela fonte, seja pela finalidade. Pela fonte, porque as servidões têm sempre fonte convencional ou contratual; e pela finalidade, porque as servidões visam à criação de vantagem para a propriedade dominante, enquanto que a vizinhança surge sempre da lei, por meio de normas imperativas que visam a evitar prejuízos.
Por outro lado, essas interferências devem ser sempre
indiretas ou mediatas, decorrentes, portanto, da própria utilização do imóvel
vizinho, das proximidades. Nunca deverá ser uma interferência direta ou com
esse fim; caso contrário, não se está em sede de direito de vizinhança, mas sim
de ato ilícito. Se, por exemplo, o particular atira uma pedra em imóvel
vizinho, esta situação independe das regras de vizinhança para a sua
composição, pois se trata mesmo de ato ilícito e será sancionado como tal. Por
outro lado, noutro exemplo, se em exploração de uma pedreira, voam fragmentos
para a propriedade próxima, aí sim, inserem-se as normas do direito de
vizinhança.
O tema liga-se diretamente à função social da propriedade,
de índole constitucional, que permeia toda a estrutura do direito de
propriedade.
Hoje em dia, já é quase pacífico que a propriedade tem – ao
lado do seu aspecto estrutural,
formado por seus elementos econômico e jurídico (elemento econômico, ou
interno, é a senhoria, a possibilidade de usar, fruir e dispor e o elemento
jurídico, ou externo, é a possibilidade de repelir as ingerências alheias) – um
aspecto funcional, por força de
ditame constitucional, que deve permear os aspectos econômicos e jurídicos do
instituto.
O fenômeno da urbanização, do desenvolvimento das cidades,
torna também mais e mais vasto o campo de incidência dos conflitos de
vizinhança, sobretudo em edifícios de apartamentos, os condomínios
regulamentados pela Lei 4.591/64 e pelo novo Código Civil. A esse propósito,
aliás, o Código de 2002, em passagem que ainda não mereceu maior atenção da
doutrina, erigiu como dever do condômino “dar às suas partes a mesma destinação
que tem a edificação, e não as utilizar de maneira prejudicial ao sossego,
salubridade e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes” (artigo 1.336,
IV).
3. Parte
geral do direito de vizinhança
Vamos abordar aqui, em primeiro lugar, o que se denomina de
parte geral dos direitos de vizinhança, que são as normas que vão definir a
possibilidade de uso da propriedade, os limites a esse uso e quais as
interferências que serão coibidas.
Nesse primeiro momento, vamos procurar definir quais sejam
essas interferências que devem ser tolhidas, reprimidas, dentro desse aspecto
geral, demarcando a diferença para com as atividades que são toleradas,
admitidas, para depois, em um segundo momento, ingressarmos nas regras
especiais dos direitos de vizinhança, destacando, desde já, que o novo Código
consagrou, em grandes proporções, o que vem sendo desenvolvido pela
jurisprudência e também a tese do Prof. San Tiago Dantas, que é a origem e o
melhor trabalho de vizinhança em nosso território, em nossa literatura jurídica
e que ganhou larga aplicação, pacificando verdadeiramente os tribunais.
Costuma-se dizer que interferências sempre haverá; o
simples fato do convívio entre propriedades próximas já é, por si só, um motivo
de acirramento de ânimos e, portanto, costuma-se até definir a relação de
vizinhança como uma relação de confronto e não de cooperação, onde a satisfação
do interesse de um proprietário implica restrições ao interesse do proprietário
vizinho. Então, se interferências sempre haverá, o que resta é distinguir quais
são as consideradas lícitas e que poderão ser praticadas, daquelas que, ao
contrário, não têm esse caráter e devem ser sancionadas, reprimidas pelo
ordenamento jurídico.
San Tiago Dantas já afirmava, na sua tese de cátedra, que o
direito de vizinhança não tolera soluções unilaterais, sob pena de se aniquilar
o direito de uma das partes - ou se tolhe a atividade e se priva o titular da
propriedade de seu uso, da sua utilização, que consiste em elemento integrante
da senhoria, do conteúdo econômico da propriedade, ou, por outro lado, caso se
permita esse uso, pode-se estar afetando diretamente a propriedade próxima, que
terá, já por sua vez, a sua utilização comprometida pela interferência do
vizinho. Logo, em tema de direito de vizinhança, a solução deve ser,
preferencialmente, uma solução bilateral.
Voltando à questão central: quais interferências devem ser
coibidas? Esse aspecto da parte geral do direito de vizinhança estava previsto
no art. 554 do Código Civil de 1916, dispositivo que se constitui em uma das
poucas cláusulas gerais do antigo Código Civil. Esse artigo, de fato, fixa
verdadeira cláusula geral cujo conteúdo, como se sabe, amolda-se a permitir a
evolução do direito e a construção de critérios seguros em cada etapa da
evolução sócio-econômica que se apresenta em nosso país. Dita cláusula geral,
de certa forma, é preservada na sua essência, no novo Código Civil, mas ela é
desdobrada em três dispositivos: vale dizer, o artigo 554 do Código de 1916 desdobra-se, portanto, nos
artigos 1277, 1278 e 1279 do Código de 2002
e, nesse sentido, na busca de se distinguir quais são as interferências que
devam ser coibidas daquelas que devem ser permitidas e toleradas, é que foram
historicamente surgindo as teorias do direito de vizinhança. Vejamos as
principais delas.
3.1 Principais teorias do direito devizinhança
A primeira teoria que se propôs a cuidar da questão foi a
teoria de Spangenberg, romanista alemão que em 1826, com base na experiência do
Direito Romano, sustentava a vedação das chamadas imissões corpóreas, as que eram palpáveis, portanto. Permitia-se ao
proprietário vizinho qualquer atividade, contanto que o incômodo não fosse
causado por algo de material, e nessa teoria, como proibição à imissão
corpórea, se inseriam a água, a fumaça e a poeira, consideradas interferências
corpóreas e nocivas à propriedade.
A essa teoria opôs-se a crítica de que, por apenas alcançar
as imissões corpóreas, excluía os rumores, os barulhos e os maus cheiros, que
freqüentemente interferem na propriedade vizinha. Essa tese da imissão material
acabou sendo completamente refutada, já no século XIX, pela falta de um
critério seguro para se estabelecer a distinção entre as imissões corpóreas e
as incorpóreas.
A segunda teoria que se propôs a solucionar a questão foi a
teoria do uso normal, de Ihering, em
1862. Ihering procurava diferenciar os casos em que a interferência devesse ser
suportada, daqueles nos quais ela devesse ser repelida. Para isso propôs,
então, um standard do uso normal da
propriedade, e para se aferir esse uso normal era necessário perquirir os
aspectos ativo e passivo do uso da propriedade.
Sob o aspecto ativo, é necessário saber se a utilização da
propriedade está dentro dos parâmetros já consagrados em determinada região.
Por outro lado, sob o aspecto passivo, cabe avaliar a receptividade abstrata do
homem normal, do homem médio, o que
Ihering denominou de grau médio de
tolerabilidade, naquela determinada época e localidade, no sentido de que
esses standards são sempre relativos,
flexíveis.
Tal teoria, consagrada pelo Código Civil Alemão (BGB), tem
maior relevo entre nós, porque aplicada em nosso ordenamento desde o Código de
1916 (que, no particular, se inspirou no BGB), sendo mantida pelo Código de
2002. Aliás, importa salientar que o novo Código, ainda sob a influência da
teoria em comento, alterou a denominação da seção destinada aos direitos de
vizinhança, abandonando a expressão uso
nocivo da propriedade para adotar a expressão uso anormal da propriedade.
Como desdobramento dessa teoria de Ihering, surge a subteoria do desequilíbrio, de Ripert,
em 1902, que se assemelhava, por seu turno, à subteoria da pré-ocupação, de Demolombe. Para Ripert, o conflito de
vizinhança estaria baseado em uma ruptura do equilíbrio que vigorasse em uma
dada região. Esse rompimento seria causado pelo proprietário ou possuidor que
iniciasse uma atividade não ajustada aos parâmetros das atividades normalmente
desenvolvidas naquela localidade. Sobre ele, então, que rompia aquele
equilíbrio, pesava a correspondente responsabilidade e, para se saber quando
isto acontecia, Georges Ripert lançava mão do standard do uso normal,
e a pré-ocupação é que definia o grau de normalidade. O que era normal? Normal
era a utilização que se fazia naquela região, naquela localidade, naquela
vizinhança. Essa teoria se constituiu em verdadeira arma da propriedade
doméstica contra o surto de industrialização daquele momento, na medida em que
as fábricas, naquelas circunstâncias, possuíam um alto grau de interferência
nas propriedades vizinhas.
A terceira teoria que surge é a teoria da necessidade, de Bonfante. Ela surge justamente em
contraposição à teoria do uso normal.
O romanista italiano afirmava não ser correto concluir que o uso anormal
deveria ser sempre coibido, pois há interesse social no desenvolvimento das
indústrias, no progresso crescente.
Daí essa teoria, que nasce em contraposição
à do uso normal, ter sido considerada a defesa da propriedade industrial, numa
época de industrialização crescente. Uma fábrica, mesmo que causasse, com sua
enorme quantidade de fumaça, interferência indevida nas propriedades vizinhas,
poderia ter a manutenção da sua atividade garantida por força do que Bonfante
denominava necessidade geral do povo,
e com base nessa necessidade, o juiz deveria manter essas atividades. Diferente
do que ocorreria, por exemplo, com uma lareira, pois se essa provocasse uma fumaça
anormal, como ali só se estaria diante de uma situação de interesses
particulares, a atividade deveria cessar.
Finalmente, entre nós, quem melhor sistematizou o assunto
foi o Professor San Tiago Dantas. A sua tese de cátedra, apresentada à
Faculdade Nacional de Direito em 1939, denominada “O Conflito de Vizinhança e
Sua Composição”, é uma obra clássica, do conhecimento de todos. Este grande
civilista, em sua teoria que depois denominou de teoria mista, propôs uma espécie de aliança, de combinação entre os
principais subsídios das teorias de Ihering e de Bonfante.
A teoria mista de
San Tiago, portanto, se baseia em dois princípios fundamentais. O primeiro é o
da coexistência dos direitos, e se
destina à situação onde vigore o interesse particular, ou seja, a orientar a
vizinhança comum. O outro princípio é o da supremacia
do interesse público. Esse segundo princípio governará a vizinhança
industrial. Na hipótese de conflito, como deve atuar o magistrado na
investigação de uso nocivo? Deve, em primeiro lugar, perquirir se o uso daquela
propriedade que está em jogo é normal ou não. Se o uso for normal, a partir dos
standards de Ihering, dos aspectos
passivo e ativo do uso normal, ele produz interferências lícitas e o ato é
considerado lícito e, como tal, deve continuar. Se o uso, no entanto, é
considerado anormal dentro daqueles standards
a gerar, então, incômodos por demais excessivos, deve-se pesquisar para se
saber se tal atividade é necessária socialmente ou se é, ao contrário,
desnecessária. Se a supremacia do interesse público legitimar esse uso
excepcional, o juiz manterá os incômodos inevitáveis, ordenando, no entanto,
que se faça cabal indenização ao prejudicado, correspondente, aqui, a uma
espécie de expropriação de direito privado.
O juiz deve também, já dizia San Tiago, na medida do
possível, buscar compatibilizar os interesses, ou seja, sempre que possível, o
magistrado deveria (com base nas técnicas que vão se desenvolvendo para
contornar os distúrbios causados por uma dada atividade) coibir aquela
interferência mediante o emprego de filtros, de vedações acústicas, de
equipamentos cada vez mais modernos que a impeçam. Esse deve ser o caminho
prioritário a ser tomado. Se tal não for possível, todavia, passa-se à
permissão da atividade com a indenização cabal; ou, se o interesse público não
legitimar o uso excepcional da propriedade naquela região, é de mau uso que se
trata e o juiz, então, irá mandar cessar a atividade.
3.2- A disciplina
no Código de 2002: inovações e o conteúdo da cláusula geral
Essa
teoria foi amplamente consagrada, seja em doutrina, seja pela jurisprudência de
maneira geral, e agora foi incorporada expressamente no novo Código Civil,
ganhando esse reconhecimento na redação do eminente mestre Prof. Ebert Chamoun,
que foi o relator do anteprojeto nesse tema de direitos reais e vizinhança.
A leitura dos artigos 1.277 e 1.278 revela
a adoção dos ensinamentos do Mestre San Tiago Dantas:
Art. 1.277. O proprietário ou o possuidor
de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à
segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização
de propriedade vizinha. Parágrafo único: Proíbem-se as interferências
considerando-se a natureza da utilização, a localização do prédio, atendidas as
normas que distribuem as edificações em zonas, e os limites ordinários de
tolerância dos moradores da vizinhança.
“Art. 1.278. O direito a que se refere o artigo antecedente não
prevalece quando as interferência forem justificadas por interesse público,
caso em que o proprietário ou o possuidor, causador delas, pagará ao vizinho
indenização cabal”.
A leitura atenta desses dois dispositivos parece revelar
que o artigo 1.277 regula aquilo que San Tiago denominou de interesse privado,
interesse particular, ou seja, de estatuto
da vizinhança comum, estando nitidamente presente em seu teor a teoria do uso normal, de Ihering. Por
seu turno, o artigo 1.278 cuida da vizinhança industrial, em que prevalece o
interesse público, com base na teoria da
necessidade, de Bonfante.
Também o artigo 1.279 (cujo teor, no entanto, se deve muito
mais ao trabalho da jurisprudência) tem a sua origem na obra de San Tiago
Dantas. O referido dispositivo legal dispõe: “Ainda que por decisão judicial
devam ser toleradas as interferências, poderá o vizinho exigir a sua redução,
ou eliminação, quando estas se tornarem possíveis”. Note-se que, em sendo
possível, sempre devem ser tomadas as medidas necessárias para reduzir ou mesmo
eliminar as interferências. Se, quando a questão vier colocada, for possível ao
magistrado lançar mão desses artifícios, isso deve ser feito. Se não, sem
embargo da determinação para que as interferências prevaleçam, se, em um
momento futuro for possível, pelo desenvolvimento tecnológico, o emprego dessas
técnicas, aí sim, não obstante aquela determinação judicial, o proprietário, ou
possuidor, terá direito à aplicação desses mecanismos de redução.
Cumpre destacar, outrossim, um outro aspecto que me parece
fundamental: o conteúdo da cláusula geral de vizinhança, à luz do texto do
artigo 1.277 do novo Código. Como bem destacado pelo Professor Gustavo
Tepedino, o preenchimento desse conteúdo há de ser feito sob os ditames da
carga axiológica constitucional. De fato, o magistrado deverá perquirir a
função social, o atendimento ao meio ambiente, a dignidade da pessoa humana,
enfim todos os valores que são carreados pela Constituição, para que verifique
se, naquele determinado caso, o exercício é nocivo, se provoca interferências,
melhor dizendo, que devam ser coibidas. Já o parágrafo único contém em seu teor
diretrizes para dar algum conteúdo à cláusula geral, como visto. Louvável a
orientação. Porém, a integração somente se completa mediante o recurso à fonte
constitucional.
Para finalizar a abordagem acerca da parte geral da vizinhança,
ponhamse em destaque as inovações desse conjunto de artigos, quando comparados
com o Código anterior. Os artigos 1.278 e 1.279 do Código Civil de 2002, já
vistos, não encontram correspondentes no Código Civil de 1916, e quando do
cotejo do artigo 1.277 com o artigo 554 do Código de 1916, seu correspondente
no Direito anterior, merecem ser destacadas três alterações, além da novidade
trazida no parágrafo único.
Em primeiro lugar, a substituição de “inquilino” por
“possuidor”. O Código anterior afirmava “o proprietário
ou inquilino de um prédio tem direito
de impedir que o mau uso da propriedade vizinha(...)”. Em redação bastante
melhorada, contempla-se agora, também como gênero, o “possuidor”, porque o que
importa é a posse, a relação direta com o imóvel, seja proprietário,
usufrutuário, locatário, comodatário, o que for. Esta novidade reflete a
exegese que já vigorava em relação ao alcance do artigo 554 do Código de 1916.
A segunda alteração de destaque é a utilização do termo
“interferências”. O texto fala em “fazer cessar as interferências prejudiciais
à saúde, à segurança, ao sossego”, o que reflete a orientação mais técnica da
doutrina e da jurisprudência, como visto anteriormente.
O terceiro aspecto que merece menção está contido na parte
final do caput do artigo 1.277. É a
afirmação de que tais interferências devem ser “provocadas pela utilização de
propriedade vizinha”. Quer dizer, trata-se da interferência mediata, a qual,
como já averbamos ao tratar das características do direito de vizinhança, não
se confunde com eventuais interferências diretas, dolosas, deliberadamente
praticadas, sem relação com a utilização da propriedade vizinha. Repita-se o
exemplo da pedra que é intencionalmente lançada no imóvel vizinho, quebrando
uma vidraça. Isto é um ato ilícito, e o dano dele resultante será tratado como
tal.
Assim terminamos essas considerações iniciais sobre a parte
geral do direito de vizinhança.
4. Parte
especial do direito de vizinhança
Vamos adentrar agora nas observações acerca da parte especial
do direito de vizinhança, composto por regras específicas que no Código Civil
de 2002 dizem respeito aos seguintes temas: árvores limítrofes, passagem
forçada, passagem de cabos e tubulações (que é uma novidade do Código), águas
comuns, linha divisória e direito de tapagem, direito de construir e auxílio
mútuo.
4.1 Árvores
limítrofes
Deste tema tratam os
artigos 1.282 a 1.284 do Código de 2002. O novo Código em praticamente nada
alterou a disciplina anterior, ou seja, continua valendo a presunção relativa, iuris tantum, de co-propriedade ou
condomínio das árvores cujos troncos se encontrem nos limites de dois imóveis.
Além disso, as duas regras clássicas em termos de árvores
limítrofes continuam contempladas, tanto a de cortar os ramos e raízes que invadem
a propriedade vizinha, como a relativa à titularidade, a propriedade dos frutos
daquelas árvores. Nesse sentido se afirma nos artigos 1.283 e 1.284 que os
ramos pertencem ao dono, porém, o proprietário ou possuidor do imóvel vizinho,
onde se deitam ramos ou raízes, pode podar ou cortar a árvore. É claro que essa
poda observará também, necessariamente, as normas ambientais e administrativas
aplicáveis à espécie.
Em relação aos frutos, enquanto na árvore estiverem,
pertencerão ao proprietário onde ela deite raízes; porém, se caírem
naturalmente, pertencerão ao proprietário do solo onde caírem. Se o
proprietário ou possuidor do imóvel vizinho de alguma forma interferir para que
os frutos caiam, e essa queda se consumar de forma não natural, ele não tem direito
a esses frutos. Aqui, não há qualquer observação de relevância a ser feita
nesse tema.
4.2 Passagem
forçada
O segundo instituto que merece a nossa atenção é o da
passagem forçada, prevista no Código de 2002 em um único artigo, o 1.285. O
novo Código reproduz, nesse tema, a regra que permite ao proprietário encravado
pela propriedade vizinha o acesso às vias públicas de maneira a preservar os
contornos desse instituto. Essa passagem forçada constitui, como assinalam Caio
Mário da Silva Pereira e o saudoso Darci Bessone, uma verdadeira desapropriação
de direito privado.
Há vários aspectos dignos de nota, quanto à passagem
forçada.
Em primeiro lugar, ela não se confunde com a servidão de
passagem, que como se sabe, é resultante de consenso entre as partes, portanto,
tem sua fonte em convenção e existe para melhorar o acesso, para se criar uma
vantagem, um benefício para o imóvel, para o prédio dominante. Enquanto que a
passagem forçada é matéria de direito de vizinhança, com fonte na lei e para
evitar prejuízo, como foi dito anteriormente, com fundamento no princípio da
solidariedade social.
O artigo 1.285, logo no caput,
fixa um requisito importantíssimo ao instituto da passagem forçada: O dono do
prédio que não tiver acesso à via pública, nascente ou porto.... Portanto,
trata-se do imóvel encravado, sem saída. Há um amplo debate nos tribunais
pátrios, a fim de se apurar qual a solução correta em hipóteses muito próximas
à do encravamento, quando há alguma passagem, mas essa é precária, difícil,
quase inacessível, se nessas hipóteses se considera ou não viável a utilização
da passagem forçada. Majoritariamente, doutrina e jurisprudência se inclinaram
pela resposta negativa, considerando que a passagem forçada impõe uma restrição
à propriedade privada do vizinho, somente na medida em que o prédio não
encontre qualquer possibilidade de saída é que ele terá direito a essa
passagem. Só, portanto, quando literalmente encravada é que terá direito à
passagem forçada, é o entendimento que prevalece. O juiz, então, diante dessa
hipótese, vai fixar o rumo da passagem, de maneira a tentar minimizar o
sofrimento e o ônus do prédio que tem de suportar a passagem do vizinho; e,
assim que cessar essa situação de encravado, seja pela abertura de novas vias,
seja pela aquisição de novas terras, cessa para o vizinho o dever de franquear
a passagem.
O artigo 1.285, além disso, prevê uma indenização cabal, ou
seja, tratase de direito de vizinhança oneroso. A onerosidade se faz presente
na indenização cabal.
Dentre as novidades trazidas no bojo do art. 1.285,
destaca-se a do § 1º, que cuida da hipótese onde o imóvel encravado possa
alcançar a via pública por várias propriedades confinantes há várias
possibilidades de acesso à via pública. Então, a regra é que sofrerá o
constrangimento o vizinho cujo imóvel mais natural e facilmente se prestar à
passagem. Como se vê, o novo Código estabelece regra de importância prática
para a definição de qual será o imóvel que suportará a passagem forçada. Mas
vale lembrar que este já era o entendimento consolidado da jurisprudência nesse
assunto. As inovações contidas nos demais parágrafos do art. 1.285 não oferecem
qualquer dificuldade para o intérprete, razão pela qual nos absteremos de as
analisar nesta sede.
Finalizando este tópico, para não extrapolar o tempo que me
foi concedido, importa registrar que alguns dispositivos que eram controversos
no Código Civil de 1916 não encontraram paralelo no Código Civil de 2002, como
os antigos artigos 561 e 562, que se dizia estarem erradamente posicionados,
insertos entre as disposições referentes à passagem forçada quando, na verdade,
se tratava de servidão.
4.3 Passagem
de cabos e tubulações
Chegamos, então, ao terceiro instituto específico, que é a
passagem de cabos e tubulações. Cuida-se, aqui, de uma novidade, uma inovação
do Código de 2002. São dois artigos que procuram estabelecer normas diante das
novas necessidades sociais da população, normas essas que se assemelham, na
maioria dos seus contornos, ao instituto da passagem forçada, que acabamos de
ver. Teceremos brevíssimas considerações acerca de sua disciplina legal.
Em
primeiro lugar, trata-se de direito de vizinhança oneroso, também. O próprio caput do artigo 1.286 do Código se
inicia estabelecendo a onerosidade, pela fórmula mediante recebimento de
indenização que atenda também à desvalorização da área remanescente.
Em segundo, pode-se concluir que terá lugar a passagem de
cabos e tubulações somente quando indispensável. É o que se depreende da parte
final do caput desse mesmo artigo
1.286, que dispõe o seguinte: “Mediante recebimento de indenização que atenda,
também, à desvalorização da área remanescente, o proprietário é obrigado a
tolerar a passagem, através de seu imóvel, de cabos, tubulações e outros
condutos subterrâneos de serviços de utilidade pública, em proveito de
proprietários vizinhos, quando de outro
modo for impossível ou excessivamente onerosa” (grifou-se).
Além disso, vai-se procurar estabelecer a passagem de forma
menos gravosa à propriedade prejudicada, nos termos do parágrafo único do
1.286, que guarda coerência com a linha traçada pelo Código em todas as
passagens acerca da situação de vizinhança: o enfrentamento bilateral dos
problemas, a que nos referimos anteriormente. Por fim, se houver riscos
potenciais, ou seja, se a passagem dos cabos ou tubulações trouxer riscos (como
é o caso das tubulações de gás e dos cabos de energia elétrica), pode-se
exigir, a teor do artigo 1.287, que também é novidade, a realização de obras de
segurança.
4.4 Águas
comuns
O Código, em seqüência, passa a disciplinar o instituto das
águas comuns, e o faz entre os artigos 1.288 e 1.296. São muitas regras que o
novo Código enuncia. Vamos tentar simplificá-las. A rigor, essas regras
correspondem às contidas nos artigos 563 a 568 do Código Civil de 1916, os
quais, no entendimento que prevalecia, haviam sido revogados pelo Código de
Águas (Decreto nº 24.643, de 1934), que fixava a disciplina das águas comuns
sem maiores alterações em comparação com o texto do Código de 1916.
Aqui, uma vez mais, a matéria não muda substancialmente o
estado anterior do direito. O que há são algumas novidades, como ocorre
sobretudo na regulamentação do aqueduto, nos artigos 1.293 a 1.296, e nas
modificações trazidas nas regras gerais dos artigos 1.288 e 1.289.
A parte final do artigo 1.288 traz uma novidade, seguindo a
ratio de buscar um tratamento
bilateral dos direitos de vizinhança. Desde o regramento anterior já se
dispunha que o dono do prédio inferior é obrigado a receber as águas que correm
naturalmente para o seu imóvel. Noutras palavras, o proprietário a jusante é
obrigado a receber as águas que correm do proprietário a montante, de maneira
natural. Acrescentouse, ao final do artigo 1.288, que, assim como a propriedade
inferior é obrigada a receber as águas que naturalmente correm da superior, o
proprietário, ou o possuidor – como bem destaca o Código de 2002 –, do prédio
superior, por seu turno, não pode agravar, mediante a execução de obras, a
condição natural e anterior do prédio inferior.
O artigo 1.289 garante o direito de receber indenização
pelas águas que correrem do prédio a montante quando nele cheguem
artificialmente, ou quando aí forem colhidas. Aqui, a regra é diferente porque
se trata de nascentes artificiais, então se fixa aqui a onerosidade, ou seja,
aquele que é obrigado a suportar essas águas tem o direito à indenização,
sempre que o outro não puder desviá-las. O parágrafo único afirma que, quanto à
essa indenização, vai se abater o eventual benefício que aquela água venha por
eventualidade a conceder ao prédio inferior.
4.5
Linha divisória e direito detapagem
O tema é extenso e controverso; vamos tentar suscitar suas
diretrizes básicas.
Se há dúvida quanto ao delineamento da linha divisória,
faz-se a busca de títulos de propriedade para determinar os lindes, os limites
entre os prédios. Se não for possível, com base nesses títulos de propriedade,
fixar-se a linha divisória, demarcando-se as fronteiras entre os dois prédios,
como prevê o art. 1.297, lança-se mão dos critérios previstos no artigo 1.298.
O primeiro critério é o da comprovação da posse justa, que,
de mais a mais, já era consagrada no sistema anterior. Não provada a posse de
nenhum dos dois disputantes quanto aos limites ou, ao contrário, provada a composse,
ou seja, não sendo possível se definir a questão com base na posse, lança-se
mão de um segundo critério que é a novidade: a repartição em partes iguais. O
Código anterior falava em repartição proporcional, o que suscitava os maiores
problemas em encontrar-se o mensurador desta proporcionalidade. Seria
proporcional às respectivas áreas dos imóveis? Proporcional ao número de
vizinhos que estão interessados naquele pedaço de terra? Então, diante dessa
ampla controvérsia que vigorava nessa matéria, vem o novo Código e simplifica,
ou tenta simplificar, estabelecendo a divisão em partes iguais, restaurando
enfim o que já constava do próprio Projeto de Clóvis Beviláqua, que deu origem
ao Código de 1916.
O terceiro critério, também já consagrado, é aplicado na
hipótese de não ser viável essa divisão em partes iguais, por não ser cômoda.
Se assim for, o juiz irá determinar a adjudicação da propriedade a um dos
imóveis – e é dada liberdade a ele para escolher, a lei não define parâmetros a
tal determinação, indenizando assim o proprietário vizinho.
4.6 Direito
de construir
O direito de construir fixa, no artigo 1.299, como regra
geral, a possibilidade de o proprietário levantar a construção que lhe
aprouver. Em princípio, ele constrói como quiser, desde que respeitadas as
normas do direito de vizinhança e também os regulamentos administrativos,
normalmente emitidos pelo Poder Público Municipal no controle de zoneamento e
de definição de utilização daquela propriedade imóvel.
Além dessa liberdade de construir, tolhida por esses dois
aspectos, seja pela vizinhança, seja pelo Direito Administrativo, pelas normas
sobretudo municipais atinentes a gabaritos, a recuos etc, há algumas regras
específicas, também no Código Civil. A primeira delas é a das distâncias legais. O novo Código
aumentou a distância mínima para a construção de edificações em relação aos
limites entre imóveis rurais - era de um metro e meio no Código de 1916 e
passou a ser de três metros no Código de 2002 (artigo 1.303). Portanto, hoje
são três metros até o limite do terreno para erguer a construção rural.
A contrario sensu,
como já se interpretava, o proprietário pode construir no seu imóvel urbano até
o limite da divisória, mas a lei impede a abertura de janelas a menos de um
metro e meio de terreno vizinho. Isso se mantém no novo Código,
expressamente (artigo 1.301); eis outra
regra específica.
Os parágrafos do artigo 1.301, por seu
turno, veiculam grandes novidades.
Dispõe o parágrafo primeiro: As janelas cuja visão não
incida sobre a linha divisória, bem como as perpendiculares, não poderão ser
abertas a menos de setenta e cinco centímetros”. Diminui-se pela metade a
disposição do caput. Isso é uma
novidade, contrariando até um entendimento sumulado pelo Supremo Tribunal
Federal, que não distingue a vista oblíqua da direta, na abertura de janelas ou
afins, naquela proibição de um metro e meio.
O parágrafo segundo também apresenta uma outra novidade de
monta, que é estabelecer-se para as aberturas menores, que não são tecnicamente
consideradas janelas (ou seja, medem menos de dez por vinte centímetros), que a
permissão para a sua abertura está condicionada a que estas aberturas estejam a
mais de dois metros de altura, para se evitar que se devasse o prédio vizinho,
que se rompa a privacidade. No sistema anterior não havia esse requisito de
altura, que, aliás, foi de inspiração do Código Civil Italiano.
Concluindo, o artigo 1.300 aduz outra regra específica, no
sentido de que não se pode despejar águas diretamente sobre o vizinho. É uma
fórmula mais genérica, melhorando-se a redação da disposição legal em relação à
anterior correspondente. A depender das circunstâncias, poderá ser necessário o
uso de calhas ou de qualquer mecanismo congênere a fim de evitar tal
transtorno.
4.7 Auxílio
mútuo
Por fim, cabe breve referência ao instituto do auxílio
mútuo ou direito de ingresso na propriedade alheia que está previsto no artigo
1.313 do novo Código, apresentando os requisitos seguintes: deve ser
temporário; deve se dar mediante prévio aviso; e deve ser indispensável o
ingresso na propriedade vizinha.
Obviamente, se esse ingresso gerar dano ao
vizinho, há que se fazer acompanhar da devida reparação. Essas eram as
considerações que pude fazer dentro do limite do tempo que me foi designado.
Agradeço a atenção de todos e me coloco à disposição para eventual debate.
CARLOS EDISON DO RÊGO MONTEIRO FILHO
Professor de Direito Civil da UERJ. Procurador do Estado/RJ
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