segunda-feira, 11 de maio de 2009

A PENA COMO INSTRUMENTO DE DOMINAÇÃO DO ESTADO CAPITALISTA

O Estado Penal que, paulatinamente, substituiu as ações sociais do Estado Providência, em detrimento de um jus puniendi muito mais repressivo/punitivo. As malhas do Estado Penal atingem sobremaneira as classes desfavorecidas do sistema social e econômico, dando ênfase à criação de tipos penais que culminam com a aplicação desmedida da pena privativa de liberdade, o que ainda resulta na superpopulação carcerária e na desumanidade na execução da pena. O fim último deste Estado Penal é a privatização/terceirização dos presídios, numa demonstração de que, a partir da ascensão do sistema de produção capitalista até os dias atuais, o Direito Penal tem servido para a manutenção do status quo das classes mais abastadas, detentoras do poder em sua mais larga acepção.

PALAVRAS-CHAVE: Estado Penal, poder punitivo, capitalismo, lei e ordem, políticas públicas, privatização.

SUMÁRIO: Introdução. Estado penal: a política do “tudo penal”. A privatização/terceirização dos presídios. “Estado de terror”. O Direito penal reafirma o capital.

INTRODUÇÃO

O texto trata de uma reflexão acerca da substituição do Estado Providência por um Estado cada vez mais repressivo, coercitivo: chamado de Estado Penal. As políticas criminais adotadas por esta forma de exercício do poder punitivo estatal, revelam a preferência em criminalizar as classes desprivilegiadas do sistema capitalista: são as chamadas classes subalternas, subordinadas, dominadas, os considerados à margem das “benesses” do modo de produção capitalista. Essas “classes sociais” são formadas pela grande gama de indivíduos pertencentes aos setores do proletariado, ou fora dele, como eternos desempregados, hipossuficientes, relegados ou abandonados pelo próprio Estado.

Esta reflexão aponta, essencialmente, para a característica desigual do Direito Penal, tendo como pressuposto as próprias escolhas feitas pelo Estado brasileiro, quanto a esta sanha crescente pelo jus puniendi. Deste modo, hoje estamos quase incapacitados de acionar os mecanismos institucionais necessários para executar as políticas públicas básicas.

Diante disso, dizemos que a escolha atual dos Estados – desde os EUA, até os rincões da América Latina –, tem sido a do exercício de um Direito Penal envolto em uma política criminal estanque de valorações sociais, políticas e econômicas e que, ao contrário, provém de uma perspectiva antidemocrática do exercício do poder. Assim, é bom lembrar que uma dogmática, no caso a jurídico-penal, não pode ser absolutamente concebida aquém desses valores. Resta dizer: não há como pensar o Direito, principalmente o Direito Penal como isento, neutro de valorações.

É a partir dessa reflexão que podemos dizer que uma abordagem acerca da dogmática jurídico-penal não pode ser feita sem uma relação entre o Direito Penal e o crime, além da política criminal de modo geral. Trata-se, portanto, de esclarecermos de que política criminal estar-se-ia falando; se de uma política criminal assente no Estado Democrático de Direito, pautada nas relações democráticas, nos princípios básicos do respeito à dignidade humana, da igualdade e da liberdade; ou se de uma política criminal baseada na manutenção do status quo da classe dominante, das desigualdades sociais gritantes, dos privilégios de uns poucos sobre a maioria dominada. È esta última política criminal, negativa aos direitos humanos, que o Estado Penal vem defendendo.

O Estado Penal é extremamente repressivo. Sua principal meta é a manutenção da “lei e da ordem”, com um suposto combate desmedido ao crime a qualquer custo. A política de “tolerância zero1”, adotada e defendida pelo Estado Penal, é a sua maior campanha no combate à criminalidade, porque para este tipo e Estado coercitivo “o crime não passa de uma escolha feita pelo agente”. Deste modo, o crime sempre é de absoluta responsabilidade do delinqüente, sem que haja uma relação que envolva o social, o político e o econômico no crescente avanço dessa mesma alegada “criminalidade social”:

É aí que se encontra um dos principais ângulos da funcionalidade do sistema penal, que, tornando invisíveis as fontes geradoras da criminalidade de qualquer natureza, permite e incentiva a crença em desvios pessoais a serem combatidos, deixando encobertos e intocados os desvios estruturais que os alimenta (KARAM, 2004 p. 91).

O Estado Penal nos coloca diante da seguinte questão: o que restaria à maioria subordinada seria a consolidação de que, o fato de pertencer às camadas mais frágeis da população, já implicaria na possibilidade de carregar o estereótipo predominante da criminalidade – como comportamento normal desses grupos sociais: o status de criminoso, nas relações de controle social.

O caráter funcional do Direito Penal, pautado na desigualdade, seletividade e fragmentação, é o reflexo do sistema capitalista que promove a desigual distribuição das riquezas e das relações de poder na sociedade, o que acarreta a hierarquização dos interesses em jogo: a manutenção da vida com dignidade ou a supervalorização e a superproteção da propriedade privada? Isso concorre para que as relações de subordinação e de exploração permaneçam cada vez mais evidentes, sendo o Direito Penal o suporte/mantenedor dessas mesmas relações de subordinação e de exploração dos indivíduos.

A sociedade “afluente transformou-se na sociedade de efluência asfixiante, e a alegada onipotência tecnológica sequer foi capaz de debelar a invasão dos ratos nas deprimentes favelas dos guetos negros [...] (Enquanto prevalecer o poder do capital, o ‘governo mundial’ está fadado a permanecer em devaneio futurológico) [...] O status quo de pouco tempo atrás vem se desintegrando rápida e dramaticamente diante de nossos próprios olhos — basta querer ver. A distância entre a ‘Cabana do Pai Tomás’ e os bairros sitiados da militância negra é astronômica” (MÉSZAROS, 1989, pp. 15-20-25-26 – grifos nossos).

Agora ou há muito tempo, como vimos acima, ocorreu uma veemente escolha Estatal a fim de substituir as políticas públicas de assistência às populações carentes, pelo controle social meramente repressivo do Estado Penal.
Não é difícil perceber a atuação desse tipo de Estado, basta que pensemos – no caso do Brasil – na edição da Lei dos Crimes Hediondos, na aplicação do RDD na execução da pena, nos apelos, tanto institucionais, quanto de grande parcela da população para a redução da idade penal, no aumento da população carcerária, nas exigências pelo endurecimento das penas (mais longas e mais severas), na construção de mais presídios comuns e de segurança máxima. Se na sociedade civil já é conturbado o “espaço de cidadania”, imagine-se a “cidadania” no correr das celas:

Tal “cidadão” contribuinte evade ingressos ao fisco do governo em que votou, sem rubor. Tal “cidadão” roubado “o deixa estar”: não denuncia o pequeno roubo ante a inutilidade da polícia [...] Tal “cidadão” é condenado a tantos anos e uma Aids. [...] Multidões imensas de cidadãos consomem drogas, cujo tráfico denuncia seu jornal favorito, o qual se alarma pelo “fracasso escolar” dos futuros cidadãos, que abrem com televisor e música de moda o livro de texto (CAPELLA, 1998, p. 132).

Certo é que, da forma como vem sendo abordado o tema da criminalidade e do controle social da violência pelo sistema penal – estanque da realidade política, social e econômica –, tem-se revelado ineficaz, ineficiente. Tornando-se apenas reprodutor de uma violência institucional ainda maior, que é a manutenção da desigualdade e da violação dos direitos humanos fundamentais: vida digna, saúde, trabalho, educação, lazer, prazer em viver, desenvolver seus potenciais.

No decorrer do texto veremos o quanto a criminalidade tem se revelado lucrativa para diversos setores do mercado empresarial, principalmente aqueles que vivem da segurança privada: veremos que o crime que outrora não compensava, porque conduziria o criminoso para a prisão, agora é um novo e prospero meio de obtenção de lucro. Agora o chavão nos parece ser outro: a ação criminosa, a depender de que lado você se encontre, torna-se altamente lucrativa.

Estado Penal: a política do “tudo penal”

Inaugura-se uma nova fase do Estado de Direito, o que especialistas em criminologia e sociologia criminal têm chamado de Estado Penal. É um tipo de Estado baseado no avanço crescente da privatização da segurança, tendo nascido nos EUA, migrou para a Europa e há tempos chegou ao Brasil. Porém, sua real origem, “totalitária”, como sabemos, provém do modelo pré-nazista apelidado sarcasticamente de Estado de Justiça:

Disso deriva a ambigüidade da expressão Estado de Direito [...] ou de um “Estado de Justiça”, tomada a justiça como um conceito absoluto, abstrato, idealista, espiritualista, que no fundo encontra sua matriz no conceito hegeliano do “Estado Ético”, que fundamenta a concepção do Estado fascista [...] Diga-se, desde logo, que o “Estado de Justiça”, na formulação indicada, nada tem a ver com Estado submetido ao Poder Judiciário, que é um elemento importante do Estado de Direito (SILVA, 2003, p. 100).

Veremos que esse “novo tipo de Estado” (assim designado porque substituiu as “políticas sociais do Estado Providência” pela “política do enrijecimento de medidas punitivas à criminalidade”), ironicamente se viu vítima e aprisionado, sitiado e isolado da sociedade, ao distanciar-se da prática eficaz das políticas públicas. Entretanto, são longevas as “ameaças” ou estranhamentos às modificações por dentro do sistema, com capacidade efetiva de oxigenação de todas as formas de “compressão”, seja do trabalhador alienado da consciência do próprio fazer, seja do sitiado, em seu país ou cultura:

Foi bastante dramática a mudança que solapou o poder da política de consenso, da limitada institucionalização e integração do protesto social, da exportação fácil da violência interna, através de sua transferência ao planos dos conflitos internacionais mistificantes etc [...] A sociedade “afluente transformou-se na sociedade de efluência asfixiante, e a alegada onipotência tecnológica sequer foi capaz de debelar a invasão dos ratos nas deprimentes favelas dos guetos negros [...] (Enquanto prevalecer o poder do capital, o ‘governo mundial’ está fadado a permanecer em devaneio futurológico). A ‘crise de hegemonia ou do Estado em todas as esferas’ (Gramsci) tornou-se um fenômeno verdadeiramente internacional [...] O status quo de pouco tempo atrás vem se desintegrando rápida e dramaticamente diante de nossos próprios olhos — basta querer ver. A distância entre a ‘Cabana do Pai Tomás’ e os bairros sitiados da militância negra é astronômica” (MÉSZAROS, 1989, pp. 15-20-25-26 - grifos nossos).

Isto foi publicado pela primeira vez por Mészáros no início da década de 70 e é óbvio que a expressão “bairros sitiados” não se refere a nenhum recorte territorial imposto pelo Estado de Emergência ou Necessidade, mas não há como negar que hodiernamente vivemos “sitiados em condomínios”, casas fortificadas, com “células de sobrevivência” e muitos outros artífices de guerra. Portanto, não causa espanto dizer-se que nos defendemos, como podemos, nesta “guerra civil”, assim como a própria polícia teve de fazer no auge dos ataques do crime organizado em 2006, no Estado de São Paulo: “os policiais estavam sitiados pelo crime”. Atualizando-se expressões antigas, “envelhecidas”, como guerra civil, agora especialistas chamam a isto de “guerra assimétrica nas ruas”. Estes são, no fundo, meros demonstrativos do que é se sentir sitiado, isolado, alienado, fragmentado. Mas, a esperança de todo sitiado é justamente trocar a cela pela sala, a heteronomia (tutela) pela autonomia (capacidade real de “dar normas a si mesmo”, “sentindo-se responsável pelo mundo”). Mas, há muito mais, há uma sufocação que nos cerca a todos, sitiados ou simplesmente isolados.

Desse modo, o Estado Penal é aquele que se baseia no sentido arraigado da coerção (tutoria) para afirmar a legitimidade e, principalmente, afirmar uma legalidade criminal, punitiva e repressora, obviamente, de outros direitos e liberdades.

No Estado Penal o melhor slogan é “combater o crime” (tolerância zero), atualizando o típico discurso da “manutenção da lei e da ordem”, isto é, do status quo. Desse modo, uma ação típica do Estado Penal é criar tipos penais; mas, o mais evidente resultado desse Estado Penal é, justamente, lucrar com o “combate” à atividade criminosa2, uma vez que a criminalidade acabou por se tornar altamente lucrativa3.

Como exemplo do lucro com a criminalidade ressaltamos que no ano de 2005 o comércio do Rio de Janeiro gastou 2,8 bilhões de reais em segurança; os bancos brasileiros gastam 1 bilhão de dólares em segurança eletrônica, vigilância e transporte de valores; uma das maiores empresas de segurança de dados instalada no Brasil gasta no país 13% do seu faturamento em segurança: blindagem de carros, cuidado pessoal para os executivos e rastreamento por satélite; os gastos para segurança para transporte de cargas, representa cerca de 12% do total do frete. A estimativa é que para evitar o roubo de cargas as companhias de transportes invistam cerca de 3,8 bilhões de reais por ano em segurança4.

No Brasil a presença do Estado Penal é altamente visível e, como exemplo, podemos citar vários casos: a edição da Lei dos Crimes Hediondos, votada na calada da noite, para atender um “caso emblemático e midiático”; as exigências pelo endurecimento das penas (o RDD é resultado dessa política – o que contraria as premissas de direitos humanos5); os apelos populares e institucionais (ideológicos) para que haja a redução da maioridade penal; a construção de presídios de segurança máxima, entre outros, que mais lembram as antigas masmorras.

Nossa história ilustra bem que esse Estado Penal pode se converter em Estado de não-Direito6 rapidamente, bem como secciona a sociedade (já cindida entre ricos e pobres) em “homens bons e maus” entre “cidadãos de bem” e bandidos. No mais, quem nos garantirá como “mocinhos e mocinhas” de bem e não como bandidos caçados? Por que os mesmos aguerridos defensores da “ordem pública” (status quo capitalista) não peticionam e reivindicam o agravamento das penas dos chamados crimes do colarinho branco?

O maior endurecimento do Direito Penal e diminuição das garantias imanentes ao ser humano sempre terão como destinatários os estratos pertencentes às classes vulneráveis ao direito punitivo, nunca aqueles que se encontram no poder, já que o poder é um imunizador eficaz contra o sistema penal (GUIMARÃES, 2007, p.280).

Indubitavelmente, é preciso pensar muito bem essa relação entre pobreza e marginalidade, pois é nesse “intercurso” que irá agir mais intensamente o Estado Penal. Por que, sistematicamente, ignoramos a sociologia criminal, a moderna criminologia crítica, os ganhos do Iluminismo, com a ascensão da racionalidade (mas que racionalidade?)? Será apenas uma ignorância histórica e teórica? Ou, ainda, resta-nos interrogar: por que a humanidade, a mercê dos avanços científicos e tecnológicos que deveriam conduzir o homem também ao avanço moral e ético, em vez de entrar em um estado humanístico, parece afundar-se cada vez mais em um estado de profunda barbárie? Agora uma barbárie racionalizada?!

Um olhar mesmo que superficial para o passado ou sobre o presente, rapidamente nos levaria à consciência de que não precisamos de “novos” manuais de Direito Penal (atualizando a aplicação das penas mais severas) e sim de políticas públicas que revertam o fluxo da desigualdade social, agora agravada por uma ainda “desigualdade jurídica”, ministrada pelo Direito Penal. Certamente que este é um discurso velho, mas é tão certo quanto já é esquecido da maioria do povo, incluindo especialistas.

A grande maioria aplaude as iniciativas punitivas, policialescas porque não percebe que será a primeira a ser vitimada. Não percebe, a grande maioria, “sem eira, nem beira”, que o Estado Penal não é capaz de irromper as portas da Casa Grande. Não percebe essa mesma maioria que a “senzala” continua plasmada, precisando de liberdade (e não de grilhões), de comida, de emprego, de educação e de saúde, de lazer e de cultura, de respeito social e dignidade. Então, só depois, um bom tempo depois de tudo isso satisfeito, aí sim, poderia vir a segurança acompanhar a sua pauta social.

Em um país como o Brasil, em que a democracia, a igualdade perante a lei – principalmente a lei penal – a cidadania e outros direitos inerentes ao respeito à dignidade humana ainda não se concretizam, permanecendo no campo meramente formal como uma noção abstrata e, ainda assim, a poucos revelada, resta configurado um campo propício para a repressão dos não-cidadãos através do Direito Penal, forma extrema de violência institucionalizada (GUIMARÃES, 2007, p. 260).

O fato é que, realmente, não há “agenda social” para pobres e miseráveis7. O que os defensores do Estado Penal ignoram é que, na história política brasileira, o Estado é que foi criminoso ao condenar milhões a viver em bolsões de miséria pelo país afora, ao longo de séculos. Não é difícil constatar essa realidade, hoje a velha e insistente seca nordestina, alardeada mais uma vez pela mídia, nos coloca mais uma vez diante da inoperância Estatal em garantir aos menos favorecidos o mínimo para uma existência digna. Haja vista que em se tratando de seca há muito se sabe que não é exclusivamente um problema dos céus, mas essencialmente um problema de política pública eficaz e eficiente.

Um dos muitos lados perversos dessa descaracterização do Estado Democrático de Direito, no Brasil, é revelado pelo inequívoco agenciamento de policiais pela impunidade e pelo lucro fácil. Exemplo disso se vê nas chamadas “milícias” cariocas, em disputa aberta com o tráfico já instalado nos morros e que teria levado à morte mais de 200 pessoas, pela posse das “bocas de fumo”. No fundo, são apenas sucessores dos antigos “Esquadrões da Morte”, denunciados e desbaratados pelo então jurista Hélio Bicudo. Também foi por esse tempo que se dizia: “antes atire, depois pergunte”. Aliás, ironicamente, o lema da ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) é peculiar: “Dignidade Acima de Tudo8”. Um pequeno histórico da formação da Polícia Militar também esclarece alguns pontos, quem sabe, da origem do próprio Estado Penal:

Na França da Idade Média eram os militares que se encarregavam de toda a segurança, interna e externa, sem nenhuma divisão de função. A força comandada pelos "marechais" era chamada de "marechausée", que poderia ser traduzida para "marechaleza" ou atividade de marechal. Até o iluminismo do século XVIII foi esse o quadro da segurança interna francesa. A "Marechausée" foi então convertida em "Gendarmaria", do francês "Gendarmerie", de "Gens d'Armes", literalmente homens armados. Portugal não ficou imune a essa lufada de inovações, tendo criado em 1801 a "Guarda Real de Polícia", evidentemente inspirada na "Gendarmerie". A vinda da Família Real para o Brasil acabou por levar Dom João VI a criar, em 13 de maio de 1809, a Divisão Militar da Guarda Real de Polícia, ou simplesmente "Guarda Real de Polícia". A Independência desorganizou a "Guarda Real de Polícia", que era composta em sua maioria por portugueses, ficando a segurança da cidade a cargo das chamadas "Milícias", que, embora fossem continuadoras da "Guarda", não desempenhavam suas funções a contento9.

É uma polícia que nasceu da “arte ou necessidade da guerra”, assim como o Estado Penal decorre das tais “guerras assimétricas das ruas”. Na América Latina, como se sabe, a história política sempre esbarra na história policial. Por isso, qualquer “endurecimento” quanto aos artefatos penais, sempre faz soar o sino de alerta à restrições políticas. Quando se fala em América Latina, precisamos nos lembrar que esse tipo de Estado Penal, como um Estado repressor, sempre rondou a seara das instituições democráticas à espera de movimentos (ou “enfraquecimentos”) que permitissem transpor as garantias legais, morais e populares da democracia. Portanto, não foram poucas as vezes em que reivindicações populares foram meros pretextos para quarteladas: de Canudos aos Sem-Terra.

No Brasil, as questões populares, a pobreza, a indignação diante dos privilégios dos abastados e poderosos, costumeiramente eram ou são “caso de polícia” e raramente de política. Aliás, uma sentença muito utilizada por militares e outras autoridades de um período histórico não muito distante dos dias que correm. O que, de certo modo, explica e exemplifica o porquê do Estado de Sítio se tornar, na prática jurídico-política real, um simples golpe de Estado.

Quem, em sã consciência, veria no AI-5 (Ato Institucional, nº 05), um resumo deliberativo e democrático do povo brasileiro, daquele período? Como explicar que Brasil, Chile, Argentina, Uruguai, tivessem Estados de Sítio tão repressores e tão semelhantes quanto ao uso de meios de exceção?

Isso nos leva a crer que um Estado de Sítio, primeiro, não pode durar décadas; segundo, não pode a democracia existir sem a expressão popular e o envolvimento institucional do Legislativo; terceiro, só no contexto de um Estado Penal, em que a repressão está em primeiro plano, pode-se admitir a violência desenfreada, a tortura, o exílio, o extermínio da oposição10; quarto, em um Estado forte e repressor, é natural que “a corda rompa para o lado mais fraco” ou dos pobres de todo gênero: aliás, a mesma origem da grande massa carcerária brasileira. Esse tipo de Estado na América Latina, portanto, tem origem e raízes antidemocráticas — aqui, é preciso relembrar sempre, o Estado de Sítio rapidamente se revira em quarteladas ou golpes de Estado sangrentos. O discurso da segurança, sem dúvida, é sempre secundário, como é o da “segurança jurídica”, frente à suposta “segurança nacional”. Mas, também a “segurança pública” continua sendo reduzida à segurança policial: “Mais policiais nas ruas!”. Para o povo, entretanto, isto é o mesmo que o não-Estado:

Para o nosso objetivo, é interessante notar que numa doutrina do primado do não-Estado, o Estado se resolve na detenção e no exercício legítimo do poder coativo, de um poder meramente instrumental na medida em que presta serviços (indispensáveis, mas, pela sua própria natureza, de grau inferior) a uma potência supraordenada. Esta observação é interessante porque a própria representação instrumental do Estado ocorre quando o não-Estado que avança as próprias pretensões de superioridade contra o Estado é a sociedade civil-burguesa (BOBBIO, 1986, p. 123).

Mas, o processo não é tão frio e simples quanto possa se pensar popularmente, pois, mesmo que o poder pudesse recuperar instrumentalmente as tentativas de transformação política, pensamos que o argumento mistura a dimensão social empírica (dominação por meio do uso instrumental da razão - o que evidentemente não esgota as possibilidades do próprio real) com a cultural, potencial crítico da razão moderna que não é só instrumental.

Entretanto, parece que, historicamente, agora evoluímos: do chicote escravocrata, ao cárcere de segurança máxima; do exílio à prisão superlotada; dos mucambos às celas fétidas; do terreiro ou do pelourinho a muitos Carandirus que ainda resistem; do cortiço à marginal; de escravo a favelado e daí a encarcerado; de pobre a criminoso; de escravo ou “sem-nada” a “Sem-Terra” ou “Sem-Teto”, “sem comida”, “sem dignidade”, “sem nada”, mas com muita punição e penas severas11.

De fato, historicamente, a única jóia que esse povo todo vai ver de perto, usando diuturnamente, exibindo aos seus amigos (inimigos), vizinhos e familiares, são as tais “pulseiras eletrônicas12”. Sempre controlados à distância, para melhor reprimir os pequenos delitos (“tolerância zero”), enquanto os grandes delitos continuam sendo tolerados. Os mais vitimados já estão sitiados pela miséria e violência, além de excluídos da Justiça e da paz. Mas, será que com tanta incerteza, inquietações, meias-respostas, verdades oportunistas, ainda precisamos de mais “força”? Será que nesse mundo precisamos de mais violência, repressão, tratamento de choque e perseguições? Ou seria mais razoável para enfrentar essa “crise social” (chamada eufemisticamente “guerras assimétricas das ruas13”) pensar em paz, educação, responsabilidade social, igualdade de oportunidades?

Essa maximização do Direito Penal revela-se extremamente onerosa para o Estado e para a sociedade. A onerosidade social se dá quando ocorre a transferência de verbas públicas – cada vez mais utilizadas na repressão à criminalidade –, mas que poderiam ser alocadas para suprir gastos com programas sociais, garantindo direitos sociais elementares para os cidadãos e conseqüentemente minorando as práticas delituosas. Um exemplo concreto disso pode ser constatado na cidade de São Paulo, mais especificamente no Bairro Jardim Elisa Maria, zona norte da capital, quando da implantação de programas sociais com o objetivo precípuo de combater a violência criminal e seu avanço. Este programa de ação integrada de cidadania, chamado de Virada Social, contou com a participação de 600 policiais militares da Tropa de Choque da Policia Militar, que em 81 dias de trabalho ajudaram na redução da criminalidade. Concomitantemente, os policiais instalaram barracas com um consultório odontológico e um médico para atender a população: medidas de assistência social à população carente. A saída é mais assistência social e respeito aos direitos sociais e menos repressão/coerção.

No dia 31 de maio, começou a Virada Social propriamente dita, com a saída da Tropa de Choque – o policiamento da área, no entanto, permaneceu reforçado – e a chegada de programas de inclusão social que envolvem 26 secretarias e órgãos públicos estaduais e municipais além de organizações não-governamentais. A idéia, segundo a secretaria, é que o ‘problema da violência não pode ser resolvido somente com a repressão policial; e que a inclusão social é um importante instrumento de segurança pública’ (GODOY, 07/09/2007).

Por outro lado, o ônus estatal tem aumento drástico quando essas verbas são utilizadas em políticas de premissas repressivas e cuja justificativa é a preservação da lei e da ordem, da segurança dos “cidadãos de bem”. A experiência e a realidade brasileira demonstram que as técnicas e os métodos utilizados como medidas punitivas/repressivas não deram e nem dão respostas positivas ao problema da delinqüência, mas, pelo contrário, parecem agravá-lo ainda mais. Investir na coerção/punição acaba por impedir a realização de outros tantos direitos sociais, muito mais fundamentais para as necessidades da população e cuja efetividade – reforce-se – apresentar-se-ia como a mais viável e eficaz alternativa, como política e programa para a redução das práticas tidas como delituosas. André Copetti (2000, p. 73-74) nos alerta que:

[...] é demasiadamente sabido que o custo do delito para o Estado é muito alto, e se a análise deste aspecto levar em consideração os resultados negativos obtidos, atinge patamares estratosféricos. Estes custos para as finanças públicas decorrem da necessária estruturação do Estado para a realização de atividades destinadas à repressão, à investigação, a estudos científicos, à prevenção e, até mesmo, do custo das infrações contra as finanças do Estado. Tem assim, o erário público especificamente, para a execução da lei, para a administração da justiça e para o “tratamento” do delinqüente, que aportar recursos para o pagamento dos salários de policiais, do Ministério Público, da magistratura, de ministros, do pessoal administrativo, do pessoal penitenciário, para amortização de prédios públicos, para a aquisição de equipamentos, de instalações ocupadas na prevenção, na administração da justiça e na reabilitação.

Neste sentido, podemos assegurar que não há como combater a criminalidade com a redução da efetividade dos direitos sociais. Assim é que nos chamam a atenção às considerações de Edson Passetti (2004, p. 29): “Os direitos sociais podem ser, comparativamente, sob certas circunstâncias históricas, meios para a contenção de políticas de segregação sociais, encarceramento prisional e um redutor de desequilíbrios sociais, ampliando as práticas de tolerância”. A substituição do Estado Providência pela maximização do jus puniendi certamente não se afigura como o melhor caminho. Apenas alastra o terror quase que generalizado e a falsa crença de que ao trancafiar e jogar as chaves fora, a sociedade estará protegida dos marginais. “Punir é o verbo que circula entre zunzuns e algaravias e o que contagia as pessoas pelos diversos segmentos sociais” (PASSETTI, 2004, p. 29).

Uma demonstração mais recente do quanto o Estado Penal brasileiro tem crescido, pode ser vista quando se trata da construção de presídios de segurança máxima, um ônus para o Estado e para a sociedade e uma medida repressiva, sem que se saiba quais são seus efeitos positivos mais genéricos.

Não é impossível impedir que celulares – ou armas – cheguem aos presos. Os presídios federais de Catanduvas (PR) e Campo Grande (MS) – outros dois estão sendo construção, Mossoró (RN) e Porto Velho (RO) – conseguem isso. Eles estão equipados com detectores de metais e têm capacidade para apenas 208 presos – um em cada cela –, vigiados por 250 agentes penitenciários – 60 em cada turno –, ganhando R$ 4 mil por mês. ‘O problema é que os presídios dos Estados não estão devidamente aparelhados, não têm pessoal nem tecnologia’, afirma Kuehne (SANT’ANNA, 18/03/2007, grifo nosso).

Hoje, as prisões brasileiras comportam 103 mil presos (35%) acima de sua capacidade. Com a tramitação no Congresso Nacional de medidas de endurecimento na legislação penal, a perspectiva é de que o sistema estrangule, afirmou Maurício Kuehne, diretor do Departamento Penitenciário Nacional (Depen). O Brasil possui 401 mil presos, para 298 mil vagas, sendo que o custo mensal por preso, chega a R$ 1 mil14. Além do que, as condições das instituições presidiárias são deploráveis, permitindo o fortalecimento do crime organizado dentro dos presídios – é o caso do PCC – e o desrespeito às normas nacionais e internacionais de tratamento ao recluso.

Os dados do Departamento Penitenciário Nacional revelam que o roubo é o crime mais cometido no Estado brasileiro, 29,3%, contra 10% de homicídio. Também revelam que a população carcerária por habitantes, em fevereiro de 2005, chegou a 183 por mil habitantes. Em 2006, os números cresceram, em dezembro este índice chegou a 223 por mil habitantes15. Vê-se que o crescimento carcerário não diminuiu a criminalidade, nem no Brasil e nem nos EUA, que já passaram há muito do um milhão de presos.

É de se pensar que só o rigor penal jamais resolverá o problema da assombrosa violência criminal no Brasil, pois associado a isso está o crescimento da miséria que sem dúvida é a maior violência instituída no/pelo Estado. As vozes clamam de todos os lados, a sensação de profunda angústia paira sobre toda a sociedade, gerando medo e descrédito. Para o jurista e professor de filosofia do direito Tercio Sampaio Ferraz Junior:

Mas, em termos práticos, endurecer resolve? O que a gente observa é que a degradação humana, provocada por aquilo que eu chamo de organização do crime, não se corrige com punições altamente rigorosas. Porque o sujeito não se importa muito com isso. Se disser a ele que está condenado à morte, não importa, ele está esperando a morte a todo momento. Então há um equivoco nessa apreciação. O que a gente tem que levar em consideração, e isto é importante, é que as penas estabelecidas, do jeito que a lei prevê, sejam cumpridas (BIANCARELLI, 18/02/2007).

Corrobora com esse pensar outro jurista, o advogado Miguel Reale Junior (03/03/2007), ex-Ministro da Justiça, em considerações acerca da morte do menino João Hélio, no primeiro semestre de 2007: “se mudanças legislativas são necessárias, mais importantes são medidas, as mais diversas, de política criminal de cunho social, rejeitando as reações primárias instintivas que facilmente seduzem do homem simples ao intelectual”.
Todo esse desgaste emocional e atemorizante provocado na sociedade, ainda esconde outro ganho, agora privado, daqueles que lucram, legalmente, com a prática da criminalidade, com serviços prestados ao sistema penitenciário. Estamos falando da privatização de presídios e/ou da terceirização de serviços penitenciários – como é o caso do Brasil, das “quentinhas” à própria segurança privada” –, como principal solução para a contenção de gastos estatais com o aprisionamento, já despontando como um novo ramo de negócio bem sucedido do mercado financeiro. O crime realmente tornou-se um business altamente lucrativo! É bom frisar que os “projetos nacionais” seguem o modelo americano.

A privatização/terceirização dos presídios

Foi a partir das políticas públicas desenvolvidas nos Estados Unidos da América com a maximização do Estado Penal em detrimento do Estado social, com a redução dos gastos do Estado na área social e o recrudescimento do poder punitivo estatal, que veio, pouco a pouco, tomando forma a política de privatização/terceirização dos presídios como solução para a diminuição de gastos dos Estados com o aprisionamento.

A partir de meados dos anos 80 a política de privatização dos presídios tornou-se uma realidade no combate à crise generalizada do sistema carcerário das sociedades capitalistas avançadas do mundo ocidental. Primeiramente nos EUA, em seguida na Inglaterra, França, Canadá e Austrália, até tomar forma ideológica nos países latinos como o Brasil por volta do ano de 1992 (MINHOTO, 2000 p. 25). Nesse âmbito, o presídio é visto no século XXI, como mera fonte de obtenção de lucros em um mercado cada vez mais crescente, que é este do combate à criminalidade ou controle do delito.

Com o desenvolvimento e adoção da política de “tolerância zero”, como parte dessa maximização do Estado Penal americano – tida como a solução para a contenção da criminalidade –, revela-se, uma vez mais, o caráter seletivo do Direito Penal, cujo objetivo – dos Estados Unidos para o mundo – é a segregação da miséria, a punição das classes subalternas, o sub-proletariado.

Loic Wacquant, em Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos e em As prisões da miséria, já revelava a transição norte americana do Estado caritativo/social para o Estado Penal; do chamado Estado providência, para um Estado que cada vez mais criminaliza a miséria.

[...] não obstante as desigualdades sociais e a insegurança econômica terem se agravado profundamente no curso dos dois últimos decênios (...), o Estado caritativo americano não parou de diminuir seu campo de intervenção e de comprimir seus modestos orçamentos, a fim de satisfazer a decuplicacão das despesas militares e a redistribuição das riquezas em direção às classes mais abastadas. A tal ponto que a “guerra contra a pobreza” foi substituída por uma guerra contra os pobres, bode expiatório de todos os maiores males do país (...) doravante intimados a assumir a responsabilidade por si próprios, sob pena de se verem atacados por uma saraivada de medidas punitivas e vexatórias destinadas, se não a recolocá-los no caminho certo do emprego precário, pelo menos a minorar suas exigências e, portanto, seu peso fiscal (WACQUANT, 2003, pp. 23- 24).

Desse modo, a ação estatal americana tem sido a de cortar gastos com a assistência social e investir maciçamente no sistema penal. Como conter o fluxo crescente das famílias deserdadas, dos marginais das ruas, dos jovens sem esperanças e da violência que se intensifica nos bairros e na porta ou dentro das casas? A resposta das autoridades americanas tem sido o desenvolvimento das funções repressivas do Estado: o Estado punitivo tem sido chamado a substituir o Estado caritativo por outra malha disciplinar, repressora, atingindo, sobremaneira, as regiões inferiores do espaço social americano (WACQUANT, 2003, p. 27). No Estado brasileiro a ação não tem sido outra, dado que a criminalidade é vista e “tratada” como uma questão de escolha pessoal do “sujeito delinqüente” frente às possibilidades/dificuldades ofertadas pela vida (ou imposta pelo meio?).

Nesse sentido, no Estado Penal, o encarceramento tornou-se uma verdadeira indústria e uma indústria bastante lucrativa. Para Wacquant (2003, pp. 31-32):
[...] a política do “tudo penal” estimulou o crescimento exponencial do setor das prisões privadas, para o qual as administrações públicas perpetuamente carentes de fundos se voltam para melhor rentabilizar os orçamentos consagrados à gestão das populações encarceradas. Elas eram 1.345 em 1985; serão 49.154 dez anos mais tarde, faturando dinheiro público contra a promessa de economias ridículas: alguns centavos por dia e por preso, mas que, multiplicados por centenas de milhares de cabeças, justificariam a privatização de fato de uma das funções régias do Estado. Um verdadeiro comércio de importação-exportação de prisioneiros prospera hoje entre os diferentes membros da União: a cada ano, o Texas “importa” vários milhares de detentos dos estados vizinhos, ao arrepio do direito de visita das famílias, para reenviá-los no fim da pena para suas cidades de origem, onde serão consignados sob liberdade condicional.

A princípio, a indústria do controle da criminalidade estava voltada para a construção de presídios – em alguns casos sua administração –, para a fabricação de equipamentos de segurança, para recrutamento, seleção e treinamento de agentes de segurança privados, bem como para a produção de equipamentos de segurança pessoais.
Posteriormente, em decorrência das políticas neoliberais adotadas pelos Estados, os proprietários de tais indústrias perceberam um novo e próspero filão, cuja matéria-prima parece ser inesgotável e com taxas de lucro certamente garantido pelo próprio Estado. No caso norte americano, com a política de encarceramento das massas desprovidas de assistência, a assustadora estimativa é a de que: “no ritmo em que a América aprisiona, ela teria que abrir o equivalente a uma penitenciária de mil lugares a cada seis dias, e nenhum governo tem nem os meios financeiros nem a capacidade administrativa de fazê-lo” (WACQUANT, 2003, p. 90).

Do passado libertário, revolucionário sobrou pouco e, por isso, ao sistema não preocupa mais o proletariado, mas sim o lumpemproletariado, ou miseráveis de toda sorte que engordam as prisões. Esse novo investimento mercantil é exaustivamente noticiado por Wacquant (2003, p. 90):

[...] o número de detentos mantidos nas prisões com fins lucrativos cresceu em um ritmo frenético: de 3.100 em 1987 saltou para 15.300 três anos mais tarde, ultrapassando 85 mil em 1996. Segundo as projeções da Private Corrections Project da Universidade da Flórida, em Gainesville, esta cifra deverá duplicar de novo a cada dois anos para elevar-se a 276 mil postos em 2001. Dos 5% de hoje, a parte do setor comercial poderia ultrapassar um quarto da população carcerária dos Estados Unidos antes de dez anos. Inimaginável, há apenas quinze anos, a prisão privada é hoje uma realidade incontornável da paisagem penal americana. Melhor, uma “indústria” em pleno boom, destinada a um futuro radioso, o que faz dela a queridinha da Bolsa.
Da indústria automobilística, o grande charme da indústria americana (aliás exportada para toda a América Latina: por isso tantas estradas e tão poucas ferrovias), à indústria do crime, sem dúvida, trata-se de um grande passo no caminho do “processo civilizatório”. Vale ressaltar, ainda uma vez, as palavras do referido autor no tocante à industrialização do cárcere na América:

Dezessete firmas, quinze americanas e duas britânicas, oferecem a gestão completa (full-scale management) de estabelecimentos de detenção. Sete dentre elas estão cotadas em bolsa, no mercado Nasdaq: Correction Corporation of América, Correctional Services Corporation, Securicor (sediada em Londres), Wackenhut, Avalon Community Services, Cornell Corrections e Correctional Sistems. Estas sete empresas controlam 82% dos efetivos do setor comercial e totalizam, sozinhas, um capital superior a 500 milhões de dólares. Com 52 estabelecimentos para uma capacidade de 42 mil internos (mais 18 mil postos em via de abertura em 16 prisões em construção) em 1996, a Correction Corporation of América detém 52% do mercado. Ela é seguida por Wackenhut, com 25% para 22 mil em 32 centros e depois por um punhado de empresas detendo cada uma entre 3% e 5% do setor (WACQUANT, 2003, p. 91).

Para coroar essa nova política de encarceramento da miséria, cujos lucros são visíveis na América e que se espalham como forte ideologia pelo resto do mundo, ainda lembra Wacquant (2003, p. 92) que, para uma segunda estratégia de redução dos custos neste setor, os detentos e seus familiares são obrigados a assumir parte das despesas com a prisão. Na China, a família do condenado à morte, é obrigada a pagar pelo projétil utilizado para matar o infeliz, parece-nos que a velha e conhecida vendetta continua em pleno vigor.

Wacquant ainda acentua que: “desde 1994, um número crescente de jurisdições ‘faturam’ a jornada de detenção de seus prisioneiros ou então impõem suplementos pagos para o acesso aos serviços da casa (enfermaria, ateliê, etc)”. A perspectiva é que diante da nova política, os Estados americanos ampliem sua ação nesse sentido, repassando parte do fardo financeiro com o cárcere “justamente para aqueles que são seu alvo”:

Assim os detentos da penitenciária de alta segurança de Fort Madison, no Iwoa, que apodrecem 23 horas por dia em um cubo de concreto de dois metros por três, têm que pagar um “aluguel” mensal de cinco dólares. Alem disso, desde de 1996, sempre no Iowa, um visita ao dentista da prisão custa três dólares. Estas somas nada têm de modestas em relação às derrisórias dos interessados: efetivamente os detentos que têm a chance de trabalhar no interior da penitenciária – nas cozinhas, nas lavanderias ou na manutenção – recebem “salários” que vão de 10 a 60 dólares por mês. E seus ganhos já são amputados por diversão retenções, a título de “restituição” às vitimas de seus malfeitos e de apoio alimentar a suas crianças, se eles tiverem filhos. Ademais, os produtos de higiene pessoal de que precisam têm que ser comprados na “cantina” do estabelecimento a preços proibitivos, assim como selos, papel, etc. Desessete detentos de Ford Madison apresentaram queixa contra administração penitenciaria e as ameaças de greve e de confrontos se precipitam. “Não se pode tirar leite de pedras”, suspira um dos detentos mobilizados contra estas medidas. “Os contribuintes querem ter o castigo e o encarceramento, mas não querem pagar a conta. Assim, talvez eles devessem pensar em penas substitutivas” (WACQUANT, p. 92-93).

O comércio do cárcere na América, chega a tal ponto que se mantêm contratos entre as penitenciárias e algumas firmas especializadas em cobranças de dívidas, a fim de se garantir que os condenados postos em liberdade condicional, realmente paguem pelos aluguéis atrasados, quando de suas saídas do presídio. Além do que, houve uma baixa nos investimentos relativos às atividades de reabilitação como, por exemplo, os programas de alfabetização. Para Wacquant (2003, p. 93): “Comprimir as despesas de ‘reabilitação’ fica ainda mais fácil de justificar, na medida em que a prisão não tem nenhuma outra ambição declarada senão ‘neutralizar’ seus internos e fazê-los expiar seu erro através do sofrimento”. Não pode haver exemplo melhor do que este para a “ideologia puritana”, para quem “o trabalho enobrece” — se bem que, caiu de moda um outro slogan: o de que o crime não compensa. Hoje, a criminalidade não só compensa, como também recompensa.

Esse novo e lucrativo mercado já é realidade no Brasil, haja vista a incapacidade do Poder público na contenção da violência criminal, tendo-se como principal resposta a utilização cada vez maior do cárcere como forma de controle social das camadas sociais desprivilegiadas.

No Brasil, já não se pode taxar de novidade a intensificação do uso do cárcere como forma privilegiada de controle social de uma determinada camada da população. Os espaços proibidos também já se fazem notar em toda sua pujança. O que surgiu de novo, por clara influência norte-americana, no âmbito do controle social punitivo, é tão-somente o fato da implementação, em terras tupiniquins, da incipiente, mas promissora, indústria do controle do crime. Já existem por aqui empresas privadas lucrando com o fornecimento de alimentação, serviços de saúde, trabalho e educação para os detentos, além da própria administração e manutenção dos presídios. Há toda uma política sendo desenvolvida, inclusive com o apoio da mídia, para expansão do gerenciamento das penitenciarias brasileiras (GUIMARÃES, 2007, p. 303).

A maximização do Estado Penal resulta no patrocínio de um “estado de terror” ou, no mínimo, de uma condição que se impõe por temor difuso, amedrontador.

“Estado de terror”

Este “estado de terror” universalizado nos remete à análise de Baratta (2002, p. 204-205), acerca de como a opinião pública reflete a criminalidade:

Na opinião pública, enfim, se realizam, mediante o efeito dos mas-media e a imagem da criminalidade que estes transmitem, processos de indução de alarme social que, em certos momentos de crise do sistema de poder, são diretamente manipulados pelas forças políticas interessadas, no curso das assim chamadas campanhas de “lei e ordem”, mas que, mesmo independentemente destas campanhas, limitadas no tempo, desenvolvem uma ação permanente para a conservação do sistema de poder, obscurecendo a consciência de classe e produzindo a falsa representação de solidariedade que unifica todos os cidadãos na luta contra um “inimigo comum”.

O Estado Penal é um tipo de Estado que se vangloria ou, talvez, só sobreviva em razão da “truculência”, que lhe parece notória, essencial. Como exemplo mais próximo e mais recente desta ação estatal penal podemos nos referir também à Colômbia, quando da negociação para a libertação de 45 reféns das FARC e que, exigiam em troca, a libertação de 500 guerrilheiros presos: que seja feita em “território desmilitarizado”, mas ao que o governo se recusa:

Parentes dos reféns acusam membros do governo e do exército de tentarem minar nas negociações. “De fato há suspeitas de que setores militares que são contrários a um acordo humanitário e a favor de uma solução de força para a questão da guerrilha procurem intensificar as ofensivas na selva quando as negociações parecem estar encontrando seu caminho, mas até agora nada disso foi provado”, diz o especialista em segurança Gustavo Duncan, autor de Senhores da Guerra (COSTAS, 04/09/2007).

Por mérito próprio, essa forma “pouco inteligente” ou mais truculenta de enfrentar a criminalidade também se vê no Brasil, a exemplo das declarações do Ministro da Defesa, Nelson Jobim, quanto a usar as forças armadas brasileiras, sediadas no Haiti, como forma eficaz de “repressão ao crime”:

O Ministro da Defesa, Nelson Jobim, reconheceu ontem que a atividade desenvolvida pelo Exército brasileiro no Haiti é típica de ‘manutenção da lei e da ordem’, ou seja, é uma operação de segurança pública. Ele afirmou que, em razão disso, pode patrocinar o estudo sobre o emprego da tropa em ação semelhante no Rio. Jobim ressalvou que, para isso, é preciso mudar a legislação brasileira (MONTEIRO, 04/09/2007).

No caso haitiano é um claro equívoco ou contradição evidente, querer substituir o Estado Providência, pelo Estado Penal, a fim de se combater a criminalidade que brota nas ruas, nas casas pobres, nos mercados sem comida, nos corpos sem alma que vagueiam distantes das metáforas jurídicas. Os dados são estarrecedores: 50% a 70% não têm emprego; 47% são analfabetos; só 10% das casas têm energia elétrica17.

Este problema ou relação notória entre crime e capitalismo é tão claro que, na Colômbia, o tráfico de drogas construiu toda uma classe social: uma classe social alicerçada no crime. Agora, os narcotraficantes querem ser reconhecidos como um seguimento político e econômico da Colômbia (requisitam o poder político, como a burguesia teria feito ao Antigo Regime). O narcotráfico foi responsável, em 2006, por parte significativa dos 6,8% do crescimento interno colombiano: “Essa elite que domina, das sombras, um largo espectro em investimentos em construção civil, turismo, produção de etanol de palma africana e minas de ouro, agora quer mostrar a sua cara” (MARCHI, 2007).

Diz-se que se a Colômbia vencer a guerrilha, o passo seguinte será superar uma tragédia social. Há no país 240 mil homens no Exército, 28 mil na Marinha, 12,5 mil na Aeronáutica e 130 mil na Polícia Nacional; e mais 800 mil pessoas que trabalham em segurança privada. A pergunta é: onde alocar tanta gente se a paz vier? Além do que, se sobrevier o final desta guerra civil que já perdura 40 anos, o país perderá US$ 700 milhões em ajuda militar oferecida pelos EUA, anualmente. E, entre outras questões, os possíveis desempregados da guerrilha são pessoas treinadas para lidar com armas e situações de guerra — e o que fazer com elas? Pode-se abrir outra guerra civil, no lugar desta: “Enfim, por tudo isso muitos acreditam que ao governo Uribe e às forças armadas interessam confinar a guerrilha à selva e à montanha, mas não eliminá-la, seja pela vitória militar, seja por uma eventualmente bem sucedida negociação” (MARCHI, 2007).

Diante disso, pode-se afirmar que o crime também é inteligência. Mas, por que o Estado Penal, não? Exemplo claro da inteligência utilizada para a criminalidade foi dado por um dos maiores líderes das FARC, Negro Acácio (Tomás Medina), que subiu rapidamente ao poder no tráfico por demonstrar grande manejo econômico, estratégico e logístico. Negro Acácio foi morto pelo exército colombiano no dia 03 de setembro de 2007:

“Esse golpe é sem dúvida o mais forte que já se desferiu contra a capacidade logística desse grupo terrorista”, disse o Ministro de Defesa colombiano, Francisco Santos. ‘Negro Acácio era quem controlava o negócio do tráfico, a compra de armas, explosivos e munições no leste do país e mantinha contato com as redes internacionais da droga’ [...] Pela importância dessa atividade na estrutura da organização, é pouco provável que as FARC não tivessem destacado uma ou duas pessoas para substituir Negro Acácio caso ele fosse morto” (COSTAS, 04/09/2007).

O crime é um negócio empresarial com a mesma lógica de uma empresa do capitalismo.

O Direito Penal reafirma o capital

Com a ascensão do capitalismo, logo após a derrocada do sistema feudal, surgiu concomitantemente a pena privativa de liberdade, desde então tida como a principal punição utilizada pelo Estado Moderno como forma de controle social. O cárcere, o phanóptico são os embriões do Estado Penal — vale dizer, um tipo de Estado assentado sobre o crime e seus congêneres financeiros e lucrativos.

À época, o capitalismo industrial criou um contexto desfavorável à nascente classe do proletariado, com desemprego, pobreza e miséria, o que produziu um grande contingente de pessoas errantes (dado o enorme êxodo rural), despojadas de sua dignidade, violentadas nos direitos básicos da existência humana.

Não havia adolescência, como a conhecemos hoje, e se viam regularmente crianças de cinco a dez anos em turnos estafantes nas indústrias e manufaturas, entre 12 e 16 horas de trabalho/dia.

Isto praticamente obrigou ou, ao menos, propiciou a condução das massas empobrecidas a buscarem na vida marginal, na prática de condutas ilícitas, um refúgio e “formas alternativas de sobrevivência”: os delitos contra a propriedade privada cresceram consideravelmente diante do agravamento das péssimas condições de sobrevivência da classe trabalhadora.

Diante das novas formas de acumulação do capital, o roubo tornou-se a primeira e maior ilegalidade cometida pelas classes populares – mas, a ironia é que isso se justificava pelo “direito de sobrevivência”. Por outro lado, à burguesia ascendente reservou-se a chamada “ilegalidade dos direitos” ou, simplesmente, a possibilidade de fazer, escamotear, burlar a legislação em favor de seus próprios interesses: a exemplo do êxodo rural forçado, do endividamento insustentável do camponês.

Uma clara ilegalidade econômica tolerada, aceita e suportada pelo Estado, ao contrário da maioria ameaçada pelo “crime de vadiagem”: não é à toa que se criaram “casas de correção” e/ou “casas de trabalho” para os “pobres vadios”.

No Brasil, nos longos séculos da escravidão e após, já em tempos de “República Livre”, a coisa não foi diferente, e isto se confirma facilmente pela revisão da história social e pelos dados da segurança pública. Mas, em oposição, quantas punições ocorreram no Brasil, em virtude dos crimes de colarinho branco? O Supremo Tribunal Federal (STF), nos últimos 40 anos, iniciou 137 processos criminais contra deputados, senadores, ministros de Estado e presidente da República, dos quais nenhuma condenação resultou, até hoje. Já no Superior Tribunal de Justiça (STJ), entre 1988 e 2007, tiveram iniciou 130 processos contra autoridades com foro privilegiado, dos quais 6 foram julgados e não houve nenhuma condenação. Ainda, 483 processos contra autoridades chegaram ao STJ desde 1989, dos quais 16 foram julgados, sendo que 11 resultaram em absolvição e 5 em condenação18. O que demonstra a teia seletiva do Direito, especialmente do Direito Penal, uma realidade muito mais do que presumida, pois o povo já a diz consolidada.

Será mera semelhança, ou a história avança e se repete num grau mais avançado, (veja-se os grandes golpes no sistema financeiro e tributário), e assim confirmando-se ainda mais a tendência do sistema capitalista levar à extorsão dos direitos essenciais à vida humana, como por exemplo, do direito à dignidade? Diante disso, o Direito Penal sempre exerceu um papel preponderante na manutenção do sistema vigente: aos pobres as grades, aos mais abastados a tolerância e a parcimônia. A teoria tem demonstrado, e a prática confirma, uma aliança cada dia mais estreita (nada sutil) entre Capitalismo e Direito Penal. Assim, é preciso denunciar essa tendência em equiparar pobreza e criminalidade, como se esta fosse conseqüência exclusiva daquela.

O que há é uma seletividade do sistema ligada à desigual distribuição da própria criminalidade: os criminosos do colarinho branco, não são julgados e tampouco são presos. Portanto, não é difícil ver que o Direito Penal tende a privilegiar os interesses das classes mais abastadas, das classes dominantes, e a imunizar do processo de criminalização comportamentos que causam seríssimos danos à sociedade, mas que são típicos de indivíduos pertencentes ao sistema econômico, e ligados funcionalmente à existência da acumulação capitalista. Não é difícil constatar essa realidade, basta uma “olhadinha”, uma breve “espiada” na mídia televisiva, nos noticiários e nos jornais. Em contrapartida, nos últimos séculos, os dardos do Direito Penal têm sido apontados e atirados, principalmente, contra formas de desvio típicas das classes trabalhadoras.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De tudo o que pudemos refletir até aqui fica claro que, o sistema penal da forma como é concebido, tão só legitima ainda mais a força do poder do Estado burguês/capitalista, quando reforça e mantém as diferenças sociais existentes.

O sistema penal – e aqui incluímos tanto as normas penais, quanto as políticas criminais ora adotadas – reflete a seletividade com que trata suas vítimas: elas são recrutadas nos setores menos favorecidos da sociedade, nas classes subalternas, no proletariado, dentre os miseráveis ou no conjunto das “classes dominadas” (sub-proletariado).

A constatação dessa realidade pode ser vista nos cárceres do Brasil, ou nos cárceres de qualquer outro lugar: criminalizados e penalizados são os representantes dos setores menos afortunados ou mais injustiçados da sociedade. Este “nexo e sentido social” caracterizaria a opção dos Estados pelo recrudescimento do jus puniendi, ao ver-se prevalecer o fortalecimento do Estado Penal em detrimento das políticas públicas voltadas às necessidades básicas da população.

Esta seletividade representa certamente a aparente face controladora do Direito Penal, que permite garantir às classes dominantes/abastadas, a manutenção da suposta ordem social nos patamares em que se encontram. Em outras palavras, o sistema penal, com todo o seu aparato, tem uma característica extremamente funcional, cumpre a sua finalidade de ser o protetor dos bens e das pessoas de maiores posses, das classes econômicas mais favorecidas, da própria burguesia capitalista. Portanto, desse ponto de vista, o bem jurídico protegido não é a vida e a dignidade humana, mas sim a propriedade e a liberdade de comércio que daí decorre.

Desse modo, tanto as políticas criminais existentes, quanto o próprio Direito Penal pressuposto, com suas medidas repressivas, atuam nas conseqüências e não nas causas dos problemas que ocasionam a criminalidade. Essa é uma característica predominante do Estado Penal: a idéia é assegurar que o crime, a vida criminosa é apenas e tão somente uma escolha pessoal do agente, isenta de qualquer valoração sócio-política ou econômica.

No auge do Estado Penal a privatização e/ou terceirização dos presídios demonstra o quanto o crime parece ser economicamente viável, haja vista que as empresas privadas que atuam na área do controle do delito vêem crescer, cada vez mais, o seu faturamento. Exemplo disso é o fato de que nos Estados Unidos da América elas têm cotação em bolsa19.

A idéia de contenção de despesas com a criminalidade — especificamente no que diz respeito às prisões adotadas pelos Estados, e que permitem a privatização das penitenciárias e/ou a terceirização dos serviços no cárcere — representa a opção governamental de que o Direito Penal no Estado Capitalista deve suspender a sua aplicação mínima, para que o “máximo lucro” seja obtido pelos que vivem das ações criminosas de forma institucional.

Por fim, podemos dizer que desde a ascensão do modo de produção capitalista até aqui, o Direito, principalmente o Direito Penal, atua com uma seletividade extremamente visível. O que acarreta a estigmatização de alguns setores da sociedade: os miseráveis e o proletariado.

REFERÊNCIAS

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Estado Penal

Até recentemente, o envolvimento de agentes e aparelhos do Estado com o crime organizado era chamado, popularmente, de “Estado Paralelo”. Sem entrar nas discussões semânticas, bons exemplos desse “estado da política oficial” são o Estado Brasileiro e o Estado italiano. Antes, ocupado pela “Cosa Nostra” (combatida pelo lendário juiz Falcone, assassinado no curso da “Operação Mãos Limpas”), hoje, o Estado italiano se vê invadido pela máfia “Ndrangheta”, da região da Calábria. Nos anos 80 e 90, os mafiosos, associados a oito ex-funcionários da agência estatal de pesquisa energética italiana (Enea), teriam contrabandeado 500 tambores de lixo radioativo para a Somália.

O lixo altamente tóxico teria origem na própria Itália, mas também na Suíça, França, Alemanha e EUA. Um informante (mafioso arrependido) disse que, na época, um diretor da empresa pagou ao clã para que se livrasse do lixo: 100 barris ainda estariam enterrados na região de Basilicata, no sul: uma cidade protegida pela UNESCO e famosa por suas casas antigas escavadas nas rochas.

De certo modo, como resposta a isso, está em andamento acelerado a ideologia de “Estado Penal”, em que, ao mesmo tempo, há privatização dos serviços de segurança (nos EUA, há forte reação popular para uma “reestatização do Judiciário”), e um uso/abusivo dos meios de coerção. Como usa da “força física” praticamente sem controle, o Estado Penal se vê às voltas com acusações de ser um tipo estatal de exceção e “agindo criminalmente”: o policial que mata sem justificativa (legítima), foge ao Estado de Direito.

Por ação da ONU (Organização das Nações Unidas) foi redigido um relatório sobre as prisões no Brasil. A conclusão geral é de que há “tortura sistemática” e, por isso, o nosso governo federal tenta “censurar” a divulgação dos dados conclusos.

O relator, um australiano de nome Philip Alston, nas alegações iniciais, diz que: “O povo brasileiro não lutou contra 20 anos de ditadura nem adotou uma Constituição que restaurou o respeito aos direitos humanos apenas para que o Brasil ficasse livre para que policiais pudessem matar em nome da segurança” (Chade, 15/11/2007). É de se lembrar que de cada seis prisões efetuadas pelo BOPE, no Rio, apenas uma não acaba com a vida.

Em seguida, o relator insinua que nossa polícia age pior do que no “Estado de Exceção”, mesmo porque na “exceção” a força física é regulada por lei. O Estado Penal estaria além do Estado de Exceção, porque usaria da coerção sem o menor pudor legal.

Mas, há um ponto em comum entre o Estado Penal e o clássico Estado de Exceção (o melhor exemplo é o nazismo, em que perdurou um Estado de Sítio por 12 anos), que é o uso policial para fins políticos, como frisou o relator: “Tive de concluir que a operação foi conduzida por razões políticas, para mostrar que o governo é duro com o crime. Na realidade, no Alemão deveria ter um programa social e comunitário” (Chade, 15/11/2007). Depois de 1964, vimos como “casos de política viram casos de polícia”.

Infelizmente, as ações no Rio são mero exemplo do que ocorre no país todo. Em São Paulo, em outro exemplo: a “PM mata um por dia em São Paulo”. O grupo formado pela Rota, Tropa de Choque e Cavalaria foi responsável por 15% dos homicídios. Em contrapartida, até agosto, morreram 20 PMs em ação, mas só um policial era desse grupo de “enfrentamento direto ao crime”. Isto talvez esclareça porque a cidade de São Paulo é responsável por 1% de todas as mortes do mundo.

As recomendações finais do “estudo” da ONU indicam: melhoria no salário dos policiais; investigação profunda das mortes causadas por policiais que alegam enfrentamento das vítimas; recursos e independência à “polícia técnica”; dar segurança às testemunhas de execuções; melhorar as relações entre corregedorias e chefias das polícias; assegurar a participação do Ministério Público nas averiguações de mortes de civis por policiais; “requalificar” juízes de execuções penais, para melhor fiscalizar os presídios; garantir a segurança e os direitos dos presos.

O relator poderia ter destacado os projetos de “ressocialização” que estão implantados, mas não o fez porque entendeu que “os presídios são escolas do crime”. Aqui dizemos universidade – quando deveríamos ter escolas para a vida social, que gerassem a “expectativa do direito” e não a “certeza da impunidade, do crime e do medo”. O relator poderia ter dito, mas nós diremos: só com educação podemos sair desse Estado Penal, para vislumbrar algum Estado de Direito.

Vinício Carrilho Martinez: vicama@uol.com.br

CHADE, Jamil. SP registra 1% dos homicídios do mundo. Jornal O Estado de S. Paulo. Caderno C, p. 4, 1º out. 2007.

______ Tortura: ONU tenta evitar censura do Brasil. Jornal O Estado de S. Paulo. Caderno C, p. 10, 15 nov. 2007.

Notas de rodapé

1 Curiosamente, os chamados crimes do colarinho branco ainda são pouco afetados por esta postura de “tolerância zero”.

2 A ponta desse iceberg é exatamente a privatização dos presídios e ou a terceirização dos serviços como veremos no decorrer do texto.

3 Só as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), estima-se, geram um lucro de 200 milhões de dólares com o narcotráfico (cf. jornal O Estado de São Paulo, folha A 14 Internacional, de 04 de setembro de 2007).

4 Cf. revista Veja, edição 1965 – ano 39 – nº 28, de 19 de julho de 2006, p. 56-57.

5 “Eu não sou contra o isolamento, sou contar o RDD tal como posto. Primeiro, ninguém sabe de fato como está funcionando. Também acho que há necessidade de isolamento. Mas que tipo de isolamento? Ele não pode transformar o preso num débil mental, nem o Estado pode estar fabricando malucos. [...] Tal como posto na lei ele vai deixar qualquer um louco [...] Acho isso contraproducente, o Estado está aplicando uma pena ilegal, que é transformar o cidadão num louco” disse Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, advogado criminal e ex-secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo (1990-1991) (Jornal O Estado de são Paulo, caderno Aliás Debates, 08/08/2006)

6 Veja-se mais em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8501.

7 Como seria para um morador do Morro do Alemão tentar fazer seguro de vida para sua família?

8 Ao agrupamento pesa a acusação de terem exterminado mais de 12 mil pessoas, de 1970 a 1992, e destes 680 eram crianças entre 7 e 11 anos, executadas com o típico “tiro na nuca”.

9 Veja-se: http://pt.wikipedia.org/wiki/Pol%C3%ADcia_Militar_de_S%C3%A3o_Paulo.
10 O deputado federal Rubens Paiva foi morto em 20 de janeiro de 1971, provavelmente após ser cruelmente torturado.
11 Kafka nos falava de gravar a pena no corpo e na alma, como tatuagens sem remoção, como temos em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5123.
12 Nesse contexto é oportuno frisar as observações de Guimarães (2007, p. 50): “Novas variações da prevenção geral negativa têm surgido, valendo destacar as penas desonrosas de origem norte americana [...] o condenado é obrigado a comparecer a um programa de televisão e confessar seu delito ou, numa segunda modalidade, a utilizar braceletes ou adesivos em carro ou cartazes na porta da residência explicitando a condenação, ou ainda, levar em um cartaz ou camisa, durante um certo período e em um determinado local indicado pelo juiz. Frases em que se leia a condenação de que tenha sido objeto, e, por fim, pedir desculpas públicas através de algum veículo da comunicação ou mesmo com megafone”.
13 Termo utilizado pelo Ministro da Justiça Nelson Jobim, comentando a possibilidade, a partir da experiência no Haiti, da utilização das tropas militares em missão semelhante no Rio de Janeiro. (cf em jornal O Estado de São Paulo, caderno Cidades, p. C, 05 de setembro de 2007.
14 Informações colhidas no Jornal O Estado de São Paulo, caderno Cidades/Metrópoles, p. C6, 18 de março de 2007.
15 Ibidem.
16 Mais informações no jornal O Estado de São Paulo, caderno Internacional, p. A21, 15 de setembro de 2007.
17 Dados colhidos no Jornal o Estado de São Paulo, caderno Cidades/Metrópole, de 04/ de setembro de 2007, p. C4.
18 Dados obtidos no endereço eletrônico: http://admin.opovo.com.br/servelet/opovo?event=ctdi noticiaForPrint&NOT cod=7270, acessado em 16/09/2007.
19 Mais informações em Loïc Wacquant, Revan, 2003.

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