PROCESSO ADMINISTRATIVO
7.1.Introdução
PROCESSO E PROCEDIMENTO – O termo processo indica uma atividade para a
frente, ou seja, uma atividade voltada a determinado objetivo. Trata-se de
categoria jurídica caracterizada pelo fato de que o fim alvitrado resulta da
relação jurídica existente entre os integrantes do processo. Na verdade, pode definir-se o processo como a relação jurídica
integrada por algumas pessoas, que nela exercem várias atividades direcionadas
para determinado fim. De fato, a ideia do processoreflete função dinâmica, em que os atos e os
comportamentos de seus integrantes se apresentam em sequência ordenada com
sentido teleológico, vale dizer, perseguindo o objetivo a que se destina
o processo.
O processo costuma ser
qualificado como instituto típico da função jurisdicional ou, na preferência de
alguns processualistas, como instrumento da jurisdição. Através do processo é que os juízes exercem seu
poder jurisdicional e, como regra, decidem os litígios entre as partes. A
relação jurídica, todavia, na qual sobressai o desempenho da função
jurisdicional é o processo judicial,
que, sem embargo de ser o mais notório (e clássico, pelas antigas e
ultrapassadas noções jurídicas), não é a única modalidade de processo (este considerado como categoria
jurídica). É bastante usual ouvir-se a afirmação – de todo equivocada – de que
o processo é o instrumento da
jurisdição, como se fora essa a única forma de sua exteriorização. O que é
instrumento da função jurisdicional é – isto sim – o processo judicial, que não exclui,
como é óbvio, a existência de outras categorias de processo.
A subcategorização do processo deve
fundar-se na natureza da função estatal básica que nele é exercida. Se a função
primordial exercida no processo é
a legiferante, estaremos diante do processo legislativo,
e nele estará também presente relação jurídica entre vários agentes e órgãos,
desta feita de caráter político, cujas atividades, desenvolvidas em sequência
previamente determinada, têm por escopo a promulgação da lei. Assim como a
sentença é o objetivo final do processo judicial,
a lei é o fim último do processo legislativo.77 Por outro lado, se a função é a
administrativa, a relação jurídica traduzirá processo administrativo, sendo, da mesma forma,
inafastáveis as características do processo em
geral – de um lado, as atividades sequenciadas produzidas pelos figurantes da
relação jurídica e, de outro, o objetivo final a que se destina.
Como na via administrativa as autoridades não desempenham função
jurisdicional, poderia supor-se (como supõem erroneamente alguns, já alertamos)
não ser muito técnica a denominação processo
administrativo. Contudo, tanto quanto o processo judicial, que visa a uma decisão, o processo administrativo tem igualmente
objetivo certo, no caso a prática de ato administrativo final.
Não bastasse esse fator de identificação, a expressão está consagrada, é
reconhecida pelas mais diversas camadas da população e a esta altura não há
qualquer razão para ser alterada. A própria Constituição Federal, para
exemplificar, faz, por mais de uma vez, referência à expressão processo administrativo (ou
simplesmente a processo),
reafirmando a aceitação geral da nomenclatura dispensada aos instrumentos
formais pelos quais se exerce a função administrativa (vide arts. 5o, LV; 5o, LXXII, “b”; 37, XXI; 41, § 1o, II, da CF).78
O que é necessário, isto sim, é distinguir alguns pontos fundamentais
que marcam cada tipo de processo.
O processo judicial encerra o
exercício de função jurisdicional e sempre há conflito de interesses, ao passo
que o processo administrativo implica
o desempenho de atividade administrativa, nem sempre se verificando qualquer
tipo de conflito. No processo judicial,
a relação é trilateral, porque além do Estado-Juiz, a quem as partes solicitam
a tutela jurisdicional, nela figuram também a parte autora e a parte ré.
No processo administrativo, a
relação é bilateral, porque, quando há conflito, de um lado está o particular e
de outro o Estado, a este incumbindo decidir a questão; o Estado é parte e
juiz. Por fim, o processo judicial
vai culminar numa decisão que pode tornar-se imodificável e definitiva, ao
passo que no processo administrativo as
decisões ainda poderão ser hostilizadas no Poder Judiciário.
A noção de procedimento, porém, é diversa. CALMON DE PASSOS
averba que “procedimento é o processo em
sua dinâmica, é o modo pelo qual os diversos atos se relacionam na série
constitutiva de um processo”.79 A ideia formulada pelo grande
processualista é bastante precisa e indica a mecânica do processo, vale dizer, o modo e a forma pelos
quais se vão sucedendo os atos do processo.
A noção de processo implica
objetivo, fim a ser alcançado; é noção teleológica. A de procedimento importa
meio, instrumento, dinâmica, tudo enfim que seja necessário para se alcançar o
fim do processo. Em suma, o
sentido de procedimento revela a própria sequência ordenada de atos e de
atividades produzidos pelos interessados para a consecução dos objetivos
do processo.
Não é difícil perceber, por isso mesmo, que tanto há
procedimento no processo judicial
como no processo administrativo, porque
em ambos há uma sequência de atos e de atividades preordenadas a determinado
fim. Um exemplo bem esclarece a questão: a relação jurídica formada entre os
agentes administrativos e as empresas para seleção com vistas a futuro
contrato administrativo materializa
o processo administrativo de
licitação; a sequência dos atos e das fases previstas na Lei no 8.666/1993 (que deve ser por
todos observada) constitui o procedimento administrativo concernente àquele processo. São, pois, categorias jurídicas
dotadas de fisionomia própria.
Essa é a razão por que entendemos inadequada a expressão procedimento administrativo como substituta
de processo administrativo, como
propõem alguns estudiosos que não aceitam esta última expressão. São coisas
inteiramente diversas. Denominar-se o processo
administrativo de procedimento administrativo é enfocar apenas um aspecto daquele,
qual seja, o relativo à dinâmica do processo.
Este instituto, porém, considerado como relação jurídica, ficaria sem a
denominação exata. Desse modo, processo e procedimento –
é importante acentuar – não são coisas antagônicas, mas sim figuras
intrinsecamente ligadas entre si: todo processo demanda
um procedimento – que é a tramitação dos atos –, da mesma forma que todo
procedimento só tem existência se houver o respectivo processo –, este indicando a relação
jurídica firmada entre aqueles que dele participam.
SISTEMATIZAÇÃO – No Direito brasileiro, não há sistematização uniforme para
o processo administrativo, como
existe para o processo judicial.
Algumas regras sobre aspectos do processo
administrativo, como competência, prazos, requisitos etc., se espalham
em diversos diplomas legais e até por atos administrativos normativos ou de
organização como os decretos, regulamentos, regimentos e outros.
Por isso, não se pode esperar uma rigidez absoluta para os processos
administrativos. Entretanto, devem o intérprete e o agente administrativo incumbido do processo atentar primeiramente para os
princípios norteadores da atividade administrativa em geral, isso sem deslocar
sua atenção também para as regras legais ou regulamentares que possam
disciplinar o processo.
Em suma: mesmo sem sistematização uniforme, o processo administrativo recebe o influxo
de princípios e normas jurídicas para que seja possível a sua conclusão dentro
das regras gerais de direito.
O Governo Federal, em boa hora, fez editar a Lei no 9.784, de 29.1.1999,
estabelecendo as regras para o processo
administrativo e instituindo um sistema normativo que tem por fim
obter uniformidade nos diversos expedientes que tramitam nos órgãos
administrativos. A lei, todavia, tem caráter tipicamente federal,
ou seja, destina-se a incidir apenas sobre a Administração Federal. Dentro
desta, a disciplina é aplicável no âmbito da Administração direta e indireta e
também aos órgãos administrativos dos Poderes Legislativo e Judiciário da
União. Embora destinada somente ao Governo Federal, já é um início de
uniformidade normativa, o que muito facilita os administrados. Estados e
Municípios deveriam trilhar o mesmo caminho, instituindo, pelas respectivas
leis, sistema uniforme de processo
administrativo em suas repartições.
7.2.Sentido
Diante do que expusemos até agora, parece-nos possível conceituar
o processo administrativo como o
instrumento que formaliza a sequência ordenada de atos e de atividades do
Estado e dos particulares a fim de ser produzida uma vontade final da
Administração.
O processo administrativo importa
uma sequência de atos e de atividades, isso porque, se em alguns momentos se
pratica algum ato formal, em outros são exigidas meras atividades, mesmo que
venham a ser formalizadas no processo.
Originam-se do Estado, através de seus órgãos e agentes, ou de administrados
interessados no assunto a ser apreciado no processo.
Além disso, todos esses atos e atividades têm um objetivo, qual seja, o de
provocar uma definição final da Administração.80
Neste passo, é justo sublinhar, como o faz doutrina de grande
autoridade, que o processo administrativo é
instituto de inegável relevância no sistema jurídico e espelha “instrumento
útil para assegurar a observância do superprincípio da segurança jurídica”, que
alcança, na verdade, todas as situações que envolvam “a certeza do
direito e a estabilidade das relações jurídicas”.81
7.3.Classificação
Várias são as classificações que os autores apresentam, o que não causa
estranheza em virtude da ampla dimensão dos processos administrativos. A nosso
ver, porém, há dois grandes grupos de processos administrativos: os processos
não litigiosos e os processos litigiosos.
PROCESSOS NÃO LITIGIOSOS – Processos não litigiosos, como o próprio nome indica, são
aqueles em que não se apresenta conflito de interesses entre o Estado e um particular.
Essa categoria, aliás, constitui um dos pontos diferenciais dos
processos judiciais, já que nestes é indispensável a presença do conflito. Os
processos não litigiosos são os de maior número e através deles se concretiza o
desempenho da função administrativa nos seus mais variados aspectos, desde os
mais simplórios até os mais complexos.
O grande fundamento de tais processos é o princípio do formalismo das
atividades administrativas. Para que os administrados e a própria Administração
possam efetuar o controle administrativo,
torna-se necessário que tudo fique formalizado e registrado.
Entre os processos não litigiosos se incluem o inquérito policial, o
inquérito civil e a sindicância administrativa. Trata-se de processos que têm
por objeto apenas uma apuração, sendo, pois, inquisitórios,
e não contraditórios. Neles não incide o princípio da ampla defesa
e do contraditório, estando ausente qualquer litígio formal. Apesar de ser
garantido o acesso a advogados constituídos, não tem a autoridade administrativa
o dever de conferir acesso livre a terceiros, até porque pode haver
investigação sobre dados sigilosos relativos a outras pessoas.82
PROCESSOS LITIGIOSOS – Ao contrário do que ocorre com a categoria anterior, os
processos litigiosos contêm realmente um conflito de interesses entre o Estado
e o administrado. Esse conflito é o mesmo que constitui objeto do processo judicial. A diferença, porém, como
já vimos, está em que as decisões neste último podem tornar-se imutáveis, fato
que não ocorre nos processos administrativos.
Não há a menor dúvida de que, em sua aparência e no procedimento,
guardam semelhança com os processos judiciais, sendo, por isso, comumente
denominados de processos judicialiformes, ou seja, processos que
têm a forma de processos judiciais.
Os conflitos, todavia, são decididos pelo próprio Estado, que tem a
posição de parte e de julgador. Em compensação, suas decisões podem ser impugnadas
na via judicial, onde o Estado-Juiz atuará com imparcialidade e equidistância
dos interesses do particular e do Estado-Administração.
É comum esse tipo de processo nos
conflitos de natureza tributária e previdenciária. O processo percorre diversas instâncias
administrativas formadas de agentes e de órgãos administrativos, como os
tribunais e conselhos administrativos, aos quais compete decidir sobre as
controvérsias, e sua tramitação, normalmente regulada em lei, se aproxima em
muitos pontos do procedimento judicial. Exemplo típico é o processo tributário, apreciado por
agentes do órgão de fiscalização e, em grau de recurso, por conselhos de
contribuintes. O rito é de fato parecido com o do processo judicial.
É fácil perceber que a presença do conflito de interesses vai exigir que
nesse tipo de processo administrativo haja
maior rigidez quanto à observância de alguns princípios, como o do
contraditório, da ampla defesa, da produção probatória etc.83
7.4.Objeto
GENÉRICO – Todo processo representa
um instrumento para alcançar determinado fim. É esse elemento dinâmico que o
caracteriza. Sempre que há a referência a um processo,
certamente haverá a menção a algo que é pretendido, ao fim a que se destina, a
um objeto, enfim.
Por isso, podemos aludir aos tipos fundamentais de processo, de acordo com as funções básicas do
Estado. Nesse caso, temos um processo legislativo, um processo judicial e um processo administrativo, cada um
deles voltado a um fim próprio. O processo legislativo
tem por objeto a produção da lei (embora haja outros atos
análogos com denominação diversa); o processo judicial
alvitra a produção da sentença (mesmo caso do processo anterior); e o processo administrativo tem por objeto a
produção do ato administrativo.
Assim, considerando-se o aspecto teleológico genérico, inerente ao processo, podemos consignar que constitui
objeto do processo administrativo a
prática de um ato administrativo.
Há processos, por exemplo, que culminam com ato de outorga de licença; outros
desaguam em ato de punição; outros, ainda, findam com atos de indeferimento de
pedido, e assim por diante. Mesmo que o processo não
tenha servido para alcançar seu objeto específico, terá que haver um ato administrativo final, nem que seja para
a prática de ato de arquivamento. Uma coisa é certa: não se pode conceber
o processo administrativo sem
que tenha ele esse objeto genérico.
OBJETOS ESPECÍFICOS – Objetos específicos do processo
administrativo são as providências especiais que a Administração
pretende adotar por meio do ato administrativo final.
Dada a grande variedade dos objetivos colimados pela Administração, podemos
agrupar os processos administrativos em categorias diversas.
De acordo com a especificidade dos processos, podem ser classificados
em:
a)processos com objeto de mera
tramitação;
b)processos com objeto de controle;
c)processos com objeto punitivo;
d)processos com objeto contratual;
e)processos com objeto revisional; e
f)processos com objeto de outorga de
direitos.
A primeira categoria é dos processos com objeto de mera
tramitação. É a grande maioria dos processos, pois que representam todos
aqueles que não se enquadram nas demais categorias, tendo caráter residual.
Nesses processos é que a Administração formaliza suas rotinas administrativas,
já que tudo que é protocolizado numa repartição pública se converte em processo. Estão nessa categoria os processos
resultantes de ofícios encaminhados por entidades públicas ou privadas; de
meras comunicações aos órgãos públicos; de planejamento de serviços, e tudo
enfim que acarrete uma tramitação pela via administrativa.
Há outros processos que têm objeto de controle, porque visam
a proporcionar um ato administrativo final
que espelhe o resultado desse controle. Exemplo típico é o do processo que encaminha as contas dos
administradores para controle financeiro interno ou do Tribunal de Contas. Os
atos finais de controle podem ser de aprovação das contas ou de sua rejeição.
Outro exemplo é o processo de
avaliação de conduta funcional de servidor público, no qual a Administração
objetiva fixar certo conceito funcional, ou chegar à conclusão de que o
servidor merece ser exonerado, ou ainda fiscalizar condutas de servidores ou de
terceiros. Esse tipo de processo pode
eventualmente provocar a instauração de outro processo com objeto diverso: é o caso em que o controle
resulta em verificação de irregularidades nas contas prestadas, hipótese em que
outro processo deverá ser
iniciado com objeto punitivo.
A terceira categoria é a dos processos com objeto punitivo. Como
indica a própria expressão, têm eles como objetivo a averiguação de situações
irregulares ou ilegais na Administração e, quando elas se positivam, ensejam
também a aplicação de penalidades. O objeto punitivo pode ser interno,
quando a apuração tem pertinência com a relação funcional entre o Estado e o
servidor público, e externo, quando a verificação tem em mira a
relação entre o Estado e os administrados em geral. Exemplo de objeto punitivo
interno é o processo que
culmina com a aplicação da pena de suspensão ao servidor; exemplo de objeto
punitivo externo é o processo que
gera a cassação de licença pelo fato de ter o interessado cometido infração
grave prevista em lei. O processo com
objeto punitivo interno denomina-se de processo
administrativo disciplinar, e será estudado em tópico separado.
Outra categoria é a dos processos com objeto contratual,
aqueles em que a Administração pretende celebrar contrato com terceiro para a
aquisição de bens, a construção de obras, o desempenho de serviços, a execução
de serviços concedidos e permitidos etc. Típicos dessa categoria são os
processos de licitação, regulados pela Lei no 8.666/1993.
Há ainda os processos com objeto revisional, que são aqueles
instaurados em virtude da interposição de algum recurso administrativo pelo administrado ou pelo
servidor público. Neles a Administração vai examinar a pretensão do recorrente,
que é a de revisão de certo ato ou conduta administrativa. Se um servidor
formula reclamação contra ato que não o incluiu numa lista de promoção por
merecimento, o processo que
se instaura tem objeto revisional. A Administração, ao final, pode rever o ato,
como foi pedido pelo recorrente, ou mantê-lo, indeferindo o pedido recursal do
interessado.
Por fim, temos os processos com objeto de outorga de direitos.
Nesse tipo de processo, a
Administração, atendendo ao pedido do interessado, pode conferir-lhe
determinado direito ou certa situação individual.84 Exemplos destes processos são
aqueles em que o Poder Público concede permissões e autorizações; registra
marcas e patentes; concede isenções; confere licenças para construção ou para
exercer atividades profissionais etc.
7.5.Princípios
DEVIDO PROCESSO LEGAL – O princípio do devido processo legal (due process of law)
é daqueles mais relevantes quando se trata de examinar os efeitos da relação jurídica
entre o Estado e os administrados. Trata-se de postulado inerente ao Estado de
Direito, que, como sabemos, foi a situação política em que o Estado reconheceu
que, se de um lado podia criar o direito, de outro tinha o dever de submeter-se
a ele. A lei, portanto, é o limite de atuação de toda a sociedade e do próprio
Estado.
A Constituição vigente referiu-se ao devido processo legal dentro do capítulo dos direitos e garantias
fundamentais. Dispõe o art. 5o, LIV, da CF: “Ninguém será privado da
liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.”
Como bem já se registrou, a adoção do princípio em sede
constitucional “representou um natural desenvolvimento da sociedade que
não mais se conforma com a atuação estatal sem controle e altamente cerceadora
do desenvolvimento do indivíduo”.85 E tem razão o grande publicista.
O devido processo legal é
realmente um postulado dirigido diretamente ao Estado, indicando que lhe cabe o
dever de observar rigorosamente as regras legais que ele mesmo criou.
Em relação ao processo
administrativo, o princípio do devido processo legal
tem sentido claro: em todo o processo
administrativo devem ser respeitadas as normas legais que o
regulam. A regra, aliás, vale para todo e qualquer tipo de processo, e no caso do processo administrativo incide sempre,
seja qual for o objeto a que se destine. Embora se costume invocá-lo nos
processos litigiosos, porque se assemelham aos processos judiciais, a verdade é
que a exigência do postulado atinge até mesmo os processos não litigiosos, no
sentido de que nestes também deve o Estado respeitar as normas que sobre eles
incidam.
Aliás, a amplitude do princípio (embora a Constituição pareça tê-lo
limitado um pouco) dá margem à interpretação de que tem ele estreita conexão
com o princípio da legalidade, este de amplo espectro e reconhecidamente
abrangente. Em ambos, o Estado deverá prostrar-se como servo da lei.
OFICIALIDADE – O princípio da oficialidade significa que a iniciativa da
instauração e do desenvolvimento do processo
administrativo compete à própria Administração. Neste ponto, há
flagrante diferença com o processo judicial.
A relação processual no âmbito judicial é deflagrada por iniciativa da
parte: ne procedat iudex ex officio (art. 2o, CPC). A tutela jurisdicional só pode
ser exercida se o interessado adotar as providências para instaurar o processo judicial.
O princípio da oficialidade é diametralmente diverso. A Administração pode
instaurar e impulsionar, de ofício, o processo e
não depende da vontade do interessado. Trata-se de responsabilidade
administrativa, pela qual aos administradores cabe atuar e decidir por si
mesmos, não se adstringindo, inclusive, às alegações das partes suscitadas no
curso do processo.86 Ainda que a lei não o estabeleça
nesse sentido, o dever da Administração é inerente à função de concluir os
processos para a verificação da conduta a ser adotada, satisfazendo, assim, o
interesse da coletividade.87
Esse princípio permite aos agentes administrativos encarregados do processo várias formas de atuação ex
officio, como a tomada de depoimentos, a inspeção em locais e bens, a
adoção de diligências, tudo enfim que seja necessário para a conclusão do processo. É tão necessária a conclusão
do processo que, como bem
anota DIÓGENES GASPARINI, pode ser responsabilizado funcionalmente o servidor
que se tenha conduzido com desídia ou desinteresse, paralisando o processo ou retardando seu desfecho.88
O princípio da oficialidade foi acolhido pela Lei no 9.784, de 29.1.1999, que,
disciplinando o processo administrativo federal,
consignou que as atividades de instrução com a finalidade de averiguar e
comprovar os elementos necessários à decisão podem realizar-se de
ofício ou mediante impulsão do órgão responsável pelo processo, independentemente, portanto, de
haver interesse ou desinteresse das partes no processo.89 A adoção do princípio revela a
possibilidade de desfecho mais rápido do processo,
pois que não haverá dependência da iniciativa de terceiros.
CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA – O princípio do contraditório está expresso no art. 5o, LV, da CF, que tem o seguinte
teor: “Aos litigantes, em processo judicial
ou administrativo, e aos acusados
em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e
recursos a ela inerentes.”
O mandamento constitucional abrange processos judiciais e
administrativos. É necessário, todavia, que haja litígio, ou seja, interesses
conflituosos suscetíveis de apreciação e decisão. Portanto, a incidência da
norma recai efetivamente sobre os processos administrativos litigiosos. A
interpretação a contrario sensu é a de que não incide o
princípio sobre processos não litigiosos. É o caso, por exemplo, do inquérito
policial, do inquérito civil, da sindicância prévia de mera averiguação.90
Costuma-se fazer referência ao princípio do contraditório e da ampla
defesa, como está mencionado na Constituição. Contudo, o contraditório é
natural corolário da ampla defesa. Esta, sim, é que constitui o princípio
fundamental e inarredável. Na verdade, dentro da ampla defesa já se inclui, em
seu sentido, o direito ao contraditório, que é o direito de contestação, de
redarguição a acusações, de impugnação de atos e atividades.
O acusado pode atuar por si mesmo, elaborando a sua defesa e
acompanhando o processo, ou
fazer-se representar por advogado devidamente munido da respectiva procuração.
A representação, portanto, constitui uma faculdade outorgada
ao acusado, como já consagrou – corretamente a nosso ver – a mais autorizada
doutrina.91 Não obstante, como garantia do
princípio do contraditório, exige-se a presença de defensor dativo no
caso de estar o acusado em lugar incerto e não sabido, ou na hipótese de
revelia. Fora dessas hipóteses, contudo, é dispensável a presença de advogado.
Desse modo, não nos parece correta a orientação judicial pela qual se afirma
ser obrigatória, genericamente, a presença de advogado no
curso do processo disciplinar.92 Tal pensamento exorbita em muito
a garantia do contraditório e não tem fundamento normativo. O STF, porém,
contrariando o entendimento do STJ, e de forma acertada, a nosso ver, decidiu
não ser ofensiva à Constituição a falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar.93
Não obstante, outros aspectos cabem na ampla defesa e também são
inderrogáveis, como é o caso da produção de prova, do acompanhamento dos atos processuais,
da vista do processo, da
interposição de recursos e, afinal, de toda a intervenção que a parte
entender necessária para provar suas alegações.94 Só é vedada aos interessados a
utilização de meios procrastinatórios ou ilícitos que, pretextando buscar a
verdade dos fatos, tenham por fim desviar o objetivo do processo. Nesse caso, não há uso, mas abuso
de direito. Daí ser lícito ao órgão processante indeferir a oitiva de
testemunhas apresentadas com o único objetivo de dilargar o andamento do feito.95
É importante lembrar que o princípio da ampla defesa não deve ser
interpretado restritivamente, quando se trata de processos com litígios e com
acusados. Além do mais, deve considerar-se que a tutela jurídica do direito à
defesa é dever do Estado, qualquer que seja a função que esteja desempenhando.96
PUBLICIDADE – A vigente Constituição consagra a publicidade como um dos
princípios básicos da Administração Pública (art. 37, caput). Como
já tivemos a oportunidade de examinar, o princípio da publicidade importa o
dever do Estado de dar a maior divulgação possível aos atos que pratica. É o
dever de transparência das atividades administrativas.
Em relação aos processos administrativos, o princípio está a indicar que
os indivíduos têm direito de acesso aos referidos processos, sequer se exigindo
que sejam os titulares do direito material, mas que apontem algum interesse público
a ser preservado.
Note-se que, ligados a esse princípio, a Constituição registra o direito
à informação, contido no art. 5o, XXXIII, bem como o direito à obtenção de
certidões para a defesa de direitos e para o esclarecimento de situações,
consagrado no art. 5o, XXXIV, “b”. Significa que o indivíduo tem o direito a ser informado do
que se passa junto aos órgãos públicos e, sendo assim, tem o direito de acesso
aos processos que tramitam nas vias administrativas. Por outro lado, garantido
o direito à obtenção de certidões, está implícito também o direito de acesso
aos feitos administrativos.
É lógico que o direito de acesso não pode se converter em abuso. Havendo
abuso, a Administração não é obrigada a atender pedidos de quem o comete.97Admite-se a restrição desse direito nas
situações que imponham sigilo, o que, aliás, resulta do próprio art. 5o, XXXIII, da CF, e naquelas em que se
precise preservar a intimidade ou o interesse social.98
Outro aspecto do princípio da publicidade merece destaque. Como os
processos administrativos comportam sempre, como seu objetivo, a prática de
atos administrativos, é necessário que a Administração dispense a eles a devida
divulgação, seja pela publicação nos órgãos de imprensa oficial, seja pela
comunicação pessoal. A exigência também emana do art. 37 da vigente Constituição.
INFORMALISMO PROCEDIMENTAL – Como inexiste um sistema específico para o processo administrativo, várias são as leis
que dispõem sobre eles. Quando essas leis traçam o rito que o processo deve obedecer, cumpre
observá-lo porque a isso obriga o princípio do devido processo legal.
Essas leis, porém, não regulam todos os processos, sobretudo quando se
considera a grande amplitude de sentido que se empresta aos processos
administrativos. Há inúmeros processos não litigiosos que não sofrem o influxo
de qualquer disciplina legal. O mesmo ocorre com alguns processos litigiosos.
O princípio do informalismo significa que, no silêncio da lei ou de atos
regulamentares, não há para o administrador a obrigação de adotar excessivo
rigor na tramitação dos processos administrativos, tal como ocorre, por
exemplo, nos processos judiciais. Ao administrador caberá seguir um
procedimento que seja adequado ao objeto específico a que se destinar o processo.99 Se um administrado, por exemplo,
formula algum requerimento à Administração, e não havendo lei disciplinadora
do processo, deve o administrador
impulsionar o feito, devidamente formalizado, pelos demais órgãos que tenham
competência relacionada ao requerimento, e ainda, se for o caso, comunicar ao
requerente a necessidade de fornecer outros elementos, ou de trazer novos
documentos, e até mesmo o resultado do processo.
Enfim, o que é importante no princípio do informalismo é que os órgãos
administrativos compatibilizem os trâmites do processo administrativo com o objeto a
que é destinado.
Entretanto, como bem observa DIÓGENES GASPARINI, não pode o informalismo
servir de pretexto ao desleixo, com os administradores fazendo tramitar o processo sem a devida numeração, com
falta de folhas, com rasuras suspeitas, enfim sem os elementos mínimos que
possam denotar o zelo e a atenção dos órgãos administrativos para os fins
do processo. Só assim o processo administrativo pode oferecer
segurança e credibilidade aos administrados. Fora daí, o feito seria
absolutamente inócuo.100
VERDADE MATERIAL – É o princípio da verdade material que autoriza o administrador a
perseguir a verdade real, ou seja, aquela que resulta efetivamente
dos fatos que a constituíram. Nos processos judiciais, como bem observa HELY
LOPES MEIRELLES, viceja o princípio da verdade formal, já que
o juiz se limita a decidir conforme as provas produzidas no processo, em obediência ao velho
brocardo quod non est in actis non est in mundo.101
Pelo princípio da verdade material, o próprio administrador pode buscar
as provas para chegar à sua conclusão e para que o processo administrativo sirva realmente para alcançar
a verdade incontestável, e não apenas a que ressai de um procedimento meramente
formal. Devemos lembrar-nos de que nos processos administrativos, diversamente
do que ocorre nos processos judiciais, não há propriamente partes,
mas sim interessados, e entre estes se coloca a própria
Administração. Por conseguinte, o interesse da Administração em alcançar o
objeto do processo e, assim,
satisfazer o interesse público pela conclusão calcada na verdade real, tem
prevalência sobre o interesse do particular. Por isso é que esse princípio
serve também como fundamento da reformatio in pejus, como
examinamos anteriormente.102
Apenas como exemplo prático, veja-se a matéria de prova. No processo judicial, é às partes que
compete a produção das provas que respaldem suas alegações.103 O juiz apenas as aprecia como
meio de chegar a seu convencimento. No processo
administrativo, porém, o próprio administrador vai à busca de
documentos, comparece a locais, inspeciona bens, colhe depoimentos e, a final,
adota realmente todas as providências que possam conduzi-lo a uma conclusão
baseada na verdade material ou real. É esse o exato sentido do princípio da
verdade material.104
A busca da verdade real tem conduzido os estudiosos modernos a admitir,
no processo administrativo,
a teoria da desconsideração da pessoa jurídica(“disregard of
legal entity”), de modo a atribuir-se responsabilidade às pessoas físicas
que se valem da pessoa jurídica como escudo para o cometimento de fraudes,
desvios e outros ilícitos. Serve como exemplo o caso dos conhecidos “laranjas”,
em que os administradores não têm qualquer vínculo com a sociedade e que são
indicados pelos verdadeiros donos do negócio. Incide também a mesma teoria nos
processos administrativos punitivos, inclusive nos contratos administrativos e
licitações, quando perpetradas fraudes pelo contratado ou interessado contra a
Administração.105
Existem divergências a respeito da admissibilidade da prova
ilícita no processo
administrativo. Os Tribunais a têm rechaçado peremptoriamente,
estendendo a repulsa, inclusive, aos efeitos dela oriundos (teoria dos frutos
envenenados ou “fruits of the poisonous tree”).106 Todavia, moderna doutrina a
considera admissível em alguns casos excepcionais, quando embasada nos
princípios da proporcionalidade e da moralidade e sempre alvejando a
preponderância do interesse público. Na verdade, não há irrestrita aceitação,
mas certa flexibilidade em função das particularidades do caso concreto,
entendimento ao qual emprestamos nosso abono.107
7.6.Processo
Administrativo na Administração Federal
DISCIPLINA – Tendo em vista a necessidade de uniformizar pelo menos as regras
básicas a serem adotadas nos expedientes internos da Administração, foi editada
a Lei no 9.784, de 29.1.1999, destinada a regular os processos
administrativos no âmbito da Administração Pública Federal.
Note-se, primeiramente, que a lei tem caráter federal, e
não nacional, vale dizer, é aplicável apenas na tramitação de
expedientes processuais dentro da Administração Pública Federal, inclusive no
âmbito dos Poderes Legislativo e Judiciário. Em virtude de nosso regime
federativo, em que as entidades integrantes são dotadas de autonomia, não podem
tais mandamentos se estender a Estados, Distrito Federal e Municípios, já que
estes são titulares de competência privativa para estabelecer as próprias
regras a respeito de seus processos administrativos. Nada impede, e, ao
contrário, tudo aconselha a que as demais entidades também uniformizem seus
procedimentos administrativos, não somente para limitar a atuação dos
administradores públicos, mas também para conferir aos administrados maior
garantia no controle da legalidade dos atos administrativos praticados nos diversos
expedientes que tramitam nos órgãos da Administração Pública.
Vale a pena destacar, ainda, que as normas da Lei no 9.784/1999 têm caráter genérico e subsidiário,
ou seja, aplicam-se apenas nos casos em que não haja lei específica regulando o
respectivo processo administrativo ou,
quando haja, é aplicável para complementar as regras especiais. A lei
específica, por conseguinte, continuará sendo lex specialis e
prevalecerá sobre a lei geral. É o caso, por exemplo, dos processos
disciplinares, previstos nas leis estatutárias, e dos processos tributários,
regulados pelo Código Tributário Nacional e outras leis do gênero. Sendo normas
especiais, só subsidiariamente recebem a incidência das normas gerais previstas
na Lei no 9.784/1999.108 Quer dizer: se a lei específica
for silente, a Lei no 9.784/1999 será aplicável.109
PRINCÍPIOS E CRITÉRIOS – O processo administrativo federal
deve observar os princípios da legalidade, finalidade,
motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa,
contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.110 Veja-se, portanto, que, além dos
princípios consagrados expressamente na Constituição, o legislador acrescentou
alguns outros de pacífico reconhecimento doutrinário em sede de direito
público.
A propósito, e para haver consonância com o princípio da eficiência e da
razoável duração do processo, a lei
passou a contemplar o regime de prioridade na tramitação do processo administrativo em favor de
pessoas com idade igual ou superior a 60 anos; portadoras de deficiência física
ou mental; e de portadoras de várias doenças graves.111 Sobre essa alteração, afirmamos
que seu fundamento consistiu na maior atenção a ser dada pela Administração a
esses hipossuficientes, na certeza de que o fator tempo se revela
impostergável para a defesa de seus interesses.112
A lei enumerou uma série de critérios (art. 2o, parágrafo único), que, na verdade,
nada mais são do que padrões a serem observados pelas autoridades nos processos
administrativos. Dentre eles, merecem destaque o que impõe seja a conduta
administrativa dotada de probidade, decoro e boa-fé, e o que exige congruência
entre meios e fins, vedando-se sanções, restrições e obrigações além das
necessárias para atender ao interesse público. Inserem-se também como critérios
a proibição de cobrança de despesas processuais (ressalvadas as hipóteses
legais) e o impulso ex officio dos processos para evitar paralisações
e o retardamento das soluções. Direito a alegações e recursos e divulgação
oficial dos atos são outros dos padrões a que devem se submeter os agentes nos
processos administrativos.
ASPECTOS ESPECIAIS – A lei destina regras relativas aos direitos e
aos deveres dos administrados. Como direitos, inscreve o de
receber tratamento condigno das autoridades e o de ser assistido
facultativamente por advogado, bem como o de ter ciência dos atos nos processos
em que seja interessado, sendo-lhe permitido consulta aos autos e extração de
cópias. São deveres a conduta leal e de boa-fé e a observância da veracidade
das afirmações; deve também prestar as informações que lhe forem solicitadas e
não agir de modo temerário.113
O processo pode ser
deflagrado ex officio ou por provocação do interessado. São
necessários alguns aspectos relativos à formalização dos requerimentos,
devendo identificar-se os órgãos a que se dirigem, a identificação completa do
requerente e a exposição completa dos fatos e fundamentos do pleito. Várias
pessoas são consideradas pela lei como interessadas nos
processos administrativos: além das pessoas físicas ou jurídicas titulares de
direitos e interesses diretos, podem ser interessadas pessoas que possam ter
direitos ameaçados em decorrência da decisão no processo; também as organizações e associações representativas
podem defender interesses coletivos e as pessoas ou associações legítimas podem
invocar a tutela de interesses difusos.
Algumas regras do processo
administrativo federal guardam semelhança com as do processo judicial. A lei estabelece
normas sobre competência administrativa, impedimento e suspeição, forma, tempo
e lugar dos atos do processo e
comunicação dos atos, além de consignar detalhada disciplina sobre a instrução
do processo, fase em que avulta a
observância do contraditório e ampla defesa.
Cabe observar, por oportuno, que incide no processo administrativo a tutela cautelar, em consonância
com o princípio geral de cautela, apropriado a qualquer modelo processual. O
art. 45 da Lei no 9.784/99 prevê a prática de providências acauteladoras sem a
manifestação do interessado. Infere-se, pois, que é lícita a medida cautelar
imediata (in limine litis), sobretudo quando se conclui que o processo perderia sua razão de ser, ante
a ineficácia da decisão final.114
Dentre as normas integrantes do capítulo destinado à instrução do processo, duas merecem destaque: a audiência
pública (art. 32) e a consulta pública (art. 31).
Pela consulta pública, a Administração procura obter a opinião pública de
pessoas e entidades sobre determinado assunto de relevância discutido no processo, formalizando-se as manifestações
através de peças formais instrutórias. Já a audiência pública (que, em última
instância, é também forma de consulta) se destina a obter manifestações orais e
provocar debates em sessão pública especificamente designada para o debate
acerca de determinada matéria.115 Ambas retratam, na verdade,
instrumentos de participação das comunidades na tomada de decisões
administrativas. É correto, pois, afirmar que de sua realização emanam efeitos
significativos: um deles é o de influenciar a vontade estatal; outro é o de
reclamar que a Administração (ou o juiz) apresente argumentação convincente no
caso de optar por caminho contrário ao que foi sugerido na consulta ou na
sessão da audiência pública.116
Regra de inegável importância é a que obriga a Administração a decidir
os processos administrativos e dar resposta às reclamações e solicitações
formuladas pelos interessados (art. 48). Tenta o legislador evitar as
indesejáveis paralisações de processos na Administração, muitas vezes deliberadas
e ilegais, e usadas para esconder outros fatos ilegítimos. Para que as questões
sejam solucionadas, é preciso a definição do processo, e é exatamente a essa definição
que agora está vinculado o administrador. Não se pode perder de vista que o
dever de decidir, cominado ao administrador, é consectário do próprio direito
de petição.117 Trata-se, pois, de dever
congruente com essa garantia constitucional.
Preocupa-se o legislador com a motivação dos atos
administrativos, assim considerada como a explicitação dos fatos e fundamentos
que deram suporte à prática do ato. Pode a fundamentação adotar a de outros
atos, como pareceres, informações e decisões. Tratando-se de decisões de órgãos
colegiados e comissões, ou de decisões orais, a motivação constará da
respectiva ata ou termo escrito, possibilitando aos interessados exercer o
controle de legalidade dos atos tendo em vista a justificativa em que se basearam.118
Não são todos os atos que exigem expressa motivação, o que vem em abono
ao que sempre defendemos. Não se pode indiscriminadamente exigir a motivação de
todos os atos, como parecem defender, exageradamente, alguns autores, até
porque há atos da rotina administrativa, indiferentes à órbita jurídica de
terceiros, que não podem a cada passo exigir expressa e formal justificativa. A
motivação depende de determinação legal, exatamente como fez a Lei no9.784/1999. É exigível nos atos que:
a)neguem, limitem ou afetem direitos;
b)imponham ou agravem deveres, encargos
e sanções;
c)permitam a dispensa e a
inexigibilidade de licitações;
d)decidam processos administrativos de
recrutamento público;
e)decidam recursos administrativos;
f)deixem de seguir jurisprudência sobre
determinada questão administrativa;
g)indiquem reexame de ofício; e
h)impliquem anulação, revogação,
suspensão ou convalidação de atos administrativos (V. art. 50, I a VIII).
Fora desses casos, dispensável será a motivação. A lei, é bom que se
destaque, ao exigir que os atos sejam motivados, impõe também sejam indicados
os fatos e os fundamentos jurídicos. Como já tivemos a oportunidade
de salientar, a ideia “não guarda total consonância com o sentido que o
legislador quis emprestar à motivação do ato administrativo”.119 Na verdade, a motivação não
abrange necessariamente os fundamentos jurídicos, mas, ao contrário, pode
relacionar-se apenas à situação fática. Os fundamentos jurídicos
constituem “o suporte jurídico da conclusão adotada no ato administrativo”, de modo que, nos casos
do art. 50, não bastará a menção aos fatos, devendo o administrador indicar
também qual o substrato jurídico em que se apoia, conforme já deixamos
consignado em obra específica.120
Por fim, a lei traçou normas especiais sobre os recursos
administrativos. Devem os recursos ser interpostos por requerimento do
interessado, com a clara exposição dos fatos e fundamentos do pedido
revisional, podendo este fundar-se em razões de legalidade ou de mérito.121 O prazo recursal, não havendo
regra específica, é de 10 dias contados da ciência ou
divulgação oficial do ato, cabendo à autoridade decidir o recurso no prazo
de 30 dias a partir do recebimento do pedido recursal; esse
prazo pode ser prorrogado por igual período, desde que a autoridade o
justifique. Como regra, o recurso não tem efeito suspensivo,
mas, se houver justo receio de prejuízo de difícil ou incerta reparação
decorrente da execução do ato impugnado, poderá a autoridade recorrida ou a
imediatamente superior, de ofício ou a requerimento do interessado, conferir
efeito suspensivo ao recurso. É a aplicação, portanto, da tutela preventiva
no processo administrativo.
Havendo outros interessados, a Administração deverá intimá-los para,
em cinco dias, apresentarem suas alegações. O órgão competente para
apreciar o recurso poderá confirmar, modificar, anular e revogar, total ou
parcialmente, a decisão recorrida; se houver agravamento da situação do
recorrente, ser-lhe-á dada oportunidade de apresentar alegações (art. 64,
parágrafo único). A Administração pode deixar de conhecer do
recurso, hipótese diversa da de julgar o recurso. O recurso
não será conhecido quando interposto: (a) fora do prazo; (b)
por pessoa sem legitimação; (c) após o exaurimento da instância administrativa;
(d) perante órgão incompetente (nesta hipótese, a autoridade indicará ao
interessado a autoridade competente, assegurando-se àquele a devolução do
prazo, para não sofrer prejuízo). Contudo, mesmo não conhecido o recurso, a
Administração pode exercer seu poder de autotutela, revendo de ofício o ato
ilegal, ressalvada, é óbvio, a hipótese de preclusão administrativa.122
A autoridade administrativa que rejeita recurso administrativo numa instância não pode
participar dele ou decidi-lo em outra, caso seja erigida a patamar hierárquico
superior. Haverá impedimento, com lastro no art. 18 da Lei no 9.784/1999. Ofensa a esse
impedimento rende ensejo à anulação da decisão, como já se reconheceu, a nosso
ver, acertadamente.123
Se houver fatos novos ou circunstâncias relevantes, pode o interessado
requerer a revisão de processo sancionatório
já findo, alvitrando a correta adequação da sanção aplicada.124
A Lei no 11.417, de 19.12.2006, que regulamentou o art. 103-A da CF,
introduziu algumas alterações no sistema de recursos previsto na Lei no 9.784/1999. Primeiramente,
acrescentou o § 3o ao art. 56, estabelecendo que, se o recorrente alegar que a
decisão administrativa contraria enunciado de súmula vinculante,
deve a autoridade decisória, no caso de não a reconsiderar, consignar, de forma
explícita, antes da remessa do recurso à autoridade superior, os motivos da
aplicabilidade ou inaplicabilidade da súmula, conforme a hipótese. Significa,
assim, que o administrador tem a obrigação de cumprir esse requisito de ordem
material (a explicação de sua conduta) e de ordem formal (a
exigência da justificativa formalizada no ato de reapreciação do recurso).
Outra alteração diz respeito à atuação do órgão competente para a
decisão do recurso: a ele também compete explicitar os motivos da
aplicabilidade ou inaplicabilidade do que consta no enunciado da súmula
vinculante, se o recorrente tiver alegado esse tipo de ofensa. Caso acolhida a
reclamação proposta pelo interessado, o STF dará ciência ao órgão prolator
da decisão e ao órgão competente para julgar o recurso, para que as futuras
decisões sobre o assunto guardem adequação ao que dispõe a súmula vinculante
desrespeitada pela decisão administrativa, pena de responsabilização pessoal no
âmbito cível, administrativo e
penal (arts. 64-A e 64-B, Lei no 9.784/1999, introduzidos pela citada Lei no 11.417/2006).
7.7.Processo
Administrativo Disciplinar
SENTIDO E FUNDAMENTO – Processo administrativo-disciplinar
é o instrumento formal através do qual a Administração apura a existência de infrações
praticadas por seus servidores e, se for o caso, aplica as sanções adequadas.125
Quando uma infração é praticada no âmbito da Administração, é
absolutamente necessário apurá-la, como garantia para o servidor e também da
Administração. O procedimento tem que ser formal para permitir ao autor do fato
o exercício do direito de ampla defesa, procurando eximir-se da acusação a ele
oferecida.
O fundamento do processo em
foco está abrigado no sistema disciplinar que vigora na
relação entre o Estado e seus servidores. Cabe à Administração zelar pela
correção e legitimidade da atuação de seus agentes, de modo que quando se
noticia conduta incorreta ou ilegítima tem a Administração o poder jurídico de
restaurar a legalidade e de punir os infratores. A hierarquia administrativa,
que comporta vários escalões funcionais, permite esse controle funcional com
vistas à regularidade no exercício da função administrativa. A necessidade de
formalizar a apuração através de processo
administrativo é exatamente para que a Administração conclua a
apuração dentro dos padrões da maior veracidade.
BASE NORMATIVA – O processo disciplinar
se regula por bases normativas diversas. Incide para esse tipo de processo o princípio da disciplina
reguladora difusa, e isso porque suas regras, a tramitação, a competência,
os prazos e as sanções se encontram nos estatutos funcionais das diversas
pessoas federativas. Contrariamente sucede nos processos judiciais, sujeitos
à disciplina reguladora concentrada, porque todo o sistema básico
se situa num só diploma legal e apenas os ritos especiais se alojam em leis
especiais.
Cada pessoa federativa tem autonomia, como já vimos, para instituir o
seu estatuto funcional. A liberdade para a instituição das regras do processodisciplinar só esbarra nos
mandamentos constitucionais. Fora daí, a União, os Estados, o Distrito Federal
e os Municípios estabelecem suas próprias regras para esse tipo de processo. Por essa razão, quando se quiser
verificar alguma questão sobre tramitação de processos disciplinares,
necessária será a consulta ao estatuto da pessoa federativa que tenha
instaurado o respectivo processo disciplinar.
Registramos aqui esse fato porque é comum a consulta à Lei no 8.112/1990, o Estatuto dos
Servidores Civis da União. Esse diploma, porém, só se aplica aos processos
disciplinares relativos aos servidores federais.
OBJETO – O objeto do processo
administrativo-disciplinar é a averiguação da existência de alguma
infração funcional por parte dos servidores públicos, qualquer que seja o nível
de gravidade.
Não nos parece correta a afirmação segundo a qual o processo administrativo “é o meio de
apuração e punição de faltas graves dos servidores públicos”.126 O processo serve tanto para as faltas graves como para as
leves, pois que é preciso considerar que a apuração é que vai levar à conclusão
sobre a maior ou menor gravidade da falta. Por esse motivo é que entendemos que
o art. 41, § 1o, I e II, da CF, que dispõe que o servidor estável só perderá o cargo
por força de sentença judicial ou processo
administrativo com ampla defesa, apenas se refere ao processo administrativo para sinalizar
um meio alternativo de apuração no que concerne à sentença judicial. O
dispositivo, contudo, há de ser interpretado em consonância com o art. 5o, LV, da CF, que contempla o princípio
da ampla defesa e contraditório, de modo que não apenas a perda do cargo mas
qualquer infração e punição pressupõem a instauração de processo administrativo.127 Em última instância, nem
precisaria haver menção ao processo
administrativo no art. 41, § 1o; mesmo sem ela, o processo seria imprescindível para gerar eventual punição
ao servidor.128
A averiguação de faltas funcionais constitui um poder-dever da
Administração. Não se pode conceber qualquer discricionariedade nessa atuação,
porquanto o princípio da legalidade é de observância obrigatória para todos os
órgãos administrativos. E, como é óbvio, não se observa esse princípio se não
for apurado desempenho funcional revestido de irregularidade ou de ilegalidade.
É tão importante a apuração que a Administração normalmente instaura ex
officio o processo disciplinar.
A apuração é o objeto precípuo do processo disciplinar.
Mas o resultado do processo pode
levar a duas condutas administrativas. Uma delas é a aplicação da sanção ao
servidor que tiver cometido a falta funcional. A outra é o arquivamento do
feito, no caso de ficar demonstrada a ausência da infração.
SINDICÂNCIA – Na correta visão de CRETELLA JR., sindicância “é o meio
sumário de que se utiliza a Administração Pública, no Brasil, para, sigilosa ou
publicamente, com indiciados ou não, proceder à apuração de ocorrências
anômalas no serviço público, as quais, confirmadas, fornecerão elementos
concretos para a imediata abertura de processo
administrativo contra o funcionário público responsável”.129
Essa é a clássica e precisa noção de sindicância. Trata-se da
denominação usualmente dispensada ao procedimento administrativo que visa a permitir uma apuração
preliminar sobre a existência de ilícito funcional. É através da
sindicância que se colhem os indícios sobre:
a)a existência da infração funcional;
b)sua autoria; e
c)o elemento subjetivo com que se
conduziu o responsável.
Reveste-se de caráter inquisitório, porque é processo não litigioso; como
consequência, não incide o princípio da ampla defesa e do contraditório.130Caracteriza-se por ser procedimento
preparatório, porque objetiva a instauração de um processo principal, quando for o caso,
obviamente. Por esse motivo, o princípio da publicidade é aqui atenuado, porque
o papel da Administração é o de proceder a mera apuração preliminar, sem fazer
qualquer acusação a ninguém. Decorre daí que a autoridade que presidir ao
procedimento não tem poderes para intimar terceiros a prestar depoimento,
porque tais poderes são próprios das autoridades judiciais ou policiais, por
força de lei.131
Convém anotar, todavia, que a Administração deve garantir ao defensor do
investigado, mesmo em processo inquisitório,
o acesso amplo aos elementos de prova pertinentes ao direito de defesa,
conforme já assentado na Súmula Vinculante nº 14 do STF. Para reforçar essa
garantia, a Lei nº 8.906/1994 (Estatuto da OAB) confere ao advogado o direito
de examinar autos de investigação de qualquer natureza, embora possa haver
delimitação do acesso em situações especiais, bem como de assistir a seus
clientes durante a apuração, podendo apresentar razões e quesitos. A
inobservância de tais direitos pelo agente responsável implicará sua
responsabilização criminal e funcional por abuso de autoridade, sem prejuízo de
o advogado recorrer ao órgão judicial.132
Outro aspecto que, desde já, merece observação, principalmente em
virtude da funda confusão que costuma ser feita, é o de que a
sindicância também é um processo
administrativo, como tantos outros que tramitam pela Administração.
Desse modo, pode haver dois processos administrativos interligados – a
sindicância e o processo disciplinar
principal. A despeito de terem a mesma natureza, é simples apontar a distinção
fundamental: enquanto a sindicância é processo
administrativo preparatório, inquisitório e tem por objeto uma
apuração preliminar, o processo disciplinar
principal é definitivo, contraditório e tem por objeto a apuração principal e,
quando for o caso, a aplicação de sanção.
Por essa razão, pode o órgão administrativo instaurar
diretamente o processo administrativo principal
sem que se tenha instaurado previamente a sindicância; para tanto, basta que já
estejam presentes os elementos probatórios que lhe sirvam de suporte para
a acusação.133 É o mesmo que ocorre em relação à
ação penal, que também pode ser promovida pelo Ministério Público sem o prévio
inquérito policial.
Outro ponto a sublinhar é o relativo à questão da nomenclatura. O
termo sindicância indica apenas a denominação usualmente dada
a esse tipo especial de processo preparatório.
Lamentavelmente, para aumentar a confusão, nem sempre os processos preliminares
e preparatórios são nominados de sindicância, e, o que é pior, há alguns casos
em que processos denominados de sindicância não têm a natureza clássica desse
procedimento preparatório. Como enfrentar essa dúvida? Do modo mais simples
possível, ou seja, dando maior relevo ao aspecto da natureza do processo, e não ao de sua denominação. Quer
dizer: mesmo que o processo seja
denominado de sindicância, deverá ser tratado como processo disciplinar principal no caso
de ter o mesmo objeto atribuído a esta categoria de processos.
O Estatuto federal contém um bom exemplo do que consideramos. Dispõe,
primeiramente, que a apuração de irregularidade no serviço público se formaliza
mediante sindicância ou processo
administrativo disciplinar (art. 143). Mais adiante, consigna que
da sindicância poderá resultar aplicação de penalidade de advertência
ou suspensão de até 30 dias (art. 145, II). Ora, só por esse texto se
pode verificar que essa sindicância só tem o nome de sindicância, mas sua
natureza é a de processo disciplinar
principal, porque somente dessa categoria pode resultar aplicação de
penalidades. Assim, nesse tipo de sindicância, que tem caráter acusatório, há
repercussão do princípio da ampla defesa e do contraditório, sendo
inconstitucionais quaisquer dispositivos estatutários que dispensarem essa
exigência.134 Repita-se, contudo, que
esse processo não
corresponde à noção clássica da sindicância.
A jurisprudência tem diferenciado os dois tipos de sindicância. Quando
se trata da verdadeira sindicância, como processo preliminar,
tem sido dispensado o princípio da ampla defesa e do contraditório.135 Ao contrário, quando o nome é de
sindicância, mas a natureza é a de processo disciplinar
principal, a exigência tem sido considerada impostergável e sua dispensa
decidida como nula.136
INQUÉRITO ADMINISTRATIVO – Essa é outra expressão que, por
sua imprecisão, tem provocado diversos sentidos.
Em primeiro lugar, devemos atentar para o fato de que a expressão inquérito administrativo (ao contrário da
sindicância) deve indicar a natureza jurídica de um processo administrativo, e não sua denominação. Isso
é que desde logo precisa ser observado. Mas nem sempre tem sido assim.
Parece-nos que se possam encontrar três sentidos para a expressão inquérito administrativo.
O primeiro é o que traduz a natureza jurídica da sindicância. Em outras
palavras: pode dizer-se que a sindicância, em sua concepção tradicional e
técnica, tem a natureza jurídica de um inquérito administrativo. O sentido aqui leva em conta a noção de inquérito,
de inquirição, interrogatório.137 Ou seja: considera o aspecto
inquisitivo, próprio da sindicância, que é, como vimos, processo administrativo preparatório.138
O inquérito administrativo tem
ainda sido empregado como indicativo do processo disciplinar
principal, o que já retrata uma distorção de seu sentido técnico. É nesse
sentido que comumente se ouve a afirmação de que fulano ou beltrano estão
respondendo a um inquérito administrativo.
Só que nesse inquérito há contraditório, ampla defesa, produção de provas e
aplicação de pena. Obviamente não é inquérito, mas sim processo administrativo principal.
E finalmente pode o inquérito administrativo significar
uma das fases do processo disciplinar
principal, ou seja, aquela em que a prova é produzida. É exatamente esse o
sentido adotado pela Lei no 8.112/1990, o Estatuto federal, ao dispor que o processo disciplinar se desenvolve em
três fases:
a)instauração;
b)inquérito administrativo, que compreende instrução,
defesa e relatório; e
Por tudo o que procuramos diferenciar, para evitar dúvidas, repetimos o
que nos parece mais aconselhável em relação ao múltiplo sentido da
expressão inquérito administrativo:
o exame do contexto em que é empregada. Tanto serve como natureza jurídica da
sindicância; ou como processo disciplinar
principal; ou finalmente como a fase de instrução do processo disciplinar principal.
PROCESSO DISCIPLINAR PRINCIPAL – Depois de tudo o que foi dito a
respeito de sindicância e de inquérito administrativo,
não parece difícil identificar o que é o processo disciplinar
principal.
Processo disciplinar principal, ou simplesmente processo disciplinar, é todo aquele que
tenha por objeto a apuração de ilícito funcional e, quando for o caso, a
aplicação da respectiva sanção, seja qual for a expressão adotada para
denominá-lo.
É este o processo administrativo litigioso,
acusatório e definitivo que exige a incidência do princípio da ampla defesa e
do contraditório, e o do devido processo legal. Este,
e somente este, é que, ao seu final, permite ao administrador aplicar a
penalidade adequada quando tiver sido efetivamente verificada a ocorrência de
infração funcional.
Uma vez instaurado o processo disciplinar
principal, a sindicância preliminar fica superada, de modo que nada mais há a
impugnar nesse procedimento, sabido que o interessado terá o direito ao
contraditório e ampla defesa no feito principal. Por isso, já se decidiu
que, “instaurado o processo
administrativodisciplinar, não há que se alegar mácula na fase de
sindicância, porque esta apura as irregularidades funcionais para depois
fundamentar a instauração do processopunitivo,
dispensando-se a defesa do investigado nessa fase de mero expediente
investigatório”.140
O processo disciplinar
principal é autônomo e terá inteira legitimidade se observar as regras
reguladoras. Por isso, não depende do processamento de sindicância prévia como
condição para sua instauração. Tal condição só se afigura admissível se a lei
disciplinadora do processo expressamente
o exigir, o que é raro de ocorrer. Caso a autoridade já tenha elementos
suficientes para realizar o processo principal,
dispensável, no silêncio da lei, será a instauração de prévia sindicância. O
STJ, aliás, já firmou o correto entendimento de que, “contando com os
elementos concretos mais do que suficientes para a instauração do processo administrativo, dispensável era a
utilização da sindicância”.141
A deflagração do processo,
em linha de princípio, não deve dar-se em virtude de denúncia anônima,
o que se funda no art. 5o, IV, da CF, que veda o anonimato. Por conseguinte, o denunciante deve qualificar-se
e formular a denúncia por escrito; correta, pois, a exigência contida no art.
144, caput, da Lei no8.112/1990. Entretanto, tal exigência vem sendo
mitigada para o fim de examinar-se caso a caso a hipótese, sendo lícito à
Administração, em situações excepcionais e ante denúncia relatada com aceitável
grau de seriedade, proceder ex officio para apuração do
ilícito.142
Como regra, os estatutos submetem a direção e a condução do processo a uma comissão disciplinar,
cuja composição e atuação se sujeitam a determinadas condições, também
previstas na lei estatutária. A Administração está obrigada a observar apenas
as restrições legais. Assim, por exemplo, se não há previsão legal, pode a
comissão ser integrada por servidor lotado em unidade federativa diversa
daquela em que atua o servidor processado.143
PROCEDIMENTO – Já deixamos anotado que o processo
administrativo disciplinar não tem uma regra única de tramitação.
Como figuram nos estatutos funcionais, e estes são resultado do poder de
auto-organização das pessoas federativas, o procedimento sofre algumas
variações, embora não lhes seja lícito afrontar qualquer mandamento
constitucional ou legal. É preciso lembrar que o agente atua na via
administrativa, motivo suficiente para que seus atos, nos processos
disciplinares, sejam corrigidos pelo Poder Judiciário se inquinados de abuso de
poder.144
Mesmo com tais possíveis variações, é possível delinear a tramitação
comum dos processos disciplinares, apontando certa sequência lógica das fases
que os compõem.
A deflagração do processo se
dá com a instauração. Embora normalmente formalizada por portaria,
esse ato administrativo pode
receber denominação diversa. O que interessa, na verdade, é verificar seu
conteúdo indicativo da intenção de deflagrar o processo. O ato de instauração deve conter todos os elementos
relativos à infração funcional, como o servidor acusado, a época em que ocorreu
e tudo o que possa permitir o direito de ampla defesa por parte do acusado.
Conquanto os fatos devam ser relatados com a maior fidelidade possível, à
semelhança do que ocorre com a denúncia oferecida pelo Ministério Público
no processo penal,145 revela-se possível que, após a
instrução, seja complementada a situação fática que dá suporte à acusação.146 O que não se pode é descartar a
oportunidade de conferir-se ao acusado o direito ao contraditório e à ampla
defesa. Ademais, o processo disciplinar
pode ser instaurado e não precisa ser suspenso mesmo diante de ação penal já
proposta, incidindo aqui o princípio da independência de instâncias.147
Segue-se a fase da instrução, na qual a Administração colige
todos os elementos probatórios que possam respaldar a indicação de que a
infração foi cometida pelo servidor. Para essa fase, deve a comissão
responsável pela condução do processo providenciar
a citação do servidor para acompanhar a prova, porque somente
assim estará observando o princípio do contraditório e da ampla defesa. Havendo
prova testemunhal, tem o servidor o direito de formular indagações às
testemunhas. Como já anotamos, pode ser recusado o depoimento de testemunhas
arroladas única e exclusivamente com o propósito de procrastinar a tramitação
do processo; tal conduta
configura-se como condenável desvio de finalidade.148 A intimação das testemunhas deve
ser feita com três dias de antecedência, aplicando-se aqui, subsidiariamente
aos estatutos, o art. 41 da Lei no 9.784/1999.149
Em outro giro, a jurisprudência tem admitido – a nosso juízo,
corretamente – o uso de prova emprestada legalmente produzida
em processo criminal, ainda
que não tenha ocorrido a coisa julgada.150 Admite-se, inclusive, o
empréstimo dos dados oriundos de interceptação telefônica produzida
na ação penal, desde que autorizada pelo juiz.151 No caso, deve considerar-se a
idoneidade da prova e a irradiação de seus efeitos: se o fato foi provado
regularmente no processo criminal,
nada impedirá seja provado, da mesma forma, no processo administrativo. O que prevalece, então, é a busca da
verdade real.
Como não há o formalismo dos processos judiciais, pode o servidor
comparecer sozinho ou ser representado por advogado munido do necessário
instrumento de procuração. Essa fase de instrução, apesar de estar mais a cargo
da Administração, há de exigir a presença do servidor acusado. É a amplitude da
fase instrutória que permite – já o dissemos, mas cumpre reiterar pela
relevância do assunto – o recurso à prova emprestada, desde que
obtida licitamente, como é o caso, v. g., da interceptação
telefônica autorizada judicialmente em processo criminal.152 Aliás, convém anotar que as
exigências probatórias da Administração devem ser o menos possível onerosas
para o administrado.153 Na verdade, o intuito do processo reside, como já se salientou,
na busca da verdade material. Quanto à admissibilidade de provas ilícitas,
veja-se o que observamos anteriormente no tópico relativo ao princípio da
verdade material.
Ultimada a instrução, é o momento de abrir a fase da defesa do
servidor, fase essa em que poderá apresentar razões escritas e requerer novas
provas, se as da instrução não tiverem sido suficientes para dar sustento a
suas razões.154 O que lhe é vedado é tentar
subverter a ordem do processo ou
usar de artifícios ilícitos para tumultuá-lo ou procrastiná-lo. Não sendo
verificada essa intenção, deve a comissão funcional permitir a produção de
prova da forma mais ampla possível, porque é essa a exigência do princípio do
contraditório e do devido processo legal.
Neste passo, reafirmamos o que já foi dito anteriormente. A defesa e o
acompanhamento do processo podem
ficar a cargo do próprio acusado, não sendo exigível que se faça representar
por advogado; a representação, por conseguinte, retrata uma faculdade conferida
ao acusado.155 Aliás, tal faculdade está
expressa no art. 3o, IV, da Lei no 9.784/1999, que regula o processo
administrativo federal. Exigível é apenas a presença de defensor
dativo, no caso de o acusado estar em lugar incerto e não sabido, ou se
houver revelia.156 Assim, parece dissonante a doutrina
que considera obrigatória a constituição de advogado.157 Da mesma forma, causa estranheza
a posição do STJ que considera obrigatória, genericamente, a
presença de advogado no processo
administrativo.158 Trata-se de orientação que
contraria a consagrada e, a nosso ver, acertada posição da doutrina, pela qual
é lícito que o interessado assuma a sua própria defesa ou, até mesmo, que
renuncie ao processo administrativo para
posterior recurso à via judicial.
O Supremo Tribunal Federal, entretanto, adotando posição que se nos
afigura inteiramente correta, recompôs o bom direito ao deixar sumulado, de
forma vinculante, que “a falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não
ofende a Constituição”.159 Diante de tal entendimento, a
defesa de acusado por advogado (capacidade postulatória) somente se
torna exigível no processo judicial,
foro, aliás, em que a presença do causídico se revela de fundamental
importância.160 Diga-se, ainda, que, se o acusado
não tiver qualquer interesse em defender-se no processo administrativo, seja por si, seja por meio de
advogado, terá sempre a garantia de fazê-lo no processo judicial, porque é nesse sentido que dispõe o
art. 5o, XXXV, da CF, que consagra o princípio do acesso à Justiça.
Concluída essa fase, segue-se a do relatório, peça formal
elaborada pela comissão processante, na qual deve ficar descrito tudo o que
ocorreu no processo, tal como
ocorre na sentença judicial. Descritos todos os elementos do processo, a comissão os analisará e firmará
os fundamentos que levem à conclusão opinativa. Em outras palavras, a comissão
apenas opina, mas para tanto deverá expor detalhadamente os
fundamentos de seu opinamento. Esses fundamentos são de suma importância,
porque a autoridade decisória, como hábito, limita-se a acolher esses
fundamentos e utilizá-los como motivo de sua decisão, seja para aplicar a
sanção ao servidor, seja para concluir que a hipótese não é a de apenação.
A última fase é a da decisão, em que a autoridade que
tenha essa competência vai julgar o processo à
luz dos elementos do relatório e dos contidos no próprio processo. Referido ato decisório, contudo,
merece alguns comentários. Em primeiro lugar, trata-se de ato administrativo, que, para ser válido e
eficaz, precisa estar dotado de todos os seus requisitos de validade (a
competência, a forma, a finalidade, o objeto e o motivo). Depois, é preciso
considerar duas hipóteses distintas. Na primeira, a autoridade julgadora aceita
todos os fundamentos e o opinamento da comissão processante, inclusive quanto à
penalidade a ser aplicada. Nesse caso, quando o julgador acolhe o relatório em
todos os seus termos e, para evitar a repetição de tudo o que dele consta,
decide no sentido da aplicação da sanção ao servidor, ou de sua absolvição, o
ato decisório terá como motivo os fundamentos do relatório e como
objeto a punição nele sugerida. Portanto, o ato tem motivo e tem
objeto; o motivo, porém, é encontrado nos fundamentos do relatório,
inteiramente acolhidos pelo julgador. Se o servidor quiser impugnar a validade
desse ato, por alguma razão de legalidade, deverá identificar alguns aspectos
do ato dentro do próprio relatório.
Pode ocorrer, entretanto, que o julgador discorde dos termos do
relatório da comissão processante. Essa discordância pode traduzir:
a)a aplicação da sanção, quando o
relatório indicou a absolvição;
b)a absolvição, quando o relatório
opinou pela apenação; e
c)a aplicação de sanção diversa (mais
grave ou mais leve) daquela sugerida pela comissão.
No que se refere à apenação mais grave (reformatio in pejus), é
importante assinalar que a autoridade decisória não está vinculada, como visto,
à apreciação opinativa da comissão processante, por isso que nada impede que
aplique penalidade mais severa. O STJ, a nosso ver acertadamente, já decidiu
que “é lícito à autoridade administrativa competente divergir e aplicar
penalidade mais grave que a sugerida no relatório da comissão disciplinar. A
autoridade não se vincula à capitulação proposta, mas sim aos fatos”.161 O STF, a seu turno, já abonou
esse entendimento.162
Seja qual for a hipótese, no entanto, o ato decisório, como é
cristalino, precisará ter seus próprios fundamentos, os quais terão linhas
diferentes dos fundamentos expendidos pela comissão. Em outras palavras, o
motivo do ato decisório é diverso do motivo do opinamento da comissão, e,
desse modo, é necessário que o julgador exponha detalhadamente seu motivo no
ato para que o servidor possa identificar, com precisão, o que vai impugnar em
eventual recurso administrativo ou
ação judicial.163
É preciso registrar que o eventual agravamento da sanção proposta pela
comissão de inquérito é corolário natural do caráter decisório do julgamento a
ser proferido pela autoridade superior. Não poderia esta ficar sempre à mercê
do opinamento da comissão quando a prova dos autos o contrariasse de modo
insofismável. O que não se pode dispensar – insista-se – é a transparência dos
fundamentos da decisão, por isso que eles é que constituem o foco de defesa do
acusado. O próprio estatuto federal consigna a possibilidade. Reza o art. 168,
parágrafo único, da Lei no 8.112/1990: “Quando o relatório da comissão contrariar as
provas dos autos, a autoridade julgadora poderá, motivadamente, agravar a
penalidade proposta, abrandá-la ou isentar o servidor de responsabilidade.”
Em que pese situar-se no estatuto federal, a norma aplica-se aos estatutos
de todas as pessoas federativas, ainda que não haja norma expressa em idêntico
sentido.164
Ultimado o processo administrativo,
e não havendo previsão de recurso com efeito suspensivo, a penalidade pode ser
aplicada de imediato. No caso, vigora a prerrogativa da autoexecutoriedade
administrativa, pela qual pode a Administração dar execução, desde logo, aos
atos que pratica.165
Neste passo, convém salientar que, a despeito de uma minoria divergente,
predomina o entendimento de que a penalidade de demissão pode
ser aplicada pela Administração com fundamento em ato de improbidade
administrativa praticado pelo servidor acusado. Assim, não se torna compulsória
a ação judicial. A Lei no 8.429/1992, que regula a improbidade administrativa, não revogou a
Lei no 8.112/1990, subsistindo, portanto, os dispositivos desta última
que disciplinam a matéria.166
Outro ponto importante a ser observado reside na necessária obediência
da Administração ao princípio da proporcionalidade (ou
da adequação punitiva), atualmente inegável garantia do
administrado ou servidor contra abusos de autoridade. Significa que a aplicação
desproporcional de penalidade mais grave do que exigiria a infração funcional
constitui ato ilegal, suscetível de anulação na via administrativa ou judicial,
sem prejuízo, é claro, da possibilidade de ser aplicada a sanção adequada à
conduta ilícita.167 Uma das formas de ofensa ao
princípio é exatamente o agravamento da sanção, sem a fundamentação necessária,
a despeito de ter sido sugerida punição menos grave.168
Cumpre anotar, no entanto, que não incide, no processo disciplinar, o princípio
da insignificância, acolhido na esfera penal, quando o servidor obtém
proveito econômico indevido; ou seja: é irrelevante o quantum da
vantagem ilícita.169 Em outra vertente, sempre é bom
lembrar que a ofensa à proporcionalidade, por constituir matéria de mérito,
deve ser apurada em procedimento processual ordinário, sendo
incabível fazê-lo em mandado de segurança, em razão da sumariedade do rito.170
De outro lado, havendo o reconhecimento de que as condutas têm gradação
diversa quanto à gravidade, não podem seus autores, como regra, receber
idêntica sanção, a menos que o aplicador mencione expressamente os motivos
adicionais que conduziram à punição. Aplicar sanções idênticas para
comportamentos de gravidade diversa ofende o princípio da proporcionalidade,
porque de duas uma: ou um dos punidos mereceu sanção menos grave do que devia,
ou o outro recebeu sanção mais grave do que merecia. Claro que tal sistema
punitivo vulnera a equidade e qualquer regra lógica de direito.
Quanto ao prazo para a ultimação do processo disciplinar, alguns estatutos
funcionais mais detalhados o estabelecem e ainda preveem prazos para as
diversas fases do procedimento. O desejável é que a Administração observe o que
neles está definido, evitando-se os vários efeitos que a inércia pode provocar.
Contudo, a eventual inobservância do prazo conclusivo, desde que não seja
desarrazoada, não encerra necessariamente ilegalidade, mas mera irregularidade,
e não pode ter causado prejuízo ao acusado.171
O STJ decidiu interessante questão sobre tal matéria. Em processo disciplinar para apuração de
irregularidades cometidas por servidores do INSS, o relatório da comissão
recomendou a pena de demissão para o servidor responsável, por seu elevado grau
de culpa, e a sanção de advertência para os demais implicados. Todavia, todos
acabaram sendo demitidos. Em mandado de segurança, o Tribunal, entendendo ter
havido ofensa aos princípios da individualização e da proporcionalidade,
proferiu decisão – de técnica jurídica digna de aplausos, diga-se de passagem –
no sentido de conceder a ordem para o fim de anular o ato demissório e
determinar a reintegração dos servidores, sem prejuízo de lhes ser aplicada a
sanção adequada. Como se vê, os impetrantes não ficaram imunes ao poder sancionatório,
mas sim à punição desproporcional que sofreram.172
De tudo o que demonstramos, parece claro que tais cuidados são exigíveis
para permitir, de forma clara, o exercício de um dos mais importantes direitos
fundamentais, qual seja, o de recorrer ao Judiciário para controle da
legalidade dos atos administrativos.173
Na verdade, esse controle é essencial para garantir a observância do
princípio da legalidade, porquanto ninguém desconhece que alguns efeitos
oriundos de decisão do processo disciplinar
são extremamente gravosos. O arbítrio de alguns administradores pode acarretar
irreversíveis prejuízos ao servidor. Essa é a razão por que, atualmente, cresce
a tendência de reduzir o espaço impenetrável de averiguação dos elementos
fáticos e jurídicos exercida pelo Poder Judiciário, sobretudo porque nos feitos
administrativos não é exigida a imparcialidade própria dos julgadores de
litígios. Ampliar a perscrutação do juiz no processo
administrativo é assegurar maior garantia de legalidade aos
acusados, e é nesse sentido que se encontra o sentimento atual de controle
judicial.174 Nessa investigação – como
acentuam os estudiosos – devem ser apreciados todos os elementos do ato
punitivo, especialmente a motivação conducente ao desfecho
sancionatório.175
O controle de legalidade, todavia, deve observar a sequência normal das
instâncias do Judiciário, não sendo permitida a supressão de nenhum grau de
jurisdição. Desse modo, é incabível a interposição de recurso extraordinário
contra qualquer decisão de caráter administrativo,
uma vez que inexiste causadecidida em última ou única instância por
órgão do Poder Judiciário no exercício da função jurisdicional, o que, de
resto, é exigido no art. 102, III, da CF.176
O controle, entretanto, não chega ao extremo de permitir a majoração ou
alteração da sanção administrativa imposta a servidor, já que, como deixou
corretamente assentado o STJ, “deve o Judiciário levar em conta o princípio
da legalidade, sem esquecer que a mensuração da sanção administrativa é feita
pelo juízo competente – o administrador público –, sendo defeso ao Judiciário
adentrar no mérito administrativo”.177
PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE – Questão que tem suscitado funda controvérsia
diz respeito à interrupção da prescrição da pretensão punitiva, quando
instaurada a sindicância ou o processo disciplinar,
sendo que a interrupção perdura até a decisão final proferida pela autoridade
administrativa, conforme figura em alguns estatutos funcionais.178
A norma, tal como é apresentada, parece permitir que a interrupção se
prolongue até o infinito, bastando, para tanto, que não seja proferida decisão
no respectivo processo administrativo.
Se assim fosse, seria imperioso reconhecer a total inexistência de proteção do
servidor público, sujeito a uma prescrição que dependeria da conclusão do processo.179
Entretanto, quando o processo disciplinar
é sujeito a prazos fixados na lei, e nesse caso está o Estatuto federal,180 o prazo prescricional volta a
correr após o período conferido à Administração para concluir o processo. Ocorre, no caso, a prescrição
intercorrente. Nesse sentido se têm orientado os Tribunais181 e a doutrina.182
MEIOS SUMÁRIOS – Tradicionalmente os autores, na matéria pertinente ao poder
disciplinar do Estado, têm feito referência aos chamados meios
sumários,que seriam instrumentos céleres e informais para a apuração
de infrações funcionais e para a aplicação de sanções. É clássico, por exemplo,
o ensinamento de HELY LOPES MEIRELLES de que haveria três meios sumários de
penalização: a sindicância, a verdade sabida e o termo de declarações. Pela
sindicância, haveria rápida apuração e apenação. A verdade sabida é a hipótese
em que a autoridade toma conhecimento pessoal da infração (como a
insubordinação do servidor), ou quando a infração é de conhecimento público
(por exemplo, a notícia na imprensa). E o termo de declarações se traduz pelo
depoimento do servidor, que, confessando a prática da infração, se sujeita à
aplicação da sanção.183
Essas formas sumárias de apuração, contudo, não mais se compatibilizam com
as linhas atuais da vigente Constituição. As normas constantes de estatutos
funcionais que as preveem não foram recepcionadas pela Carta de 1988, que foi
peremptória em assegurar a ampla defesa e o contraditório em processos
administrativos onde houvesse litígio, bem como naqueles em que alguém
estivesse na situação de acusado.
Quanto à sindicância sumária, já vimos exaustivamente que tal processo não pode gerar punição, e se
vai gerar não é sindicância, mas sim processodisciplinar
principal. Não mais serve como meio sumário de punição. A verdade sabida e o
termo de declarações, a seu turno, também não dão ensejo a que o servidor
exerça seu amplo direito de defesa. Não há guarida, portanto, para tais
mecanismos de apuração em face da atual Constituição. Aliás, nem se precisa ir
muito longe. A cada momento em que um servidor é tido como merecedor de sanção,
é lógico que a Administração o está acusando da prática de uma infração. Se é
acusado, tem o direito à ampla defesa e ao contraditório. Mesmo que a infração
seja leve e possa dar causa a uma mera advertência, deve instaurar-se o processo disciplinar e proporcionar o
regular contraditório.184
Esse entendimento, já aceito entre os modernos doutrinadores, tem sido
abonado por decisões judiciais, sensíveis ao quadro normativo constitucional e
ao novo delineamento que vigora sobre a matéria.185
Fonte: Manual de Direito Administrativo. Carvalho Filho