Homicídio simples
Art.
121. (...)
Homicídio qualificado
§ 2o
(...)
Feminicídio
VI -
contra a mulher por razões da condição de sexo feminino:
(...)
§ 2o-A Considera-se que há
razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve:
I - violência doméstica e
familiar;
II - menosprezo ou
discriminação à condição de mulher.
Aumento de pena
§ 7o A pena do feminicídio é
aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado:
I - durante a gestação ou
nos 3 (três) meses posteriores ao parto;
II - contra pessoa menor
de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou com deficiência;
III - na presença de
descendente ou de ascendente da vítima.” (NR)
Art. 2o O art. 1o da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990,
passa a vigorar com a seguinte alteração:
“Art.
1o (...)
I - homicídio (art. 121),
quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido
por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2o, I, II, III,
IV, V e VI);
Art. 3o Esta
Lei entra em vigor na data da sua publicação.
COMENTÁRIOS:
FEMINICÍDIO: Deve ser entendido como a morte de
mulher em razão da condição do sexo feminino (leia-se, baseada no
gênero). A incidência da qualificadora reclama situação de violência
praticada contra a mulher, em contexto caracterizado por relação de poder e
submissão, praticada por homem ou mulher sobre mulher em situação de
vulnerabilidade.
Com a novel Lei, o feminicídio passa a configurar a
sexta forma qualificada do crime de homicídio, punido com pena de reclusão de
12 a 30 anos, etiquetado como delito hediondo, sofrendo os consectários da
Lei 8.072/90.
FEMICÍDIO E FEMINICÍDIO
O § 2o-A foi acrescentado para esclarecer quando a morte da mulher deve
ser considerada em razão da condição do sexo feminino: I - violência
doméstica e familiar; II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
O esclarecimento, no entanto, além de inútil, causa confusão. Explico.
Feminicídio - comportamento objeto da Lei em comento,
pressupõe violência baseada no gênero, agressões que tenham como motivação a
opressão à mulher. É imprescindível que a conduta do agente esteja motivada
pelo menosprezo ou discriminação à condição de mulher da vítima. A previsão
deste (infeliz) parágrafo, além de repisar pressuposto inerente ao delito,
fomenta a confusão entre feminicídio e femicídio.
Femicídio - Matar
mulher, na unidade doméstica e familiar (ou em qualquer ambiente ou relação),
sem menosprezo ou discriminação à condição de mulher é FEMICÍDIO. Se a conduta
do agente é movida pelo menosprezo ou discriminação à condição de mulher, aí
sim temos FEMINICÍDIO.
A Lei também acrescentou ao art. 121 mais um parágrafo (§ 7o),
aumentando a pena do feminicídio em 1/3 até 1/2 se o crime for praticado:
I - durante
a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto.
Quando se inicia o parto (termo inicial do prazo de 3 meses configurador
da causa de aumento)?
A doutrina é divergente. Fernando Capez, ao tratar do tema, cita alguns
posicionamentos:
“Alfredo Molinario entende que o nascimento é o completo e total
desprendimento do feto das entranhas maternas. Para Soler, inicia-se desde as
dores do parto. Para E. Magalhães Noronha, mesmo não tendo havido desprendimento
das entranhas maternas, já se pode falar em início do nascimento, com a
dilatação do colo do útero.”[3].
Diante da indisfarçável controvérsia, seguimos a lição de Luiz Regis
Prado:
“Infere-se daí que o crime de homicídio tem como limite mínimo o começo do
nascimento, marcado pelo início das contrações expulsivas. Nas hipóteses em que
o nascimento não se produz espontaneamente, pelas contrações uterinas, como
ocorre em se tratando de cesariana, por exemplo, o começo do nascimento é
determinado pelo início da operação, ou seja, pela incisão abdominal. De
semelhante, nas hipóteses em que as contrações expulsivas são induzidas por
alguma técnica médica, o início do nascimento é sinalizado pela execução
efetiva da referida técnica ou pela intervenção cirúrgica (cesárea)”. [4]
II - contra
pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou com
deficiência.
Esta causa de aumento, nas duas primeiras figuras (ofendida menor de 14
anos ou maior de 60 anos) repete o § 4o. do art. 121. Alerto, porém, que o §
7o., diferentemente do § 4o., permite um aumento variável de 1/3 até 1/2.
A terceira figura contempla a vítima com
deficiência (física ou mental). O conceito de pessoa portadora de deficiência é
trazido pelos arts. 3º e 4º do Decreto 3.298, de 20 de dezembro de 1999, que
regulamentou a Lei 7.853, de 24 de outubro de 1989, in
verbis:
Art. 3º Para
os efeitos deste Decreto, considera-se:
I –
deficiência – toda
perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou
anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do
padrão considerado normal para o ser humano;
II –
deficiência permanente – aquela
que ocorreu ou se estabilizou durante um período de tempo suficiente para não
permitir recuperação ou ter probabilidade de que se altere, apesar de novos
tratamentos; e
III – incapacidade – uma redução
efetiva e acentuada da capacidade de integração social, com necessidade de
equipamentos, adaptações, meios ou recursos especiais para que a pessoa
portadora de deficiência possa receber ou transmitir informações necessárias ao
seu bem-estar pessoal e ao desempenho de função ou atividade a ser exercida.
Art. 4º É considerada pessoa
portadora de deficiência a que se enquadra nas seguintes categorias:
I –
deficiência física – alteração
completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o
comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma de paraplegia,
paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia,
triparesia, hemiplegia, hemiparesia, ostomia, amputação ou ausência de membro,
paralisia cerebral, nanismo, membros com deformidade congênita ou adquirida,
exceto as deformidades estéticas e as que não produzam dificuldades para o
desempenho de funções;
II – deficiência auditiva – perda
bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida
por audiograma nas frequências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e 3.000Hz;
III – deficiência visual –
cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou menor que 0,05 no melhor olho,
com a melhor correção óptica; a baixa visão, que significa acuidade visual
entre 0,3 e 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; os casos nos
quais a somatória da medida do campo visual em ambos os olhos for igual ou
menor que 60º; ou a ocorrência simultânea de quaisquer das condições
anteriores;
IV – deficiência mental –
funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação
antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de
habilidades adaptativas, tais como:
a) comunicação;
b) cuidado pessoal;
c) habilidades sociais;
d) utilização dos recursos da
comunidade;
e) saúde e segurança;
f) habilidades acadêmicas;
g) lazer; e
h) trabalho;
V – deficiência múltipla –
associação de duas ou mais deficiências.
III - na
presença de descendente ou de ascendente da vítima.
Ao exigir que o comportamento criminoso ocorra na “presença”, parece
dispensável que o descendente ou o ascendente da vítima esteja no local da
agressão, bastando que esse familiar esteja vendo (ex: por skype) ou ouvindo
(ex: por telefone) a ação criminosa do agente.
Parece óbvio que, para a incidência das circunstâncias majorantes
enunciadas nos incs. I, II e III, o agressor (ou agressora) delas tenha
conhecimento, evitando-se responsabilidade penal objetiva.
Encerro estas primeiras impressões da Lei fazendo algumas perguntas:
QUESTÃO: Pode
figurar como vítima do feminicídio pessoa transexual?
Inicialmente, como bem ressaltam Cristiano Chaves de Farias e Nelson
Rosenvald, “o transexual não se confunde com o homossexual, bissexual,
intersexual ou mesmo com o travesti. O
transexual é aquele que sofre uma dicotomia físico-psíquica, possuindo um
sexo físico, distinto de sua conformação sexual psicológica. Nesse quadro, a
cirurgia de mudança de sexo pode se apresentar como um modo necessário para a
conformação do seu estado físico e psíquico”.
Duas correntes
Uma primeira (conservadora)
- o transexual, geneticamente, não é mulher (apenas passa a ter órgão genital
de conformidade feminina), e que, portanto, descarta, para a hipótese, a
proteção especial;
Segunda (moderna),
desde que a pessoa portadora de transexualismo transmute suas características
sexuais (por cirurgia e modo irreversível), deve ser encarada de acordo com sua
nova realidade morfológica, eis que a jurisprudência admite, inclusive,
retificação de registro civil.
Rogério Greco, não sem razão, explica: “Se existe alguma dúvida sobre a
possibilidade de o legislador transformar um homem em uma mulher, isso não
acontece quando estamos diante de uma decisão transitada em julgado. Se o Poder
Judiciário, depois de cumprido o devido processo legal, determinar a modificação
da condição sexual de alguém, tal fato deverá repercutir em todos os âmbitos de
sua vida, inclusive o penal”.[6]
Nesse sentido, aliás, decidiu o TJ/MG, aplicando as Lei Maria da Penha não apenas para a mulher,
mas também transexuais e travestis:
“Para a
configuração da violência doméstica não é necessário que as partes sejam marido
e mulher, nem que estejam ou tenham sido casados, já que a união estável também
se encontra sob o manto protetivo da lei. Admite-se que o sujeito ativo seja
tanto homem quanto mulher, bastando a existência de relação familiar ou de
afetividade, não importando o gênero do agressor, já que a norma visa tão
somente à repressão e prevenção da violência doméstica contra a mulher. Quanto
ao sujeito passivo abarcado pela lei, exige-se uma qualidade especial: ser
mulher, compreendidas como tal as lésbicas, os transgêneros, as transexuais e
as travestis, que tenham identidade com o sexo feminino. Ademais, não só as
esposas, companheiras, namoradas ou amantes estão no âmbito de abrangência do delito
de violência doméstica como sujeitos passivos. Também as filhas e netas do
agressor como sua mãe, sogra, avó ou qualquer outra parente que mantém vínculo
familiar com ele podem integrar o polo passivo da ação delituosa” (TJMG, HC
1.0000.09.513119-9/000, j. 24.02.2010, rel. Júlio Cezar Gutierrez).
QUESTÃO: Reconhecido o privilégio pelos senhores jurados (ex: domínio de
violenta emoção), pode o juiz quesitar (perguntar) o feminicídio?
É sabido que, apesar da sua posição topográfica, mostra-se perfeitamente
possível a coexistência das circunstâncias privilegiadoras (§ 1º do art. 121),
todas de natureza subjetiva, com qualificadoras de natureza objetiva (§ 2º, III
e IV).
Nesse sentido, aliás, é firme a jurisprudência, inclusive dos Tribunais
Superiores.
O STF, a propósito, já decidiu:
“A
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é firme no sentido da possibilidade
de homicídio privilegiado-qualificado, desde que não haja incompatibilidade
entre as circunstâncias do caso. Noutro dizer, tratando-se de qualificadora de
caráter objetivo (meios e modos de execução do crime), é possível o
reconhecimento do privilégio (sempre de natureza subjetiva)”
O STJ, da mesma forma:
“Admite-se a
figura do homicídio privilegiado-qualificado, sendo fundamental, no particular,
a natureza das circunstâncias. Não há incompatibilidade entre circunstâncias
subjetivas e objetivas, pelo que o motivo de relevante valor moral não
constitui empeço a que incida a qualificadora da surpresa” (RT 680/406).
Diante desse
quadro preliminar, a qualificadora do feminicídio é subjetiva, incompatível com
o privilégio, ou objetiva, coexistindo com a forma privilegiada do crime?
É claramente subjetiva, pressupondo motivação especial, qual seja, o menosprezo
ou a discriminação à condição de mulher.
Em resumo: reconhecendo o Conselho de Sentença a forma privilegiada do
crime, fica afastada, automaticamente, a tese do feminicídio.
[1]. Recentemente, o STJ admitiu a aplicação da Lei Maria da Penha (11.340/06) numa agressão
contra mulher praticada por outra mulher (relação entre mãe e filha). Isso porque,
de acordo com o art. 5º da Lei 11.340/2006, configura violência
doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero
que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano
moral ou patrimonial em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor
conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Da
análise do dispositivo citado, infere-se que o objeto de tutela da Lei é a
mulher em situação de vulnerabilidade, não só em relação ao cônjuge ou
companheiro, mas também qualquer outro familiar ou pessoa que conviva com a
vítima, independentemente do gênero do agressor. Nessa mesma linha, entende a
jurisprudência do STJ que o sujeito ativo do crime pode ser tanto o homem como
a mulher, desde que esteja presente o estado de vulnerabilidade caracterizado
por uma relação de poder e submissão. HC 277.561-AL, Rel. Min. Jorge
Mussi, julgado em 6/11/2014.
[2]. Antes da Lei 13.104/15 essa forma do crime já
qualificava o homicídio, mas pela torpeza, sendo igualmente rotulada como
hedionda. A mudança, portanto, foi meramente topográfica, migrando o
comportamento delituoso do art. 121, § 2o., I, para o mesmo parágrafo, mas inc.
VI. A virtude dessa alteração está na simbologia, isto é, no alerta que se faz
da existência e necessidade de se coibir com mais rigor a violência contra a mulher em
razão da condição do sexo feminino.
[3]. Direito
Penal – Parte Especial, v. 2, p. 11-12.
[4]. Tratado
de Direito Penal Brasileiro, v. 4, p. 62.
[5]. Direito
civil – Teoria geral, p. 115.
[6]. Curso
de direito penal, vol. III, p.
530.
[7]. HC 97.034/MG, DJe 07/05/2010
Promotor de Justiça no Ministério
Público do Estado de São Paulo
Promotor
de Justiça/SP, Professor da Escola Superior do MP/SP, Professor de Penal e Processo
Penal
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