Inclusão
Social e Direito: por uma Democracia Constitucional**
Por Tassos
Lycurgo*
*Tassos
Lycurgo é Professor Adjunto da UFRN e Advogado (OAB/RN); É Doutor em Estudos
Educacionais – Lógica (UFRN), com pós-doutorado em Sociologia Jurídica (UFPB);
Mestre em Filosofia Analítica (University of Sussex, Reino Unido); Graduado em
Direito (URCA) e em Filosofia (UFRN). Página Acadêmica: www.lycurgo.org
**
Embora eventuais erros e imprecisões aqui vislumbrados sejam de inteira
responsabilidade do autor, muitos dos acertos se devem à revisão efetuada por
Camila C. M. F. M. Lycurgo, a quem o autor gostaria de registrar o seu sincero
agradecimento.
Resumo
O
argumento a ser desenvolvido neste artigo se divide em dois grandes momentos. Primeiramente,
mostrar-se-á como a inclusão social se correlaciona com termos
constitucionalmente resguardados tais como o de cidadania e o de democracia.
Demonstrar-se-á, oportunamente, a relevância dos direitos sociais como
elementos centrais no diálogo entre os referidos termos. Posteriormente, apresentar-se-ão
três pilares da efetivação da democracia constitucional no Brasil: estímulo às
políticas públicas de incentivo à educação social, fomento de uma cultura
política de respeito irrestrito aos direitos humanos e, por último, promoção radical
da justiça social, mormente por meio da valorização de instituições como a da Justiça
do Trabalho, a do Parquet Laboral e a
do Ministério do Trabalho e Emprego. Na breve conclusão, tecer-se-ão algumas considerações
sobre o desemprego e sobre o desafio da promoção da humanidade social, com a
qual toda a sociedade deve estar comprometida.
Palavras-chave:
Inclusão
Social, Direitos Sociais, Democracia Constitucional, Cidadania Social
1. Introdução: a questão da inclusão
social
Definir inclusão social não é tarefa de
estreita envergadura. Há, contudo, relativo consenso na afirmação de que não se
poderia considerar incluso na sociedade um indivíduo a quem fossem negados
direitos mínimos, constitutivos de sua própria cidadania. É dizer, em outras palavras,
que a inclusão social não poderia dar-se senão pelo efetivo gozo das vantagens
e necessário cumprimento dos deveres que o status
individual de inserção social é capaz de oferecer. Tais direitos não hão de ser
restringidos; pelo contrário, abrangem não apenas os civis e políticos, mas
também – e principalmente – os sociais. Diante disso, parece, pelo menos por
ora, bastante razoável definir inclusão social como um estado individual do
cidadão em que ele se sente socialmente confortável a exercer a sua cidadania
plena.
É importante reiterar que a
cidadania não se restringe apenas à cidadania política ou a esta e à civil,
como assim tradicionalmente é entendida. A cidadania plena, que nada mais é do
que o status do cidadão em um regime
democrático, engloba a assunção de que o indivíduo, entre outros direitos, tem
acesso à saúde, à educação, ao trabalho decente, sendo, pois, uma cidadania
também social. A cidadania plena, portanto, notabiliza-se pelo acesso às
prestações positivas e negativas dos direitos constitucionalmente assegurados a
todos os seres humanos de uma dada sociedade.
2. Direitos de prestação positiva e
negativa
Embora
cada modalidade de direitos – civis, políticos, sociais, etc. – demande, em
certo momento, um agir do Estado e, em outros, um não agir, sendo, pois, todos
os direitos susceptíveis de serem interpretados como direitos positivos ou
negativos, cada um é predominantemente um meio de exigir uma prestação estatal
ou um mecanismo de evitar a ação arbitrária do Estado.
Os
direitos civis são direitos que predominantemente demandam um não agir do
Estado – ou uma não interferência na ação do cidadão –, sendo, assim, meios de
proteção contra indesejáveis arbitrariedades estatais, mormente por intermédio
de certas garantias constitucionalmente asseguradas, tais como a do direito à
propriedade privada (CR, art. 5º, XXII), que veda, entre outras, o confisco e a
desapropriação, salvo em casos excepcionais, a serviço da supremacia do
interesse público primário, ou seja, da coletividade. Inclusive na
horizontalização da eficácia desse direito, logo se vê a sua vertente positiva,
pois não há como se garantir a propriedade privada de forma civilizada senão
pelo custeamento pelo Estado de mecanismos de força que, pelo menos, coíbam os
crimes contra a propriedade, o que se faz, entre outras formas, pela manutenção
estatal das polícias militares.
Da
mesma forma, há direitos, como os políticos, que, se de um lado estabelecem um
aspecto negativo, consubstanciado na exigência, entre outras, do Estado não
interferir arbitrariamente na legítima escolha dos governantes por intermédio
do sufrágio (CR, art. 14), do outro, apresentam um aspecto positivo, que, no
caso, encontra materialização na exigência de que o Estado promova
periodicamente as eleições, de que mantenha com condições de pleno
funcionamento a Justiça Eleitoral, com seus servidores especializados e
equipamentos técnicos adequados, como as urnas eletrônicas, etc.
Há,
por fim, os direitos que têm como propósito predominante o de exigir do Estado
uma ação. São os denominados direitos de prestação positiva. Os direitos
sociais são os que melhor representam esta estirpe, pois exigem do Estado uma
prestação efetiva em favor dos cidadãos. Tais prestações são aquelas sem as
quais não se poderia conceber uma vida minimamente digna, ou seja, são as que garantem
acesso à saúde, à educação e, certamente, a um trabalho decente. Entre as
prestações negativas relativas aos direitos sociais, uma das mais polêmicas
concerne à exigência de que o Estado se abstenha de gastar recurso público em
outras áreas a ponto de comprometer o mínimo exigido pelas demandas sociais
básicas. A esta relação entre demanda social e recurso estatal disponível,
aplica-se a questão da reserva do possível, extremamente relevante para o tópico
da inclusão social.
3. A questão da reserva do possível
A
questão da reserva do possível, em outros termos, toma forma na pergunta de se
o princípio da dignidade humana (CR, art. 1º, III) – notabilizado pela demanda
social – pode ser limitado pela escassez de recursos econômicos do Estado. Primeiramente,
é de bom alvitre destacar que não há princípios absolutos, que não encontrem
situação fática em que tenham de ser mitigados em favor de outros valores. O
princípio da dignidade da pessoa humana, muitas vezes tomado como foco
nevrálgico da Constituição da República, “é o fim supremo de todo direito;
logo, expande os seus efeitos nos mais distintos domínios normativos para
fundamentar toda e qualquer interpretação” (Silva Neto, 2005, p. 21), gozando de
posição destacada no rol dos princípios por ser o elo entre o direito e seu
predicativo de fundamentalidade, mas, apesar de toda a sua importância, não há
de se sobrepor no plano fático a uma situação de real impossibilidade, como a
que decorre da honesta limitação de recursos estatais disponíveis.
Conclui-se,
assim, que a reserva do possível não se opõe à necessidade de se satisfação dos
anseios sociais no plano teórico, mas demonstra, por ouro lado, que o Estado
não pode ser compelido a fazer o impossível. Dessa forma, mantidos os honestos limites
da impossibilidade, o fomento à inclusão social não será atingido por um Estado
que não gasta mais do que pode, pois dele o contrário seria inexigível.
Pensa-se,
contudo, que apenas no caso de retrocesso social, em que o Estado brasileiro
abriria mão de conquistas sociais já atingidas, é que a justificação da reserva
do possível não prosperaria. As conquistas sociais têm efeito de catraca
(Efeito Cliquet), não podendo
retroceder, conforme defendeu o português Canotilho na primeira edição de sua
obra, apesar de este autor, em virtude da posterior evolução de Portugal no
campo social, ter relativizado a sua opinião já no prefácio à segunda edição,
em que declarou a morte da Constituição Dirigente, assim como em outras edições
e em obras mais recentes (Canotilho, 2001; 2002). Fato é que o Brasil de hoje
se assemelha a um Portugal desestruturado socialmente, em que ainda não estava
sob a égide do Direito Comunitário, de maneira que se pode afirmar que, tecnicamente
falando, caso se verifique retrocesso estatal nas conquistas sociais
brasileira, estar-se-á diante de gritante inconstitucionalidade, mormente por ferir
de morte as normas constitucionais de eficácia limitada e princípio
programático, na definição de José Afonso da Silva (1998).
4. Cidadania social e inclusão social
Eleger
a cidadania social como a mais relevante das manifestações de cidadania é
decorrência do fato de que a humanidade, independentemente da bandeira
ideológica que ostente, parece ter chegado a uma verdade histórica
relativamente consensual, qual seja, a de que um Estado mínimo, presente em
democracias liberais com relevante desigualdade social, em que não há vigorosa atenção
aos direitos sociais, não atende aos anseios mais básicos do ser humano, isto é,
não resolve os problemas decorrentes da desigualdade entre as pessoas. Potencializa-se
o problema pelos hodiernos desafios que decorrem da globalização do trabalho –
ou mundialização, como preferem os franceses –, que gradativamente precarizam
as relações laborais.
Mesmo
o modelo de Estado oposto ao liberal, qual seja, o do bem-estar social (Welfare State), encontra tremendos
desafios no ambiente de mundialização do trabalho, que promove a sua
precarização. A precarização do trabalho, entre outros fatores, impõe ao
estudioso do assunto que se proponha a analisar a questão com mais cuidado,
pois não mais é suficiente o vislumbre de que determinado Estado oferece
direitos sociais aos cidadãos para caracterizar a inclusão social. Faz-se
mister que a análise se volte principalmente para o plano fático, investigando
se tais direitos alcançam a sua efetividade, ou seja, saem da eficácia meramente
jurídica para atingir a sua eficácia social.
É,
pois, no ambiente em que a simples investigação teórica da legislação social
presente em determinado Estado se torna insuficiente, que se infere que entre
as mais diversas manifestações da cidadania, a mais importante de todas para
caracterizar a inclusão social é a cidadania social, ou seja, a verificação de
se os direitos de prestação predominantemente positiva, tais como os da saúde, da
educação e do trabalho, obtêm a sua plena efetividade.
Há
de se oferecer concretude fática à inclusão social por meio do oferecimento de
maior efetividade aos direitos sociais, pois, do contrário, ter-se-á um Estado
legalmente inclusivo e sociologicamente exclusivo, como, infelizmente, parece
ser o caso do Brasil. Veja-se que “a nova questão social que dá evidência aos
excluídos (...) também inclui, no debate, a opressão, a discriminação e a
dominação, exigindo um tratamento teórico-prático adequado, tendo por base as
relações sociais de exploração/expropriação” (Ribeiro, 2006, 159), de forma que
somente por meio de incansável ataque a elementos tais como “opressão”,
“discriminação” e “dominação” na relação entre capital e trabalho, que se
obterá a efetividade dos direitos sociais e, conseqüentemente, a tão almejada cidadania
plena, sem a qual, como em favor de que se argumentará, um Estado não haverá de
ser considerado democrático.
5. Democracia plena
Um Estado não pode ser considerado
democrático caso não desenvolva mecanismos assecuratórios do exercício pleno da
cidadania, ou seja, caso não execute, no plano fático, reais condições para a
concreta efetividade da inclusão social. É dizer que a democracia não pode ser
analisada no âmbito estritamente teórico, abstrato, em que não se toma o ser
humano enquanto pessoa, pois “sem levar em consideração as ‘condições’ e a
situação em que a democracia nasce e se desenvolve, dificilmente poderíamos
refletir sobre o tipo de regime sócio-político que vem se construindo nos
países da América Latina nestes últimos anos” (Vitulo, 2006, p. 355), configurando,
portanto, desonestidade intelectual atribuir o caráter de democrático a um país
cujo regime sociopolítico não se desenvolve em termos condizentes com tal
regime.
O
caso brasileiro é sintomático: aqui, há um bloco de legislação social
relativamente desenvolvido em termos mundiais, mas, paradoxalmente,
encontram-se as mais perversas formas de exploração da mão-de-obra
trabalhadora, a exemplo do labor exercido em condições análogas a de escravo,
do efetuado por trabalho infantil (da criança e do adolescente) ou por meio do
desvirtuamento das relações empregatícias, mormente pela presença do denominado
trabalho intermediado. Neste país, infelizmente, é forçoso admitir que, “apesar
da profusão na previsão de direitos que visam à proteção dentro do ambiente de
trabalho, a realidade é que não conseguimos garantir vida digna aos
trabalhadores, principais vítimas de crise que tem amplitude mundial” (Brito
Filho, 2004, p. 125).
Talvez
com esta providência, qual seja, a de levar às últimas conseqüências a idéia de
que não há democracia sem cidadania social, o Brasil, que se autodenomina
democrático em sua própria Constituição (CR, art. 1º), venha a se sentir
desconfortável no ambiente da comunidade internacional, pois seria pelos seus
cidadãos acusado de que é democrático apenas nominalmente, não o sendo na
realidade. Esta reformulação radical quanto à maneira pela qual tradicionalmente
a democracia vem sendo compreendida, juridicamente falando, não necessita de
quaisquer emendas ao texto da Carta Maior, senão de que ele passe pelo processo
informal da mutação constitucional.
Conforme
demonstrado com mais detalhes em outra oportunidade (Lycurgo, 2006), o conceito
de democracia é o vetor resultante de muitos significados que a tal termo têm
sido oferecidos no transcorrer da história do pensamento humano. O burburinho
vislumbrado na história, nada obstante, há de encontrar algum limitador no que
diz respeito aos conceitos juridicamente relevantes, dos quais se pode destacar
o que diz que o regime democrático se dá por “aquela forma de exercício da
função governativa em que a vontade soberana do povo decide, direta ou
indiretamente, todas as questões do governo, de tal sorte que o povo seja
sempre o titular e o objeto, a saber, o sujeito ativo e o sujeito passivo de
todo poder legítimo” (Bonavides, 1996, p. 17). Nada mais é, em outras palavras,
senão a vontade do Estado, segundo a qual “Todo poder emana do povo, que o
exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente (...)” (CR, art. 1º,
parágrafo único).
Finalmente, tem-se aqui o elemento
necessário para que se argumente que democracia sem cidadania social não se
enquadra no próprio conceito jurídico do termo, pois “todas as (...) situações
de privilégio, desigualdade e discriminação tendem à imutabilidade, eternizando
as mais graves injustiças sociais ou fazendo do homem, para sempre, um ente (...)
sem voz para o protesto e sem arma para o combate; (...) súdito e não cidadão”
(Bonavides, 1996, p. 19-20). Assim, onde se verifica efetividade de direitos
sociais, inexistindo, portanto, inclusão social, o ser humano não haverá de ser
considerado cidadão, em absoluto desacordo com o que preconiza o supracitado
parágrafo único do art. 1º da Constituição da República. Por fim, não se pode
esquecer que, dada a devida força normativa à Constituição da República,
interpretação da democracia que coloque à margem de seu conceito a inclusão
social ferirá de morte o referido artigo da Lei Maior, sendo, por conseqüência,
gritantemente inconstitucional.
Viu-se,
até este ponto, que a necessidade de implementação pelo Estado da inclusão
social, não apenas é condição para que ele seja considerado democrático, como
também é um mandamento constitucional para que ele o faça. Resta analisar, por
último, quais seriam as estratégias mais adequadas para que o Brasil pudesse
ingressar pelo caminho de sua plena democratização, ou seja, pelo caminho da
máxima efetivação da cidadania plena, mormente a cidadania social. Pensa-se que
há três pilares principais para se atingir tal fim: implementação de políticas
públicas de incentivo à educação social, fomento de uma cultura política de respeito
irrestrito aos direitos humanos e, por último, promoção da justiça social,
principalmente por intermédio da valorização da Justiça do Trabalho e do Parquet Laboral. Veja-se que não é
objetivo deste artigo a pormenorização de cada um desses temas, o que não o
desobriga, contudo, de tecer breves e introdutórias linhas sobre cada um deles.
É o que se tentará fazer agora.
6. Educação Social
A educação social tem suas vertentes
igualmente importantes: De um lado, há a educação relativa aos socialmente excluídos
e, do outro, a que diz respeito aos incluídos. Há no ordenamento jurídico
brasileiro exigência jurídica de fomento de ambas, mormente na idéia de que a
educação não apenas é exigível do Estado, como legítimo direito social público
subjetivo que é – e, portanto, fundamental (CR, art. 6º) –, mas também da
família e da sociedade, sempre visando a cidadania, o pleno desenvolvimento da
pessoa – ou seja, a sua educação ampla, inclusive social – e sua qualificação
para o trabalho (CR, art. 205), pois a educação é o caminho para a completude
do homem (Kant, 1996).
No que diz respeito à educação
social para os incluídos, o vetor central das políticas públicas deve apontar
para o intuito de desenvolver nos cidadãos a idéia, presente na Constituição da
República, de co-responsabilidade no que tange aos problemas sociais presentes
na sociedade. Não se faz necessário a construção de um argumento sociológico
mais complexo para demonstrar que mesmo em um Estado capitalista, como é o caso
do Brasil, a sociedade é também responsabilizada pela exclusão social, pois o
mencionado dispositivo constitucional a coloca, juntamente com a família e o
Estado, em situação de agente fomentadora da educação para a cidadania, mesmo
porque “a educação é o principal vetor de inclusão social, preocupação de todo
e qualquer administrador e da sociedade em geral”. (Souza, 2007).
No que concerne à educação social
direcionada para os excluídos, sabe-se que parte central dos problemas toma
fôlego em questões como a seguinte: “Que educação oferecer aos milhares de
crianças, adolescentes e adultos excluídos da e na escola; do e no emprego; da
e na terra; das e nas instituições sociais?” (Ribeiro, 2006, p. 160). Não há
respostas prontas, mas, por certo, não haverá relevantes soluções enquanto a
sociedade não se mobilizar e enfrentar o problema da inexistência de educação
adequada aos socialmente excluídos como uma questão a estar no topo da agenda e
não, como se vê, relegada à hipocrisia política e de cada um dos cidadãos. Deixa-se,
pois, a questão da educação social em aberto, demonstrando apenas que urge o
sério enfretamento de tal pela sociedade, como mecanismo de fomento da
cidadania social no Brasil.
Passar-se-á,
agora, à análise da necessidade de fomento de uma cultura política de respeito
irrestrito aos direitos humanos.
7. Direitos Humanos
Para
que a cidadania social e a subseqüente democracia sejam plenamente implementadas
no Brasil, dois aspectos centrais têm de ser observados no que concerne à
relação entre inclusão social e direitos humanos. Primeiro, faz-se essencial
que haja uma reformulação da maneira pela qual predominantemente se abordam os
direitos humanos e, segundo, é preciso que a postura diante da normatividade da
Constituição seja definitivamente ampliada, para que se possa oferecer força
normativa máxima aos direitos fundamentais e, conseqüentemente, aos direitos humanos
constitucionais.
No que diz respeito à primeira
questão, veja que há basicamente três formas distintas de se abordarem os
direitos humanos, sendo a última delas a mais adequada para se atingir os fins que
aqui são almejados. De acordo com uma primeira visão, direitos humanos são, na
essência, indistinguíveis de direitos fundamentais, sendo a única diferença
entre eles a relativa ao plano a que aludem, ou seja, caso se refira ao plano
interno, prefere-se a denominação “direitos fundamentais”, ao passo que, caso a
alusão seja ao plano internacional, a preferência se dará pela denominação
“direitos humanos”. Embora a referida distinção não seja em si equivocada –
pois, a Constituição da República segue tal orientação –, ela é eivada do vício
da inutilidade para a promoção da inclusão social, já que trata apenas de
aspecto técnico referente a nomenclaturas.
Uma segunda maneira de se entenderem
os direitos humanos em oposição aos fundamentais recorre à idéia de que estes
são os inerentes à condição humana, sendo, pois, indissociáveis da própria
ontologia do homem, enquanto os fundamentais seriam os que, embora também atinentes
ao ser humano, teriam fundamentação histórica, sendo, pois, frutos de
conquistas gradativas decorrentes, principalmente, de lutas no campo social. A
principal crítica que se pode fazer a essa postura é a de que ela desconhece a
reformulação operacionalizada pelas teorias modernas do direito natural.
As
teorias modernas do direito natural, diante do constrangimento intelectual de
explicar com detalhes como direitos poderiam provir da condição de ser do homem,
começaram a reformular as suas premissas básicas, oferecendo ao chamado direito
natural fortes raízes históricas. Gradativamente, portanto, o direito natural
passou a substituir o seu caráter ontológico pelo histórico, de forma que
pensadores como Fuller (1969) e Dworkin (1978; 1986), por exemplo, chegam a
apresentar idéias de sistemas jurídicos não positivistas, mas ainda longes da
fundamentação que as correntes conservadoras do direito natural – tais como a
de Cícero, Tomás de Aquino (Aquinas, 1993) ou mesmo Finnis (1980) – gostariam de
oferecer.
A terceira forma de enfrentar a questão
consiste na idéia de que os direitos humanos são espécies do gênero direitos
fundamentais, mas com uma peculiaridade: são aqueles direitos fundamentais
cujos titulares só podem ser os seres humanos. A grande vantagem que essa forma
de diferenciação dos direitos humanos dos fundamentais traz para a efetivação
da inclusão social é decorrente da idéia de que, em regra, os direitos
fundamentais titularizáveis apenas por seres humanos são os direitos sociais,
já que os individuais são quase sempre também titularizáveis por pessoas
jurídicas. Como a inclusão social se faz com a promoção da efetividade dos
direitos sociais, qualquer discurso em defesa dos direitos humanos passaria a
ser entendido como uma manifestação em favor da cidadania social e, conseqüentemente,
da democratização plena do Brasil, o que seria, pelo menos, um avanço nesse
campo.
Há
ainda outros tantos desdobramentos mais benéficos nesse campo, tais como os
defendidos por Piovesan (2007) ou Sarlet (2007), por exemplo, mas a análise pormenorizada
de tais, embora de suma importância, fugiria do escopo deste artigo, exceto no
que concerne a menção da revolução que já vem ocorrendo no constitucionalismo
brasileiro, mas que precisa definitivamente estabelecer-se na comunidade
jurídica nacional, qual seja, a que diz respeito à chamada ampliação da normatividade
constitucional. O fato é que o §1º do art. 5º da Constituição da República
estabelece que “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm
aplicação imediata” e, mesmo assim, há um consenso entre os operadores do
direito em negar tal aplicabilidade a direitos fundamentais, notadamente os
humanos – ou seja, os sociais –, que são classificados como de eficácia
limitada e princípio programático, na consagrada definição de José Afonso da
Silva (1998).
É
o caso, por exemplo, do art. 7º, I, da Constituição da República, que, caso
fosse dada normatividade máxima aos direitos fundamentais, tal como preconiza o
supramencionado §1º do art. 5º do mesmo diploma normativo, não haveria de se
falar em eficácia limitada, mesmo na ausência de lei complementar
disciplinadora de inciso concernente a direitos humanos, pois o direito e, por
conseqüência, a Constituição, tal como em favor de que argumentam alguns – a
exemplo de Alexy (1997) e Dworkin (1978), guardadas as naturais peculiaridades
de cada pensamento –, deve ser abordado como um sistema principiológico,
elemento determinante das políticas públicas – e não fragmentadamente,
veementizando-se idiossincrasias provenientes de incisos que, se vistos
isoladamente, tornam-se inábeis no delicado trato de direitos fundamentais.
Neste
ponto, passar-se-á para a análise do último dos três caminhos que se
consideraram como centrais para a efetivação máxima da cidadania plena no
Brasil. Os dois primeiros caminhos, como se viu, consistiram na implementação
de políticas públicas de incentivo à educação social e na imprescindibilidade
de fomento de uma cultura política de respeito irrestrito aos direitos humanos.
O último deles, sobre o que em seguida se passará a discorrer, diz respeito à
necessidade de ampla promoção da justiça social, principalmente por meio da
valorização da Justiça Laboral e do Ministério Público do Trabalho.
8. Justiça social
No que diz respeito ao
desenvolvimento da justiça social, o elemento mais importante de que dispõe o
Estado para efetivá-la é, sem dúvidas, o conjunto institucional voltado ao
melhoramento das condições sociais. Tal conjunto toma corpo em instituições
como a Justiça do Trabalho, o Parquet
Laboral, o Ministério do Trabalho e Emprego, entre outras.
Nada
senão o referido ramo especializado da magistratura federal, em grande parte
atendendo às demandas ministeriais, tem servido como o devido contraponto às
forças precarizadoras decorrentes do desequilíbrio na equação entre capital e
trabalho. Também não há de se olvidar os esforços extrajudiciais implementados
pelo Ministério Público do Trabalho, mormente por meio de firmamento de Termos
de Compromisso de Ajustamento de Conduta, os quais, sem os riscos inerentes ao
processo, invariavelmente obtém ganhos sociais para os trabalhadores e,
subseqüentemente, para toda a sociedade, já que, em compêndio, nada são senão
instrumentos promovedores da justiça social. Da mesma forma merecem menção os
auditores do trabalho que, utilizando-se das prerrogativas que a função lhes
confere, materializam-se na ponta da lança do combate à precarização laboral,
notadamente por meio de suas fiscalizações.
Para
que se tenha uma noção mais exata da importância dos instrumentos fomentadores da
justiça social e, portanto das instituições que deles se valem para promovê-la,
veja-se que a justiça social traz conseqüências não apenas para a inclusão
social imediata, mas também para a forma como a própria humanidade passa a ver
a instituição social do trabalho, passando a valorizá-la como elemento
incompatível com as “novas formas de exploração do trabalho humano (...), como
se fosse natural ele ser objeto e não sujeito de qualquer relação de produção”
(Aude, 2007, p. 56), de maneira que se chegue ao ponto de valorizar o trabalho
como instrumento de dignificação do ser humano.
É
interessante notar que análise sociológica mais profunda poderá, inclusive,
criticar o papel do judiciário em tentar a todo custo promover a inclusão
social, quando, na realidade, este deveria ser o papel predominante dos outros
poderes. Mesmo os que assim pensam, contudo, são consensuais na assertiva de
que o Judiciário traz para si em certas ocasiões e em determinadas disciplinas
– tais como a do direito do trabalho – este intuito de promover a cidadania
social não porque pretenda invadir competência de outros poderes, mas porque
esta foi – para o bem ou para o mal – a solução que a sociedade brasileira deu
no Séc. XX para o enfrentamento do problema social decorrente da grande massa
de excluídos.
Assim,
pelo menos enquanto não houver uma reestruturação institucional programática no
Brasil, instituições como o Ministério Público do Trabalho, o Ministério do
Trabalho e Emprego, o Judiciário de modo geral e, em especial, a Justiça do
Trabalho, estarão amplamente legitimados a promover a justiça social, ou seja,
a igualdade material entre as pessoas, mormente no que concerne às condições de
trabalho, pois o labor é estruturante não apenas da sociedade, mas também do
próprio indivíduo como ser psicossocial que é.
9. Conclusão
Embora
o sentido original da palavra “trabalho” tenha perdido importância para
designar o que o representa hoje na humanidade, ainda é possível fazer uma
correlação com o sofrimento. Assim, é imprescindível lançar holofotes sobre um
aspecto incivilizado muitas vezes presente na prestação laboral, qual seja, o
desrespeito a valores humanos mínimos dos trabalhadores, que precisam ser
urgentemente recuperados pela justiça social no ambiente laboral. O trabalho,
que se originou da palavra latina tripalium,
que designa “uma armação de três estacas utilizadas nas fazendas para ajudar
nos partos e na ferragem dos animais, que, no início da Idade Média, porquanto
vinculada ao sofrimento e à dor, é percebida como um instrumento de suplício” (Fragale
Filho, 2006, p. 829), haverá um dia de ser entendido como elemento dignificante
do homem, pois o completa.
Na
contramão do que seria ideal, tem-se que, senão a principal, certamente uma das
mais importantes características da Contemporaneidade, é o desemprego. Sua
importância para o pensamento é de tal monta que traz conseqüências centrais
para os mais variados ramos do saber, tais como o Direito, a Sociologia, a
Filosofia, a Economia, a Psicologia, entre outros. Isso se dá porque é possível
concluir, como se disse, que o trabalho, analisado com alguma pormenorização, é
elemento constitutivo da própria personalidade humana, sendo, pois,
indissociável do caráter do homem. Assim, àquele que se vê em situação de
desemprego, resta muitas vezes a sensação de diminuição não apenas
contingencial, momentânea, mas como pessoa, o que lhe dá a terrível sensação de
permanente inferioridade diante dos outros e da vida.
Interessante
é notar que mesmo em situação de relativo crescimento econômico, vêem-se graus
relativamente altos e, portanto, bastante preocupantes de desemprego. A chamada
epidemia do crescimento sem empregos (jobless growth),
como com propriedade argumenta Sachs (2004, p. 25), é decorrente de uma
correlação de variáveis, tais como a substituição da máquina pelo homem nas
indústrias, a inexistência de uma política de bons salários; e, por fim, a
terrível prática do dumping social,
que no campo prático é verificado pelo “deslocamento das produções intensivas
de mão-de-obra para plataformas de exportação situadas em países periféricos
que se satisfazem com a competitividade espúria, (...) por meio de salários
excessivamente baixos, longas jornadas de trabalho e ausência de proteção
social” (Sachs, 2004, p. 25). Não há de se esquecer que, neste ambiente de
crescimento desordenado, o labor se desenvolve em formas atípicas de trabalho
(Carelli, 2004), as quais, caso não sigam os estritos mandamentos legais, hão
muito provavelmente de ser formas precarizadoras da força laboral.
O
referido dumping social, amplamente
combatido pela Justiça Laboral assim como pelo Ministério Público do Trabalho, tem
dupla implicação para países como o Brasil. Se, de um lado, cidadãos
brasileiros perdem postos trabalho porque multinacionais optam por estados sem
responsabilidade social para implementar sua mão-de-obra, do outro a indústria
brasileira sofre a concorrência desleal dessas mercadorias, que chegam ao
consumidor com preços impraticáveis pelo empresário brasileiro, que idealmente
há de arcar com suas obrigações tributárias e sociais. Além disso, tal prática
é incompatível com um Estado democrático, não apenas por ferir de morte a
cidadania social, mas também pelo flagrante desrespeitos aos direitos humanos.
Assim, conclui-se que há de urgentemente
se incrementar a idéia de que o estabelecimento da democracia constitucional no
Brasil, mormente por meio do fomento no plano fático da justiça social, trará conseqüências
importantíssimas tanto para o âmbito coletivo quanto para o individual de cada
trabalhador e, por conseqüência, para a própria sociedade. Somente assim,
poder-se-á vislumbrar entre os seres humanos o que minimamente poderia ser
chamado de humanidade social, situação em que o desemprego e o trabalho indigno
seriam verdadeiramente vistos com a revolta e a repulsa de que são merecedores.
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