Direitos indígenas fundamentais e
sua tutela na ordem jurídica brasileira
Manoel Nascimento de Souza, Erivaldo Moreira
Barbosa
1. INTRODUÇÃO
A diversidade étnica brasileira é uma
característica peculiar que faz do Brasil um país multicultural, graças ao patrimônio
cultural dos diversos grupos sociais formadores da sociedade nacional. Dentre
as contribuições desses grupos destacam-se as das nações indígenas, povos
considerados nativos uma vez que originariamente constituíram comunidades
locais nas terras brasileiras, pelas quais lutaram arduamente contra a ação
arrebatadora dos colonizadores europeus. Apesar do extermínio sofrido muitas
populações indígenas resistiram e atualmente seus integrantes são reconhecidos
como sujeitos de direitos, que devem ser promovidos e protegidos pela ordem
jurídica nacional, em razão da tutela do patrimônio cultural da humanidade, da
qual faz parte a identidade indígena.
Nesse sentido, o presente trabalho
volta-se para análise dessas populações indígenas (ou tradicionais), em
especial no tocante aos direitos fundamentais a elas reconhecidos, ou seja, a
abordagem realizada pauta-se no estudo dos interesses e reivindicações dos
índios instituídos legalmente observando-se a evolução histórica do arcabouço
jurídico indigenista tanto no plano constitucional, quanto no
infraconstitucional. Dessa forma, o procedimento metodológico empregado
consistiu no estudo bibliográfico de obras referenciais à temática, tendo como
método de abordagem a hermenêutica jurídica pelo qual se aplicou os critérios
hermenêuticos na interpretação das regras jurídicas e jurisprudências
utilizadas.
2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA LEGISLAÇÃO
INDÍGENA
O tratamento jurídico brasileiro
conferido aos povos indígenas por muito tempo esteve atrelado à concepção de
que estes constituiam entrave ao desenvolvimento nacional em razão de não se
rederem aos objetivos políticos e econômicos predominates, ou seja, conforme o
período histórico brasileiro observa-se que a legislação indígena ao invés de
promover a tutela dos interesses das sociedades indígenas, se fundamenta
basicamente na estigmatização destas, tratando-as de forma preconceituosa sem
se importar efetivamente no atendimento de suas necessidades, peculiaridade que
esteve presente em todo o processo legislativo indigenista desde o período
colonial até o século XX, no qual em 1988 a Constituição Federal promulgada
rompeu com essa concepção até então adota.
De modo geral, pela análise dos
documentos jurídicos constituídos no período retromencionado e como salienta
BELFORT (2006) a legislação indígena esteve pautada em três paradigmas, o do
extermínio, o da integração e, só depois do advento da Constituição Federal de
1988, o de reconhecimento de direitos originários e ampliação de garantias.
Assim, tem-se que no período colonial
como assevera BESSA (2006) as Cartas de Doação e Forais expedidas pelos reis de
Portugal em favor dos donatários das Capitanias Hereditárias, guardadas as
devidas proporções são considerados Constituições primitivas brasileiras, nas
quais constavam normas relativas à população indígena. Estas normas constituíam
na verdade comandos de condutas que deveriam ser seguidos pelos portugueses na
relação com os índios, tinham como emblema a ideia de pacificação e liberdade
dos povos indígenas, contudo tinham como fim o estabelecimento de condições
favoráveis à escravização indígena e apropriação das terras brasileiras,
elementos de expressão e motivação do caráter exterminacionista destes
documentos. Tal realidade, por exemplo, se atesta no Regimento do Governador
Geral Tomé de Souza, que dentre suas determinações ordenava que os
colonizadores especulassem as rivalidades entre os povos indígenas devendo em
nome “da ordem indígena” destruir aldeias e povoações.
Posteriormente, após a consolidação da
relação de domínio e espoliação dos índios pelas classes dirigentes imperiais e
republicanas, a norma indigenista se consubstancia sob o palio da política
integracionista das comunidades indígenas. Ressalvada a omissão da Constituição
Outorgada de 1824 e a Carta Republicana de 1891 em não tratar os interesses
indígenas, somente no texto constitucional de 1934 surge uma política de tutela
desses direitos, em especial ao respeito a posse de terras de silvícolas que
nelas se achem permanentemente localizados (artigo 154). Entretanto, o que se
institucionalizou foi uma política de integração dos considerados como silvícolas (aquele
que vive na selva, estranho à civilização, à comunhão nacional), ou seja, o
modo próprio de organização, crença e costumes das populações tradicionais não
constituía parte integrante da identidade nacional do país, devendo os
integrantes destas populações se adequarem a um modelo de sociedade imposto,
renegando suas identidades em nome de sua inserção à nação brasileira. A
presente concepção se perpetuou nas Constituições seguintes, impregnando
inclusive textos e dispositivos infraconstitucionais voltados exclusivamente
para tutela dos povos nativos, como o Código Civil de 1916 (artigo 6º) e o
Estatuto do Índio (Lei n. 6.001/73) que logo em seu artigo 1º ao defender a
preservação da cultura das comunidades indígenas defende, contraditoriamente, a
integração progressiva e harmoniosa destas à comunhão nacional. O Estatuto do
Índio, vigente atualmente, a contrário sensu constitui um entrave ao respeito e
efetividade dos direitos indígenas em razão de estar eivado da intenção
integracionista nos moldes aludidos, revela-se num texto incongruente, o qual
em certos dispositivos tenta proteger os índios, seus valores culturais e em
outros extermina a eficácia destes ao disciplinar o processo de integração do
índio à comunhão nacional, como se observa:
“Art. 2° Cumpre à União, aos Estados
e aos Municípios, bem como aos órgãos das respectivas administrações indiretas,
nos limites de sua competência, para a proteção das comunidades indígenas e a
preservação dos seus direitos:
I – (...)
II - prestar assistência aos
índios e às comunidades indígenas ainda não integrados à comunhão
nacional; (...)
IV - assegurar aos índios a
possibilidade de livre escolha dos seus meios de vida e subsistência; (...)
VI - respeitar, no processo de
integração do índio à comunhão nacional, a coesão das comunidades indígenas, os
seus valores culturais, tradições, usos e costumes; (...)
Parágrafo único. (Vetado)”. (Grifo
nosso)
Contudo, somente a partir de 1988 com a
promulgação da atual Constituição Federal se tem uma evolução no tratamento
jurídico indígena, atingindo este uma nova dimensão, qual seja, o de
reconhecimento de direitos originários, assim dispondo:
“Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização
social, costumes, línguas, crenças e tradições,
e os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer
respeitar todos os seus bens.” (Grifo nosso).
Desta forma, no presente texto é
vislumbrado aos povos tradicionais o direito à diferença, reconhecendo-se a sua
organização social, costumes e tradições, salvaguardando o direito de serem e
permanecerem como índios, sujeitos de direitos originários, ou seja, anteriormente
a instituição do regime proposto pela atual Constituição a comunidade índia já
gozava de direitos justificados por fatos e regras imprevistos pela nova norma
constitucional.
Nesta esteira, como forma de concretizar
o estágio de reconhecimento de direitos originários e mesmo como meio de
ampliá-los, encontra em tramitação no Congresso Nacional o Projeto de Lei n.
2.057/91, o qual objetivando extinguir a tutela reducionista do Estatuto do
Índio prevê a criação de um Estatuto das Sociedades Indígenas, tomadas então
como coletividades diferentes culturalmente devido suas raízes ameríndias, mas
detentoras de uma tutela holística com as mesmas prerrogativas conferidas aos
outros cidadãos, respeitas as devidas peculiaridades, inclusive o Estatuto proposto
inova ao reconhecer aos índios a plena capacidade civil, observadas suas
disposições específicas, como forma de garantir o exercício efetivo de seus
direitos.
3. TUTELA INDÍGENA: A CAPACIDADE
JURÍDICA DOS INDÍOS E O EXERCÍCIO DE DIREITOS
No sistema jurídico brasileiro toda
pessoa passa a ser sujeito de direitos quando adquire personalidade jurídica
compreendida como a aptidão genérica para ser titular de direitos e contrair
obrigações como esclarece GAGLIANO e FILHO (2005), tal aquisição se consubstancia
a partir do nascimento com vida, diagnosticada pelo funcionamento do aparelho
cardiorrespiratório. Adquirida a personalidade jurídica conforme o artigo 1º do
atual Código Civil (2002) toda pessoa passa a ser capaz, ou seja, pode ser
titular de direitos e obrigações na ordem civil, assim a capacidade constitui a
efetividade da aptidão genérica para titularizar direitos e obter obrigações,
sobre o tema elucida GONÇALVES (2007) que a capacidade é a medida da
personalidade, podendo ser plena para uns e limitada para outros. Dessa forma,
Gonçalves se refere aos tipos de capacidade existentes, quais seja a capacidade
de direito ou de gozo a qual todos têm ao nascerem com vida podendo, assim,
titularizar uma situação jurídica e a capacidade de fato ou de exercício que é
a aptidão que determinadas pessoas tem para atuarem pessoalmente exercendo seus
direitos na vida civil, esta pela falta de certos requisitos caso não se
configure, a lei não permite que a pessoa dela desprovida se autodetermine,
impedindo-os de exercerem direitos pessoal e diretamente, exigindo para tanto a
participação de outra pessoa que as represente ou lhes dê assistência. E é
justamente em relação a este grau de se autodeterminar que a falta de
capacidade se classifica na incapacidade absoluta (falta de capacidade de fato
e de direito) e incapacidade relativa (zona de intermédio entre a incapacidade
absoluta e plena capacidade, configurada quando a pessoa não possui total
capacidade de discernimento e autodeterminação), por esta as pessoas podem praticar
por si os atos da vida civil assistidos por outra pessoa designada pelo
parentesco, relação de natureza civil ou por decisão judicial, como esclarece
DINIZ (2007).
Feita estas considerações introdutórias
indispensáveis à compreensão da situação jurídica dos índios no Brasil, o
disciplinamento de sua capacidade por designação do Código Civil de 2002
(artigo 4º, parágrafo único), encontra-se disciplinada no Estatuto do Índio
(Lei n. 6.001/73), segundo o qual o indígena brasileiro ao nascer já se encontra
sob o regime de tutela sendo incapaz para os atos da vida civil até que atenda
certos requisitos (artigo 9º, Lei n. 6.001/73) e torne-se livre desse regime.
Tal situação afeta diretamente o efetivo exercício dos direitos indígenas por
seus titulares, se revelando como expressão típica do sistema de integração
defendido por tal legislação.
Nesse sentido, o atual diploma indígena
vigente apesar de considerar válido ato praticado por índio que revele
consciência e conhecimento sobre o ato conjugado com a inexistência de
prejuízo, como resquício da política integracionista, considera de plano o
índio como absolutamente incapaz, disciplinando que:
“Art. 8º São nulos os atos praticados
entre o índio não integrado e qualquer pessoa estranha à comunidade indígena
quando não tenha havido assistência do órgão tutelar competente”.
O órgão supramencionado que executa a
tutela indígena em nome da União é a Fundação Nacional do Índio criada pela Lei
n. 5.971/67, cujas finalidades se assentam no contraditório sistema
integracionista, de um lado tutelam a preservação cultural do índio por outro
resguardam à aculturação espontânea deste, sob a justificativa de uma evolução
socioeconômica, como se depreende do seguinte dispositivo:
“Art. 1º Fica o Govêrno Federal autorizado
a instituir uma fundação, com patrimônio próprio e personalidade jurídica de
direito privado, nos têrmos da lei civil, denominada "Fundação Nacional do
Índio", com as seguintes finalidades:
I – estabelecer as diretrizes e garantir
o cumprimento da política indigenista, baseada nos princípios a seguir
enumerados:
a) respeito à pessoa do índio e as
instituições e comunidades tribais;
b) garantia à posse permanente das
terras que habitam e ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de tôdas as
utilidades nela existentes;
c) preservação do equilíbrio
biológico e cultural do índio, no seu contacto com a sociedade nacional;
d) resguardo à aculturação
espontânea do índio, de forma a que sua evolução sócio-econômica se
processe a salvo de mudanças bruscas; (...)
Parágrafo único. A Fundação exercerá os
poderes de representação ou assistência jurídica inerentes ao regime tutelar do
índio, na forma estabelecida na legislação civil comum ou em leis especiais.” (Grifo nosso)
Reconhecida a contribuição da FUNAI na
proteção de certos direitos indígenas como os relativos às suas terras,
observa-se também que o mesmo acaba por prejudicar os interesses destas
populações, as quais ficam proibidas de se autodeterminarem, só podendo exercer
seus direitos com autorização da FUNAI que certas vezes, em razão do
cumprimento de textos legais indigenistas, atende aos interesses governamentais
em detrimento dos indígenas.
Apesar desse sistema de tutela existir
em nome da proteção pessoal e patrimonial dos povos tradicionais, não se
concebe no estágio atual o entendimento jurídico de que os índios considerados
como “não integrados” sejam por esta razão plenamente incapaz para os atos da
vida civil necessitando da mencionada tutela, o que se há em alusão, não é
somente a questão de capacidade indígena, mas, sobretudo o respeito à diferença
cultural, a qual não determina de pronto a incapacidade dos índios.
Hodiernamente, o que se percebe é a constante atuação de representantes dos
povos nativos nos fatos realizados pelos considerados civilizados, a exemplo de
participação em reuniões e encontros governamentais em busca do efetivo
cumprimento de seus direitos, restando demonstrado que estes têm condições
próprias de se autoprotegerem, observados o atendimento de requisitos legais, pelos
quais não se exige a absorção de valores e hábitos civilistas em detrimento da
manutenção e promoção de sua cultura como defende o sistema integracionista
incorporado no Estatuto do Índio.
Como resposta a essa situação de
comprometimento das necessidades indígenas, tramita no Congresso Nacional o
Projeto de Lei que institui o Estatuto das Sociedades Indígenas, objetivando
precipuamente se adequar aos preceitos constitucionais indigenistas
garantidores de uma proteção totalizante e propulsora da cultura indígena
(artigos 231, 232, Constituição Federal de 1988). Assim, pelo presente Estatuto
é perfeitamente possível proteger os povos nativos sem que seus integrantes
sejam obrigados a adquirirem nova identidade consoante os ditames da
civilização nacional, e, portanto não sendo considerados incapazes
juridicamente, como se infere da análise de alguns de seus comandos:
“Art. 2º. Sociedades
indígenas são coletividades que se distinguem no conjunto da sociedade nacional por
reconhecerem seus vínculos históricos com populações ameríndias antecessoras ao
processo de colonização.
Art. 3º. Os índios gozam dos
direitos individuais atribuídos aos cidadãos brasileiros, sendo-lhes
reconhecida a plena capacidade civil, observadas as disposições
específicas desta lei.
Art. 5º. Os índios, suas
comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em
defesa dos seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público
Federal em todos os atos do processo.” (Grifo nosso)
O reconhecimento neste Estatuto de que
os índios são povos diferenciados, e que isto não os torna incapaz, assinala o
atual nível de proteção reclamado pelas comunidades indígenas, caracterizado
pelo estágio legal de reconhecimento e ampliação de direitos.
4. DIREITOS INDÍGENAS FUNDAMENTAIS
No que atine aos direitos fundamentais
disserta ARAÚJO e JUNIOR (2009) que estes constituem uma categoria jurídica,
normatizada constitucionalmente cuja vocação se destina à proteção da dignidade
humana em todas as dimensões, em outras palavras, são os direitos elementares à
existência digna do ser humano, como aqueles relativos à sua liberdade,
necessidade e proteção, os quais por tal relevância são disciplinados no texto
maior de cada Estado sendo também complementados por leis esparsas.
Nesse sentido, a tutela jurídica
brasileira conferida aos direitos indígenas fundamentais como abordado passou
por estágios evolutivos que se iniciaram no sistema de cunho exterminacionista
caracterizado pela completa omissão de se proteger tais direitos, perpassando-se
pelo integracionista que ainda perdura em certos textos legais vigentes,
alcançando-se o nível de reconhecimento de direitos originários que esteve
presente em algumas Constituições Federais, em especial aos direitos relativos
as terras indígenas. Entretanto, somente a partir da Constituição Federal de
1988 a tutela indígena que até então se baseava no mero reconhecimento de sua
existência se ampliou para garantia do direito a diferença e preservação de
suas identidades.
Assim, os direitos indígenas fundamentais
têm a função não apenas de reconhecer a existência das comunidades nativas,
mas, sobretudo, assegurar o respeito ao seu modo de interação com o mundo, sua
organização social, sua identidade cultural. Sobre o tema preleciona SILVA
(2006) que esses grupos sociais reivindicam direitos de caráter coletivo, como
a garantia do direito a terra, aos recursos naturais e principalmente à
autodeterminação política e à cultura própria, dos quais o resguardo passa pela
efetividade de seus direitos fundamentais.
Entre esses direitos reconhecidos aos
indígenas existem os de primeira ordem como estabelecido no artigo 5º da CF/88,
dentre eles, o direito à vida, a igualdade, a liberdade, a segurança, e
propriedade, sendo o cumprimento destes de incumbência da União Federal.
Alinhando-se a estes e constituindo um arcabouço específico, a legislação
infraconstitucional brasileira elenca diversos outros direitos, a exemplo do
Estatuto do Índio que apesar das deficiências apontadas apresenta uma política
de tutela do direito às terras indígenas, o Projeto de Lei (n. 2.057/91) que se
encontra em tramitação amplia os direitos indígenas legalizando o direito
autoral, a proteção ao conhecimento tradicional, a representação segundo seus
usos e costumes, direito de participação em instâncias oficiais relativas à
questão indígena, proteção aos recursos naturais dentre outros, dos quais em
razão de serem indispensáveis para o cumprimento de uma proteção integral das
populações indígenas, destaca-se o direito a saúde, a educação e o direito
sobre as terras consideradas indígenas.
A saúde indígena enquanto prerrogativa
fundamental, sem exceção das normas constitucionais e infraconstitucionais
pertinentes, tem amparo jurídico no Decreto 58.824, de 14.07.1966, que sanciona
a aplicação da Convenção sobre a Proteção a Integração das Populações Indígenas
e outras Populações Tribais e Semitribais de Países Independentes no território
brasileiro, a qual em seu artigo 20 estabelece que os governos signatários
devem assumir a responsabilidade de colocar serviços de saúde adequados à
disposição das populações interessadas, no caso, indígenas. WELLEN (2002) sobre
o tema aponta as inovações para garantia desse direito, como a transferência
para FUNASA (órgão vinculado ao Ministério da Saúde) da responsabilidade pela
prevenção das enfermidades entre os povos indígenas devido à carência da FUNAI
em desenvolver tal competência. Todavia, é persistente o descaso com a saúde
das comunidades tradicionais fadadas ao abandono, pobreza, e decadência física,
agravados pelas invasões de áreas indígenas e a respectiva omissão
governamental em relação a esta realidade, como se pode atestar pela análise do
seguinte entendimento jurisprudencial:
“EMENTA: CONSTITUCIONAL. TURBAÇÃO DE
TERRA INDÍGENA POR MADEIREIROS, GRILEIROS E GARIMPEIROS. AÇÃO CIVIL PÚBLICA
PARA RETIRADA DOS INVASORES DAS ÁREAS INDÍGENAS ZORÓ E SURUI. NECESSIDADE DE
ASSISTÊNCIA MÉDICO-SANITÁRIA EM RAZÃO DA PRESENÇA DE SITUAÇÃO DE SAÚDE
CALAMITOSA: ATROFIA NUTRICIONAL, TURBECULOSE, NANISMO. 1. Dispõe o artigo o
artigo 231, caput, da Constituição Federal que compete à União proteger as
terras indígenas e fazer respeitar todos os seus bens. 2. É omissa a União em
não repassar recursos para os órgãos criados para a proteção do meio ambiente,
das comunidades indígenas e sua saúde (IBAMA, FUNAI, FUNASA), de forma a
permitir que indivíduos de nações indígenas Zoró e Suruí estejam sendo vítimas
de contaminações e doenças graves, causadoras de morte e de exploração ilegal
de suas áreas localizadas em Cacoal e Espigão D'Oeste (RO) por madeireiros,
garimpeiros e posseiros. 3. Conforme estudos da Fundação Osvaldo Cruz, foram
detectados anticorpos anti-rotavirus produzidos entre os grupos Suruí e
Karitiana, soropositividade elevada, atrofia nutricional, nanismo entre crianças,
além de casos de tuberculose seguida de morte. 4. Agrava a situação caótica da
saúde das referidas comunidades a invasão das reservas e a exploração ilegal
nas áreas do Espigão D'Oeste, Cacoal e município de Aripuanã, compreendendo as
comunidades Cintra-larga, Suruí e Zoró. 5. A ausência de fiscalização permite a
derrubada indiscriminada de madeira. A retirada dos invasores e a vigilância
das áreas indígenas Zoró e Suruí são necessárias para se evitar as
contaminações e moléstias graves a que se acham cometidas os indivíduos dessas
comunidades e também para que não haja devastação dos meios de subsistência
consistentes na fauna e flora nativas. 6. A destruição do meio ambiente das
populações indígenas conduz a escassez de alimentos (pesca, caça, vegetais) e o
conseqüente estado de desnutrição mórbido de adultos e crianças que passam a
depender, para sobreviver, de cestas básicas fornecidas pelo governo federal.
7. É omisso o IBAMA no seu dever de evitar a destruição das áreas de
preservação permanente, merecendo reparos a r. sentença. 8. Dispõe o artigo 1º
do Decreto 3.156.90 que "a atenção à saúde indígena é dever da União e
será prestada de acordo com a Constituição e com a Lei 8.080, de 19 de setembro
de 1990, objetivando a universalidade, a integralidade dos serviços de
saúde". Compete à FUNASA adotar as providências para a recuperação da
saúde do ÍNDIO, devendo a FUNAI comunicar a existência de grupos que necessitam
de atendimento específico (art. 3º, § único). 9. O Poder Judiciário não elabora
nem promove políticas públicas, contudo tem o dever, em caso concreto, de
determinar que os órgãos públicos realizam seus fins institucionais, em
especial quando está em juízo o direito à vida. 10. Apelação do MPF
parcialmente provida.” (TRF- 1ª Região – Quinta Turma - Apelação
Civel 1998.01.00.053400-2/RO – Rel. Des. João Batista Moreira – Julg. de
12.03.2007)
Outro direito de fundamental importância
é a educação das comunidades indígenas, as quais no processo histórico de
integração do índio, sempre estiveram expostas a imposição de valores alheios e
negação de sua identidade e cultura, como reação a esta situação o legislador
constitucional estabeleceu no artigo 210, § 2º da CF/88, que o ensino
fundamental regular nessas comunidades será ministrado em língua portuguesa
sendo assegurada também a utilização de suas línguas maternas e processos
próprios de aprendizagem, sobre os quais LENZA tece o seguinte esclarecimento:
“O acréscimo dos mecanismos próprios
indígenas fortalece a idéia de preservação dos costumes, línguas, crenças e
tradições dos silvícolas, indispensável em razão da inegável diferença cultural
entre o homem civilizado a e comunidade indígena”. (LENZA, 2009, p. 884).
A competência para executar a política
de educação escolar indígena passou a ser do Ministério da Educação, sendo
responsável em desenvolver uma educação diferenciada, específica, intercultural
e bilíngüe, sobre a qual WELLEN (2002) destaca a inexistência de um programa
específico para a escola indígena em termos de material didático, alimentação e
infra-estrutura, além da aplicação insuficiente dos recursos financeiros.
O direito fundamental e originário do
índio sobre as terras brasileiras não constitui apenas uma relação de ocupação
ou exploração, mas o fundamento de sua existência, pois a terra é o seu habitat,
por meio do qual é possível a preservação da cultura, valores e o modo peculiar
de vida de suas comunidades.
Desse modo, a atual Constituição Federal
reconhece que os povos indígenas sempre foram os ocupantes legítimos de fato e
de direito das terras brasileiras, disciplinando como direito originário do
índio as terras que tradicionalmente ocupam (artigo 231), nessa linha segue a
jurisprudência nacional tutelando o presente direito:
“EMENTA: AÇÃO POSSESSÓRIA – COMUNIDADE
INDÍGENA PATAXÓ HÃHÃHÃE – PROVA DE OCUPAÇÃO IMEMORIAL – ART. 231, PARÁGRAFO 2º,
DA CARTA POLÍTICA – REINTEGRAÇÃO. 1. O artigo 231, parágrafo 2º, da
Constituição Federal, consagrou a posse permanente aos
silvícolas das terras tradicionalmente ocupadas, mantendo-se sua
perenidade para sempre ao projetar o verbo “destinam-se”. 2.Por isso, ainda que
tenham os índios perdido a posse por longos anos, por configurar direito
indisponível, podem postular sua restituição, desde que ela, obviamente,
decorra de tradicional (imemorial, antiga), equivalente
a verdadeiro pedido reivindicatório da coisa. 3. Comprovado que os silvicolas
ostentavam posse imemorial, é procedente a reintegração. 4.
Apelação desprovida.” (TRF-1ª Região – Terceira Turma – Apelação Civil nº 1999.01.00.030341-8
– Rel. Juiz Evandro Reimão dos Reis – Julg. de 03.04.2002) (Grifo nosso)
Estas terras conceituadas legalmente
como aquelas habitadas permanentemente, na prática vão além da concepção
restrita normativa, sendo compreendidas naquelas indispensáveis para manutenção
e promoção das atividades produtivas e culturais, conforme seus usos e
tradições, assim entendendo a jurisprudência:
“EMENTA: CONSTITUCIONAL. DESAPROPRIAÇÃO
INDIRETA. GLEBAS DE TERRAS. TÍTULO DE PROPRIEDADE EXPEDIDO PELO ESTADO DE MATO
GROSSO. REGISTRO IMOBILIÁRIO. NULIDADE. DENUNCIAÇÃO À LIDE PER SALTUM. ÁREA
INDÍGENA. POSSE IMEMORIAL. ÁREA DE PERAMBULAÇÃO. INDENIZAÇÃO. (...) 2. O
território indígena é constituído não só pela área efetivamente ocupada pelo
grupo tribal, isto, a que circunda a aldeia e as roças, mas também as
imprescindíveis à conservação de sua identidade étnico-cultural. (...)”.
(TRF – 1ª Região – Quarta Turma - Apelação Cível nº 90.01.14365-2/MT – Rel.
Juiz. Mário César Flores – Julg. De 24.06.1998) (Grifo nosso)
Em razão de sua natureza e como
expressão de proteção o legislador constitucional disciplinou (artigo 231, §
4º) que referidas terras são inalienáveis e indisponíveis, ou seja, os
indígenas são proibidos de efetuarem qualquer negócio jurídico que acarrete a
transferência da titularidade de direitos sobre estas terras, sendo nulos e
extintos os atos que caracterizem a ocupação, domínio ou posse dessas terras
tradicionalmente ocupadas, assim também dispondo a jurisprudência nacional:
“EMENTA: ADMINISTRATIVO. MANUTENÇÃO DE
POSSE. ÁREA INDÍGENA (FUNIL). INEXISTÊNCIA DE DIREITO. OCUPAÇÃO DE BOA-FÉ.
INDENIZAÇÃO. BENFEITORIAS. INSUFICIÊNCIA DE PROVAS. IMP0SSIBILIDADE. 1. As
terras indígenas são originariamente reservadas e não se sujeitam a qualquer
tipo de aquisição, sejam decorrentes de ato negocial ou de usucapião
(Alvará de 1º.04.1680, Lei de 1850, Decreto de 1854, art. 24, § 1º,
Constituições Federais de 1891, 1934, 1946, 1967, 1969 e de 1988). 2. Conquanto
indenizáveis as benfeitorias decorrentes de ocupação de boa-fé, as provas
documentais e depoimentos dos autos revelam-se insuficientes para tal
finalidade.” (TRF-1ª Região – Quarta Turma - Apelação Cível nº
1999.01.00.023028-6/TO – Rel. Juiz Mário César Ribeiro – Julg. de 29.02.2000)
(Grifo nosso)
Como forma de assegurar o direito as
terras indígenas por seus titulares, buscando combater os atos que tenham por
objeto a ocupação, domínio ou a posse destas terras, o Projeto de Lei que
institui o Estatuto das Sociedades Indígenas (atualmente em tramitação), endossa
o arcabouço jurídico de tutela a essas terras, ao defender a não extinção do
órgão administrativo indígena FUNAI, robustecendo suas competências através da
normatização de seu poder de polícia, até o momento não disciplinado, dependo o
órgão da atuação do IBAMA e Polícia Federal, o que compromete sua função,
podendo com a aprovação deste projeto passar a proteger de forma mais eficaz
tais terras, uma vez que contará com recursos próprios e terá poder de multar
aqueles que se configurem como agressores de tal direito indígena.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio do estudo da evolução legal dos
direitos indígenas no ordenamento jurídico brasileiro constatou-se que a tutela
dos direitos indígenas fundamentais compreendidos entre aqueles imprescindíveis
à sobrevivência com dignidade desse grupo étnico, se consubstanciou de forma
gradativa e em atendimento a determinados objetivos políticos e econômicos,
pelos quais se identifica a formação de três modelos jurídicos indígenas, o
exterminacionista, o integracionista e o de reconhecimento e ampliação de
direitos.
Do modelo exterminacionista observou-se
que a legislação indígena colonial em nome de uma “ordem indígena” buscou
extinguir os povos tradicionais que não se sujeitaram a espoliação imposta
sendo contrários aos interesses dos colonizadores, se caracterizando pela
completa omissão em atender as reivindicações e necessidades indígenas. O
segundo modelo de grande influência, ainda persistindo hodiernamente em normas
ultrapassadas como a Lei n. 6.001/73 (Estatuto do Índio), se pauta basicamente
numa tutela controversa, ao passo que defende a proteção da cultura dos índios
obriga-os a se adequarem aos moldes civilistas impostos, os quais quando não
atendidos coloca os indígenas sob a tutela estatal executa pela FUNAI, sendo os
índios, portanto, absolutamente incapazes para os atos da vida civil afetando
diretamente como analisado a efetividade e o exercício dos direitos indígenas,
sujeitos que atualmente, respeitadas as devidas proporções, na modernidade
mostram-se capazes de se autodeterminar. O último modelo se expressa na
política normativa de reconhecimento de direitos originários e ampliação de
garantias, representa uma reação a ordem integracionista, neste sistema se
defende o respeito a diferença cultural dos indivíduos indígenas e a tutela de
seus interesses se faz por meio da promoção e manutenção de seu patrimônio
cultural, segundo a qual os direitos indígenas podem ser defendidos pelos
próprios titulares, respeitados os requisitos legais, assim, destaca-se a
Constituição Federal de 1988 (artigos 231 e 231) e o Projeto de Lei n. 2.057/91
que objetiva a instituição do Estatuto das Sociedades Indígenas.
Destarte, no processo de tutela dos
direitos indígenas é notório o avanço adquirido pelas normas jurídicas em busca
do atendimento aos interesses e necessidades prementes das comunidades
tradicionais, resguardando-se, sobretudo o necessário respeito à diferença
cultural, que tem corroborado a formação e manutenção da rica diversidade
étnica e cultural brasileira. Entretanto, necessário se faz reconhecer que como
entrave a essa evolução ainda persiste diplomas normativos impregnados pelos
princípios integracionistas da população indígena à sociedade brasileira,
quando na verdade se vive um estágio de reconhecimento de que os índios são
essencialmente indivíduos formadores da nação brasileira, conforme sua peculiar
organização social. Desse modo, é imperiosa a análise do Projeto de Lei n
2.057/91 que se encontra em tramitação, devendo esta ocorrer não só entre os legisladores,
mas em conjunto com a população (indígena e não indígena) por meio de uma
discussão sistêmica que primeiramente leve em consideração a opinião e
manisfetação dos próprios indígenas, visando-se a urgente aprovação de um
diploma legal que se coadune com os atuais preceitos constitucionais de
disciplinamento amplo dos direitos indígenas. Aliado a esse processo deve ainda
o Estado dar efetivo cumprimento às políticas públicas indígenas previstas na
lei, sob pena de não se atingir a eficácia da mesma que objetiva a proteção
integral das sociedades indígenas.
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