SERÁ QUE
FINALMENTE CUMPRIRÃO O ART. 212 DO CPP? AGORA TEMOS A PALAVRA DO
PAI-TRIBUNAL (Aury lopes Jr)
O mais difícil não é mudar a lei, mas
as práticas judiciárias e a cultura, especialmente a inquisitória, ainda tão
arraigada no modo de agir dos atores judiciários. O processo penal brasileiro,
assumidamente inspirado na matriz fascista do Código de Rocco (basta ler a
Exposição de Motivos do atual CPP), estruturou a figura do juiz-ator, ativo na
busca da prova, inclusive de ofício (marca indelével de uma estrutura
inquisitória, como cansou de advertir Jacinto Coutinho), presidente supremo da
audiência e praticamente o gestor da produção da prova testemunhal. Esse
juiz-ator-inquisidor, no modelo do CPP, mais do que destinatário da prova, é o
verdadeiro "dono" da prova (por exemplo, artigo 156 do CPP). O
problema é que isso fere de morte a estrutura dialética do processo (actum
trium personarum), pois juiz que vai atrás da prova é um juiz contaminado,
que decide primeiro e depois produz a prova que vai justificar sua própria
decisão[i].
Lavora em solitário (Franco Cordero) e não na dialética processual-acusatória
que se espera, em pleno século XXI, de um juiz penal. Sem falar que o maior
prejuízo está na falta de condições de possibilidade de termos um juiz
imparcial. A imparcialidade exige do juiz um afastamento, um estranhamento, um
alheamento (terzietà) em relação à arena das partes e sua atividade. O
juiz é um ser ontologicamente concebido para ser um "ignorante", pois
ele ignora as provas e os fatos (isso é a originalidade cognitiva que se
espera), sendo essa a condição primeva para termos imparcialidade[ii.
Nessa perspectiva, o modelo de cross
examination é uma decorrência natural, ou seja, a prova testemunhal
deve ser trazida ao processo pelas partes e submetida ao exame cruzado,
perguntas e reperguntas das partes, sendo o juiz o destinatário do produto
desse debate. Portanto, o protagonismo é, evidentemente, das partes, e não do
juiz, que deve presidir o ato (missão fundamental) e garantir o contraditório.
Falar em juiz-espectador, e não mais em juiz-ator, é situar-se na transição do
modelo inquisitório para o processo penal acusatório-constitucional, não
podendo ser confundido com diminuição da figura do julgador ou em um juiz-samambaia,
como já se disse maldosamente alhures, em absurdo reducionismo e incompreensão
do que estamos tratando. A imparcialidade exige um afastamento (e uma estética
de afastamento) do juiz do espaço de atividade probatória das partes, impondo
que efetivamente ele esteja "cognitivamente aberto", livre,
disponível para ser convencido pela prova produzida pelas partes.
Essa breve, mas crucial e complexa introdução, serve para situar a
discussão feita em torno da "nova" (já se vão mais de nove anos de
vigência e polêmica!) redação do artigo 212 do CPP, introduzida pela reforma de
2008. Recordemos:
Art. 212. As
perguntas serão formuladas pelas partes diretamente às testemunhas, não
admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação
com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida.
Parágrafo único.
Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição.
A mudança foi muito importante e adequada, para conformar o CPP à
estrutura acusatória desenhada na Constituição, demarcando a separação das
funções de acusar e julgar e, principalmente, atribuindo a gestão da prova às
partes.
Trata-se de atribuir a responsabilidade pela produção da prova às
partes, como efetivamente deve ser num processo penal acusatório e democrático.
Portanto, o juiz deixa de ter o papel de protagonismo na realização das
oitivas, para ter uma função completiva, subsidiária. Não mais, como no modelo
anterior, terá o juiz aquela postura proativa, de fazer dezenas de perguntas,
esgotar a fonte probatória, para só então passar a palavra às partes, para que,
com o que sobrou, complementar a inquirição.
Neste novo modelo, o juiz abre a audiência, compromissando (ou não,
conforme o caso) a testemunha, e passa a palavra para a parte que a arrolou (MP
ou defesa). Caberá à parte interessada na produção da prova efetivamente
produzi‑la, sendo o juiz — neste momento — o fiscalizador do ato, filtrando as
perguntas ofensivas, sem relação com o caso penal, indutivas ou que já tenham
sido respondidas pela testemunha. Após, caberá à outra parte fazer suas
perguntas. O juiz, como regra, questionará ao final, perguntando apenas sobre
os pontos relevantes não esclarecidos. É, claramente, uma função completiva, e
não mais de protagonismo.
O juiz preside o ato, controlando a atuação das partes para que a prova
seja produzida nos limites legais e do caso penal. Ademais, poderá fazer
perguntas, sim, para complementar os pontos não esclarecidos. Jamais se disse
que o juiz não poderia perguntar para as testemunhas na audiência! O ponto
nevrálgico é: poderá o juiz fazer perguntas para a testemunha, mas não como
protagonista da inquirição.
Infelizmente, como diria Einstein, que época triste esta nossa, em que é
mais fácil quebrar um átomo do que um preconceito...
A reforma veio, mas as práticas
inquisitórias continuaram. Para agravar o cenário, os tribunais brasileiros
também fizeram uma leitura bastante reducionista da situação e passaram a
admitir a inversão na ordem das perguntas e o retorno do juiz-ator-inquisidor.
Ou seja, rasgaram o artigo 212 do CPP. Disseram
qualquer-coisa-sobre-qualquer-coisa, recordando as inumeráveis lições de Lenio
Streck sobre o erro e o perigo desse tipo de decisionismo. O conceito coringa,
para salvar um jogo perdido, foi invocar a famigerada tese de "nulidade
relativa" e a falta de "prejuízo" (https://www.conjur.com.br/2014-set-05/limite-penal-sistema-nulidades-la-carte-superado-processo-penal).
Mas há esperança.
No HC 111.815/SP[iii],
julgado no dia 14/11/2017, a 1º Turma do STF (por maioria, houve divergência em
relação à extensão do HC) decidiu que, "na audiência de instrução e
julgamento, o juiz deve observar o disposto no artigo 212 do Código de Processo
Penal (CPP), a fim de que, primeiramente, as partes interroguem as testemunhas,
podendo o magistrado formular perguntas apenas quando algum esclarecimento for
necessário".
A turma acolheu o HC para determinar a nova inquirição das testemunhas,
observada a regra do artigo 212 (disse o óbvio, convenhamos...) do CPP.
Interessante a manifestação do ministro Marco Aurélio no sentido de
anular todo o processo-crime, a partir da audiência de instrução e julgamento,
porque "fica difícil para o Estado-juiz, iniciando o interrogatório,
manter a equidistância. Segundo o ministro, a praxe da referida juíza é no
sentido de dar início às perguntas a serem formuladas para as testemunhas e
depois dar a palavra às partes, sem prejuízo de complementação de novas
perguntas pelo juízo. 'Não posso fechar os olhos ao que assentado pela
magistrada', ressaltou o relator ao destacar que a própria juíza disse
claramente que adota a prática em todo e qualquer processo-crime. O ministro
Alexandre de Moraes acompanhou o relator".
A decisão é muito recente e não está disponível o inteiro teor do
acórdão, o que deve ocorrer nos próximos dias, mas as informações do julgamento
contidas na notícia fornecida pelo STF já são alentadoras.
São quase 10 anos de vigência do artigo 212, cuja redação é claríssima e
não dá margem para a interpretação (absurdamente restritiva) feita por muitos
juízes e tribunais, que nada mais fazem do que negar o novo e perpetuar as
velhas práticas inquisitórias, no mais puro e absurdo decisionismo. Não há
espaço interpretativo na redação do artigo 212 que autorize o protagonismo
inquisitório do juiz e tampouco a inversão da ordem das perguntas.
O parágrafo único então é ainda mais claro e inequívoco: "Sobre os
pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição".
Respeitando minimamente o tipo processual penal (Princípio da
Legalidade), extraímos três regras básicas:
· o juiz pergunta depois das partes (exigência do caput, clara
e taxativa: "As perguntas serão formuladas pelas partes");
· o juiz pergunta depois das partes e apenas sobre os "pontos não
esclarecidos';
· a atuação do juiz é "complementar", não protagonista.
Acabou, ou pelo menos deveria ter
acabado, desde 2008, o juiz-ator-protagonista-da-instrução, que começava
perguntando para as testemunhas, esgotava a sua inquirição e inquisição,
deixando o que "sobrasse" para as partes, que nada mais faziam do que
um puro golpe de cena, pois o juiz já estava convencido e
"satisfeito" (logo, ausente o "efeito atenção", bem
explicado por Ruiz Ritter[1]).
Disso já sabemos todos, mas, em um país em que vale mais o argumento de
autoridade do que a autoridade do argumento, ainda estava faltando, para muitos
julgadores, a palavra do pai-tribunal. Pois aí está.
Agora, que se cumpra o artigo 212 do CPP, apenas isso!
[1] Na obra Imparcialidade
no Processo Penal: reflexões a partir da teoria da dissonância cognitiva.
Editora Empório do Direito, 2017.
[i] MORAIS DA
ROSA, Alexandre. https://www.conjur.com.br/2017-jan-27/limite-penal-tao-conveniente-antidemocratico-decidir-depois-justificar
[ii] Sobre essas questões, remetemos o leitor para nossa obra Direito Processual Penal, 14ª edição, e também Fundamentos do Processo Penal, 3ª edição, ambas publicadas pela editora Saraiva.
[iii] http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=361859
[ii] Sobre essas questões, remetemos o leitor para nossa obra Direito Processual Penal, 14ª edição, e também Fundamentos do Processo Penal, 3ª edição, ambas publicadas pela editora Saraiva.
[iii] http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=361859
Nenhum comentário:
Postar um comentário