domingo, 4 de junho de 2017

Ação Popular  NAGIB SLAIBI FILHO-Desembargador do TJ/RJ. Professor – EMERJ e UNIVERSO

1. CONCEITO

O art. 5º, inciso LXXIII, prevê a ação popular, nos termos seguintes: Qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência.
José Afonso da Silva, em obra clássica,1 deu conceito que então era próprio para a ordem jurídica vigente e que agora nos permitimos adaptar, em face da nova redação constitucional sobre a ação popular:
A ação popular é instituto processual civil, outorgado a qualquer cidadão como garantia político-constitucional, para a defesa do interesse da coletividade, mediante a provocação do controle jurisdicional corretivo da ilegalidade de atos lesivos ao patrimônio público, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural.

2. HISTÓRICO

Em Roma, eram conhecidas as ações populares, isto é, ações em que havia legitimação de qualquer pessoa para requerê-las visando à proteção de bens comuns, que transcendiam às do interesse individual.
Já em Roma existiam valores transindividuais e, entre tais valores, temos a liberdade, como nos conta Ihering:[1]
1 José Afonso da Silva, “Da ação popular constitucional”, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1968.
A maneira de ver dos romanos... pode exprimir-se, com exatidão, dizendo que consideravam a liberdade, não como uma coisa subjetiva, um bem, uma qualidade da pessoa, mas como uma propriedade objetiva indestrutível, independente da vontade pessoal, pertencente às instituições jurídicas.
Daí se entende porque existiam ações populares com cominação de penas pecuniárias, entre as quais o interdictum de homine libero exhibendo (ancestral do nosso habeas corpus), a ação para evitar que cães, lobos e outros animais fossem levados a lugares públicos, a ação de effusis et deiectis
(da qual ainda hoje há o disposto no art. 1.529 do Código Civil de 1916 e art.
938 do Código Civil de 2002), a ação de positio et suspensis (que deu origem ao tipo do art. 37 da Lei de Contravenções Penais), a ação do sepulcro violado (interesse hoje tutelado pelo tipo do art. 210 do Código Penal, que é delito de ação penal pública incondicionada) etc.
No Brasil, a Constituição do Império dispunha:
Art. 156 - Todos os Juízes de Direito, e os Oficiais de Justiça são responsáveis pelos abusos de poder, e prevaricações, que cometerem no exercício de seus empregos; esta responsabilidade se fará efetiva por lei regulamentar.
Art. 157 - Por suborno, peita, peculato e concussão haverá contra eles ação popular, que poderá ser intentada dentro de ano e dia pelo próprio queixoso, ou por qualquer do povo, guardada a ordem do processo estabelecida em lei.
O Decreto nº 2.691, de 1860, previa uma ação popular para coibir a emissão ou conservação de títulos ilegais pelos bancos, o que parece que já era também, à época, um problema frequente...
Com a edição do Código Civil, inadmitiu-se a ação popular:
Art. 76 - Para propor, ou contestar uma ação, é necessário ter legítimo interesse econômico ou moral. Parágrafo único. O interesse moral só autoriza a ação quando toque diretamente ao autor, ou à sua família.
Foi a Constituição de 1934 que instituiu a ação popular, na forma em que agora a conhecemos:
Art. 113. A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: ... 38) Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a declaração de nulidade ou anulação de atos lesivos do patrimônio da União, dos Estados ou dos Municípios.
A Constituição de 1937 foi omissa, sujeitando o instituto às mazelas da instabilidade legislativa ordinária.
As Constituições de 1946 e 1967, inclusive com a redação que lhe deu a Emenda Constitucional nº 1/69, mantiveram a ação, dispondo a Constituição revogada, em seu art. 153:
§ 31. Qualquer cidadão será parte legítima para propor ação popular que vise a anular atos lesivos ao patrimônio de entidades públicas.
A Lei nº 4.717, de 20 de junho de 1965, oriunda de anteprojeto de Seabra Fagundes e Bilac Pinto, regulamenta o procedimento da ação popular.

3. OBJETO

Entenda-se como ato cuja lesividade ao patrimônio público poderia dar ensejo à ação popular, não só o ato administrativo, cujos elementos são conceituados no art. 2º da Lei nº 4.717/65, mas também todo e qualquer ato específico, individual e concreto, da Administração Pública, ainda que não seja manifestação de vontade, e sim, meramente, ato material.
Os atos materiais estão abrangidos no conceito constitucional, mesmo porque a própria Lei nº 4.717/65, em seu art. 4º, os aponta como consequências de atos jurídicos, como, por exemplo, a admissão de pessoa, a emissão de títulos e moedas etc.
Até a nova Constituição, restringia-se o objeto imediato da ação popular constitucional à anulação de atos lesivos ao patrimônio público. Agora, tal objeto estende-se também à proteção de outros interesses, merecendo, cada um, uma análise específica.
3.1. Anulação de ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe
Pretende-se, aí, não só a anulação do ato lesivo, como também a condenação dos responsáveis ao ressarcimento do dano, como se vê na Lei nº  4.717/65:
Art. 11. A sentença que, julgando procedente a ação popular, decretar a invalidade do ato impugnado, condenará ao pagamento de perdas e danos os responsáveis pela sua prática e os beneficiários dele, ressalvada a ação regressiva contra os funcionários causadores de dano, quando incorrerem em culpa. Art. 12. A sentença incluirá sempre, na condenação dos réus, o pagamento, ao autor, das custas e demais despesas, judiciais e extrajudiciais, diretamente relacionadas com a ação e comprovadas, bem como o dos honorários de advogado.
Em decorrência, na ação popular admitem-se as pretensões, embora a segunda seja acessória da primeira: 1) a desconstituição do ato estatal lesivo e ilegal e 2) a condenação dos responsáveis e beneficiários à indenização.
No regime constitucional anterior exigia-se, como pressupostos para a ação popular anulatória de atos lesivos ao patrimônio público:
a) a lesividade ao patrimônio público e b) a ilegalidade do ato. Veja-se a lição de Pontes de Miranda:
Pressupostos Objetivos da Ação Popular. Na interpretação da regra jurídica constitucional, entende-se: ou a) que foi criada invalidade dos atos estatais por lesividade ao patrimônio da União, ou dos Estados-membros, ou dos Municípios, ou das entidades autárquicas, ou das sociedades de economia mista, ou b) que apenas se dilatou a legitimação ativa, para as ações de nulidade ou de anulação. Se a), bastaria que o ato fosse lesivo, para que nulo fosse, ou anulável. Se b), é de mister que haja a nulidade ou anulação, segundo os princípios, para que se possa propor a ação popular.[2]
No novo regime constitucional, parece que só há que se exigir o requisito da lesividade ao patrimônio, como a seguir se verá.
A uma, que agora é cabível ação popular para anular ato lesivo à moralidade pública, sabendo que, nem sempre, Moral confunde-se com a Lei e tanto é assim que o art. 37 da Constituição coloca, como princípios básicos da Administração Pública, tanto a legalidade como a moralidade.
A duas, que existe distinção, ao menos em nível constitucional, entre irregularidade e ilegalidade, como se vê nos arts. 71, II, e 74,  §§ 1º e 2º.
Por último, prevê o art. 37, § 4º, que os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento do erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.4
O interesse tutelado abrange não só o patrimônio público (ver a extensão do conceito no art. 71, II, da Constituição e no art. 1º, § 1º, da Lei nº 4.717/65), como também qualquer entidade privada que tenha recebido, de forma, qualquer ingresso patrimonial público; neste aspecto, vejam-se as disposições iniciais da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, que regulamenta o disposto no art. 37, § 4º, da Constituição.[3]
Embora se admitam remédios constitucionais em face de decisões jurisdicionais (como o habeas corpus e o mandado de segurança), a Suprema Corte entende que descabe a ação popular para impugnar decisão jurisdicional, como se vê no seguinte precedente:
Classe/Origem AGRPET-2018/SP.
AG. REG. EM PETIÇÃO
Relator(a) Min. CELSO DE MELLO Publicação
4  A Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos e aos beneficiários nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta e fundacional.
DJ DATA-16-02-01 PP-00092 EMENT VOL-02019-01 PP-00033
Julgamento
22/08/2000 – Segunda Turma
Ementa
AÇÃO POPULAR PROMOVIDA CONTRA DECISÃO EMANADA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - AUSÊNCIA DE COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FE-
DERAL - INADMISSIBILIDADE DA AÇÃO POPULAR CONTRA ATO DE CONTEÚDO JURISDICIONAL - AÇÃO POPULAR DE QUE NÃO SE CONHECE - AGRAVO IMPROVIDO.
O PROCESSO E O JULGAMENTO DE AÇÕES POPULARES CONSTITUCIONAIS (CF, ART. 5º, LXXIII) NÃO SE INCLUEM NA ESFERA DE COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.
-                  O Supremo Tribunal Federal - por ausência de previsão constitucional - não dispõe de competência originária para processar e julgar ação popular promovida contra qualquer órgão ou autoridade da República, mesmo que o ato cuja invalidação se pleiteie tenha emanado do Presidente da República, das Mesas da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, ou, ainda, de qualquer dos Tribunais Superiores da União. Jurisprudência. Doutrina.
NÃO CABE AÇÃO POPULAR CONTRA ATOS DE CONTEÚDO JURISDICIONAL.
-                  Revela-se inadmissível o ajuizamento de ação popular em quese postule a desconstituição de ato de conteúdo jurisdicional (AO 672-DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO).
-                  Os atos de conteúdo jurisdicional - precisamente por não serevestirem de caráter administrativo - estão excluídos do âmbito de incidência da ação popular, notadamente porque se acham sujeitos a um sistema específico de impugnação, quer por via recursal, quer mediante utilização de ação rescisória. Doutrina. Jurisprudência.
Tratando-se de ato de índole jurisdicional, cumpre considerar que este, ou ainda não se tornou definitivo - podendo, em tal situação, ser contestado mediante utilização dos recursos previstos na legislação processual -, ou, então, já transitou em julgado, hipótese em que, havendo decisão sobre o mérito da causa, expor-se-á à possibilidade de rescisão (CPC, art. 485).
Votação:   Unânime.
Resultado: Desprovido.
Veja : PET-129, PET-296, PET-352, PET-487, PET-626, AO-672, PET-682, PET-713, PET-1546, PET-1641,AGRPET-1738, RTJ-171/ 101, RTJ-43/129, RTJ-44/563, RTJ-50/72, RTJ-53/776, RTJ-121/17, RTJ-141/344
Justamente por esse entendimento, aliás pertinente, da Suprema Corte, deve o juiz, em ações fazendárias, zelar no sentido de evitar a homologação de transações e acordos que digam respeito a temas de interesse público, assim preservando a inteira competência administrativa dos Tribunais de Contas para que estes cumpram o seu papel constitucional descrito no art. 70 da Lei Maior.
Ainda que se veja este tema – a função jurisdicional e a despesa pública – na perspectiva da Lei de Responsabilidade, suas disposições, ainda que referentes ao Poder Judiciário, incidem quanto a este na perspectiva da administração que lhe assegura o art. 99 da Lei Maior e não afasta a interpretação da Suprema Corte, assim não havendo como se imputar a magistrado, no exercício de sua função jurisdicional e no julgamento da causa, a pecha de estar contribuindo para despesas não autorizadas por lei.[4]
Nos termos do art. 23, I, compete à União, Estados, Distrito Federal e Municípios a conservação do patrimônio público, dizendo o art. 70, parágrafo único, que o dever de prestar contas abrange qualquer pessoa física ou entidade pública que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiro, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária.
Hely Lopes Meirelles dá a extensão do conceito de lesão:7
Embora os casos mais freqüentes de lesão se refiram ao dano pecuniário, a lesividade a que alude o texto constitucional, tanto abrange o patrimônio material, quanto o moral, o estético, o espiritual, o histórico. Na verdade, tanto é lesiva ao patrimônio público a alienação de um imóvel por preço vil, realizada por favoritismo, quanto a destruição de um recanto ou de objetos sem valor econômico, mas de alto valor histórico, cultural, ecológico ou artístico para a coletividade local. Por igual, tanto lesa o patrimônio público o ato de uma autoridade que abre mão de um privilégio do Estado, ou deixa perecer um direito por incúria administrativa, como o daquele que, sem vantagem para a administração, contrai empréstimos ilegais e onerosos para a Fazenda Pública.
3.2. Anulação de ato lesivo à moralidade administrativa
Não basta que a atuação do Estado seja compatível com a mera ordem legal, emanada dos atos legislativos: é necessário que a gestão da res publica seja feita de forma a atender aos padrões de conduta que a comunidade, em determinado momento histórico, considere relevantes para a própria existência social.
A Constituição de 1988 não confunde moralidade e legalidade, como se vê nos arts. 37, caput, 14, § 10, 15, V, 37, § 4º , 55, § 1º, 85, V e 221, IV. Hely dá a distinção feita por Welter:[5]
... a moralidade administrativa não se confunde com a moralidade comum: ela é composta por regras de boa administração, ou seja: pelo conjunto das regras finais e disciplinares suscitadas, não só pela distinção entre o Bem e o Mal, mas também pela idéia geral de administração e pela idéia de função administrativa.
7  Hely Lopes Meirelles, Mandado de segurança, ação popular e ação civil pública, 11ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1987, p. 85.
Aliás, o mesmo administrativista nacional citou até mesmo acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo, encontrado na Revista de Direito Administrativo, nº 89, p. 134, em que se proclamou:
O controle jurisdicional se restringe ao exame da legalidade do ato administrativo; mas, por legalidade ou legitimidade, se entende não só a conformação do ato com a lei, como também com a moral administrativa e com o interesse coletivo.
Nossos tribunais são, ainda, arredios na apreciação dos elementos subjetivos do ato administrativo e, não poucas vezes, preferem não examinar a questão proclamando que a mesma se insere no campo da discricionariedade administrativa e, assim, imune ao controle jurisdicional.
Com a Constituição de 1988, introduzindo o requisito de moralidade administrativa como essencial aos atos da Administração Pública, não terão os tribunais, em casos concretos que lhes forem submetidos, senão a alternativa de apreciar o elemento subjetivo, visando apurar se há boa administração da coisa pública, não só nos aspectos de adequação à ordem jurídica, mas também no que diz respeito aos fins e ao motivo da atuação do administrador.
Observe-se que a moralidade, aí, não é a do julgador, mas sim a dominante em determinada sociedade, em um momento histórico.
Os limites entre Direito e Moral nem sempre são evidentes:
Para uma melhor compreensão da distinção entre Direito e Moral, interessa ter presente que na racionalidade jurídica tem um lugar decisivo a tutela dos interesses, de resolução dos conflitos de interesses e de interesses juridicamente tutelados. De modo que apenas será juridicamente relevante aquela conduta que afete os interesses (ou bens) juridicamente tutelados, os lese ou ponha em perigo. Para que uma conduta seja juridicamente censurável deve afetar um dos interesses tutelados e afetá-lo numa medida socialmente relevante. Donde decorre que, mesmo quando o Direito tutela os sentimentos do povo e a “moral pública” (como freqüentemente acontece), estes valores éticos não são afinal protegidos por si mesmos, mas na medida em que a sua violação se converte numa perturbação prejudicial à sociedade como ordem de convivência. O que está em causa é mais o “dano social” que a defesa dos valores éticos por si mesmos. Por outro lado, uma excessiva tutela de normas éticas pelo Direito corre o risco de se converter numa tutela moral da Sociedade pelo Estado, numa “tutela” capaz de propiciar uma “pedagogização” da mesma sociedade e de promover a intolerância geral.[6]
3.3 - Anulação de ato lesivo ao meio ambiente
O texto da nova Constituição, em seu art. 225, no que se refere à proteção ao meio ambiente, declara que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e de preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
Como o meio ambiente é declarado bem de uso comum do povo, integra, necessariamente, o patrimônio público, em seu sentido mais abrangente, que ultrapassa o mero conceito de que o patrimônio público é o conjunto de bens estatais.
A ação popular, aqui, acaba por ter o mesmo objeto da ação pública civil (art. 1º, inciso I, da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985), com a só diferença que será intentada por cidadão, em defesa de interesse difuso e público, enquanto aquela é para a legitimação do Ministério Público e de entidades públicas e privadas que estejam constituídas há mais de ano e que tenham, entre suas finalidades institucionais, a proteção do meio ambiente.
3.4. Anulação de ato contra o patrimônio histórico e cultural
Aplica-se, também neste item, o comentário feito acima, inclusive quanto à integração do patrimônio histórico e cultural no conceito mais amplo de patrimônio público e no sentido de que, também, tal bem inclui-se naqueles defendidos através da ação pública civil (art. 1º, ‘a’, inciso III, da Lei nº 7.347/85).

4. LEGITIMADO ATIVO

Legitimado ativo para a ação popular constitucional é o cidadão, isto é, aquele que, nos termos da Lei nº  4.717/65, é detentor do status de cidadania, a qual se comprova com o título eleitoral ou com documento que a ele corresponda.
Cidadão, para os fins da legitimatio ad causam para a ação popular é o eleitor, isto é, aquele inscrito na Justiça Eleitoral e habilitado para o exercício do direito de votar, ainda que não tenha aptidão para ser votado ou eleito.
Assim, se o jovem de 16 a 18 anos de idade está inscrito como eleitor, tem legitimidade para ação popular, o que compreende, também o seu poder de constituir advogado através de mandato, ainda que não tenha ele plena capacidade civil. Há quem entenda que a capacidade de estar em juízo dependerá da capacidade civil, o que conduz à situação absurda de o jovem ser capaz de votar e escolher os seus representantes e não tenha capacidade de impugnar os atos que lesionem os bens protegidos pela ação popular.
É aplicável a Súmula 365 do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que a pessoa jurídica não tem legitimidade para propor a ação popular, nem o terá órgão público, inclusive o Ministério Público, salvo a este o dever de atuar em substituição ao autor contumaz, como se prevê na lei específica da ação popular.
A legitimidade constitucional para a ação popular é do cidadão, descabendo ao juiz cassar tal legitimidade sob o argumento de que o interesse a ser defendido pelo cidadão não se mostra com olímpica pureza de propósitos.
Ainda assim, a causa de pedir não pode ser percebida simplesmente pelo seu aspecto formal:
A teoria da razão suficiente ensina-nos que nada no universo acontece por si mesmo (causa sui)... Sem razão suficiente, qualquer manifestação de vontade é tão inconcebível como um movimento da matéria. Entender a liberdade da vontade no sentido de que a vontade possa manifestar-se espontaneamente, sem um motivo determinante, é acreditar que com efeito o barão de Munchaüsen se tirou de um atoleiro puxando pelo próprio topete.[7]
Comentando sobre a impossibilidade do interesse ser imparcial, o signatário já  teve a oportunidade de observar:[8]
Não poucos julgadores deixam escapar, ao decidirem ações em que o cidadão ou a entidade privada atua no interesse público, que estão frustrados pelo que entendem ser a parcialidade do interesse – por exemplo, é muito comum que em ação popular seja o autor o desafeto político do agente público que teria cometido o ato lesivo. Ora, o interesse é sempre parcial pois parte é aquele que tem participação no interesse. Não se pode confundir a motivação com o interesse embora toda ação humana tenha um motivo... Não há tal imparcialidade pretendida no agir individual: “A satisfação que espera aquele que quer é o fim de seu querer. Nunca a ação em si mesma é um fim, mas simplesmente um meio de o atingir. Em verdade, aquele que bebe quer beber, mas só quer beber para alcançar o resultado que desse fato espera. Por outras palavras: em cada ação nós queremos, não essa mesma ação, mas somente o efeito que dela nos resulta. Isto equivale a dizer que em toda e qualquer ação nós apenas miramos a alcançar o fim dela”(Rudolf von Ihering).

5. LEGITIMADO PASSIVO

É perfeitamente aplicável o disposto no art. 6º da Lei nº 4.717/65: A ação será proposta contra as pessoas públicas ou privadas e as entidades referidas no art. 1º, contra as autoridades, funcionários ou administradores que houverem autorizado, aprovado, ratificado ou praticado o ato impugnado, ou que, por omissão, tiverem dado oportunidade à lesão, e contra os beneficiários diretos do mesmo. § 1º Se não houver beneficiário direto do ato lesivo, ou se for ele indeterminado ou desconhecido, a ação será proposta somente contra as outras pessoas indicadas neste artigo.
§ 2º No caso de que trata o inciso II, ítem “b”, do art. 4º , quando o valor real do bem for inferior ao da avaliação, citar-se-ão como réus, além das pessoas públicas ou privadas e entidades referidas no art. 1º, apenas os responsáveis pela avaliação inexata e os beneficiários da mesma.
§ 3º A pessoa jurídica de direito público ou de direito privado, cujo ato seja objeto de impugnação, poderá abster-se de contestar o pedido, ou poderá atuar ao lado do autor, desde que isso se afigure útil ao interesse público, a juízo do respectivo representante legal ou dirigente.
§ 4º O Ministério Público acompanhará a ação, cabendo-lhe apressar a produção da prova e promover a responsabilidade civil ou criminal dos que nela incidirem, sendo-lhe vedado, em qualquer hipótese, assumir a defesa do ato impugnado ou dos seus autores.
§ 5º É facultado a qualquer cidadão habilitar-se como litisconsorte ou assistente do autor da ação popular.

6 . O PAPEL DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Pelo dispositivo acima transcrito, vê-se que cabe ao Ministério Público o papel de custos legis  na ação popular, em face do interesse em disputa.
Vale ressaltar que a parte final do § 4º do art. 6º da Lei nº 4.717/65 já está revogada pela Lei Orgânica do Ministério Público (Lei Complementar Federal nº 40/81) e, agora, pelo disposto no art. 127 da Constituição, que lhe assegura o papel constitucional de defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis, bem como a autonomia funcional.
Em face da Lei nº 4.717/65, em caso de contumácia autoral, e não havendo outro cidadão no pólo ativo, o Ministério Público assume papel de substituto do autor, ou mais especificamente, o de verdadeiro substituto processual.

7. PROCEDIMENTO

Para a ação popular, é aplicável o procedimento previsto na Lei nº 4.717/65, inclusive quanto aos efeitos da decisão judicial quando houver improcedência por insuficiência de prova.
O procedimento ou rito da ação popular qualifica-se como ordinário, a despeito dos diversos incidentes próprios, como, por exemplo, a substituição do autor contumaz por outro cidadão e, caso ninguém se apresente, o pólo ativo da ação passará a ser ocupado pelo Ministério Público.
Relevante no procedimento da ação popular é o julgamento secundum eventus litis, isto é, o juiz poderá julgar improcedente a demanda com a nota de insuficiência de provas, decisão que não terá, assim, trânsito em julgado material, a admitir que nova demanda possa ser ofertada com os mesmos pedidos e causa de pedir.

8. GRATUIDADE

A Constituição, no art. 5º, inciso LXXIII, expressamente exclui o autor do pagamento das custas judiciais e do ônus da sucumbência.
A isenção das custas judiciais abrange não só as custas propriamente ditas, mas também a taxa judiciária e demais despesas, inclusive perícias e oitiva de testemunhas. Não há como dar sentido estrito à expressão custas judiciais sob pena de se tornar, até mesmo, inócua e, assim, impossibilitar a demanda que, reafirme-se, visa à satisfação de interesse público ou coletivo e não de interesse privado, pelo que não pode o autor arcar com os ônus do ingresso em juízo.
Note-se que o inciso LXXVII do art. 5º diz que serão gratuitos, na forma da lei, os atos necessários ao exercício da cidadania e, entre os atos da cidadania, no sentido estrito, está, exatamente, o de fiscalizar a atuação do Poder Público.
Em face da nova redação do inciso LXXIII do art. 5º, tornar-se-á sem objeto a disposição do art. 12 da Lei nº 4.717/85, que manda que o juiz condene os réus a restituir ao autor da ação popular as despesas que adiantou.
Se o autor necessitar de advogado e não puder contratar um profissional, poderá exigir a prestação de serviço através de Defensor Público, nos termos dos arts. 5º,  LXXIV, e 134.[9]
Comprovada a má-fé autoral, com o ingresso da ação com animus emulativo, deverá o mesmo arcar com as despesas, nos termos do art. 20 do Código de Processo Civil.u




[1]  Rudolf Von Ihering, “O espírito do Direito Romano”, tradução por Rafael Benaion, Rio de Janeiro, Alba, 1943, v. I, p. 150.
[2]  Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, “Comentários à Constituição de 1967, com a EC nº 1/69”, São Paulo, Revista dos Tribunais, 6 tomos, 1974, 2ª edição, tomo V, p. 640.
[3] Art. 1° Os atos de improbidade praticados por qualquer agente público, servidor ou não, contra a administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, de Território, de empresa incorporada ao patrimônio público ou de entidade para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com mais de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita anual, serão punidos na forma desta lei. Parágrafo único. Estão também sujeitos às penalidades desta lei os atos de improbidade praticados contra o patrimônio de entidade que receba subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou creditício, de órgão público bem como daquelas para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com menos de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita anual, limitando-se, nestes casos, a sanção patrimonial à repercussão do ilícito sobre a contribuição dos cofres públicos. Art. 2° Reputa-se agente público, para os efeitos desta lei, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades mencionadas no artigo anterior. Art. 3° As disposições desta lei são aplicáveis, no que couber, àquele que, mesmo não sendo agente público, induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta.
[4]  Dispõe a Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, que estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal e dá outras providências: Art. 1º Esta Lei Complementar estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal, com amparo no Capítulo II do Título VI da Constituição.§ 1o A responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimentode metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições no que tange a renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição em Restos a Pagar. § 2º As disposições desta Lei Complementar obrigam a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. § 3º Nas referências: I - à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, estão compreendidos: a) o Poder Executivo, o Poder Legislativo, neste abrangidos os Tribunais de Contas, o Poder Judiciário e o Ministério Público; b) as respectivas administrações diretas, fundos, autarquias, fundações e empresas estatais dependentes; II - a Estados entende-se considerado o Distrito Federal; III - a Tribunais de Contas estão incluídos: Tribunal de Contas da União, Tribunal de Contas do Município.
[5]  Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, 7ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1979, p. 72.
[6]  J. Batista Machado, Introdução ao direito e ao discurso legitimador, 3ª reimpr., Coimbra, Livr. Almedina, 1989, p. 61.
[7]  Rudolf von Ihering, A evolução do Direito (Der Zweck im Recht), Salvador, 1953, p. 29.
[8] Nagib Slaibi Filho, Sentença cível - fundamentos e técnica, 3ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1995, pp. 19/20
[9] No Estado do Rio de Janeiro, que há décadas conta com excelente Defensoria Pública, muito se discutiu na década de 70 se poderia o Defensor Público atuar como defensor dativo do cidadão para a propositura da ação popular ou mesmo de interesses outros (como mandado de segurança) em face do próprio Estado do Rio de Janeiro e de seus agentes, pois muitos diziam que o ocupante do cargo de Defensor Público era funcionário do Estado e assim estaria proibido pela Lei da Ordem dos Advogados do Brasil de advogar contra o Poder Público... Vê-se, assim, que naquela época havia confusão entre os papéis do Defensor Público e do Advogado, o que, no regime da Constituição de 1988, não se pode mais vislumbrar.

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