quarta-feira, 23 de agosto de 2017

A DURAÇÃO RAZOÁVEL DO PROCESSO: EM BUSCA DA SUPERAÇÃO DA DOUTRINA DO “NÃO-PRAZO” – POR JACINTO NELSON DE MIRANDA COUTINHO E DANIEL R. SURDI DE AVELAR
Por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho e Daniel R. Surdi de Avelar – 2/06/2015
O caso concreto
O parecer de lavra do il. Procurador de Justiça, Dr. Luiz Carlos S. de Oliveira, abordou a questão da duração razoável do processo. No caso concreto, duas pessoas foram presas em flagrante (09/08/1987) e acusadas da prática de vários crimes de roubo circunstanciados. Os acusados foram interrogados[1] no dia 10/09/1987, sendo designada a data de 29/09/1987 para a oitiva das testemunhas indicadas na denúncia. Todavia, no dia 28/09/1987, foi aditada a denúncia para nela incluir um terceiro autor do crime noticiado – o qual foi citado por edital –, restando redesignada a data de 27/10/1987 para a oitiva das testemunhas arroladas na denúncia. Ocorre que em decorrência de problemas de saúde, o MM. Juiz de Direito passou a usufruir de licença médica e a aludida audiência foi novamente redesignada, agora para a data de 20/11/1987. Suscitando o excesso de prazo para o fim da instrução processual, a defesa dos acusados impetrou habeas corpus junto ao e. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Mediante o Parecer nº 5588 (ofertado ao HC nº 191/1987), o il. Procurador de Justiça, Dr. Luiz Carlos S. de Oliveira, tratou a questão da duração razoável do processo[2] e a demora (in)justificada para a conclusão da instrução processual, tema que ora é resgatado e analisado à luz do disposto no art. 5º, inciso LXXVIII, da Constituição da República.
Introdução
A passagem das chamadas sociedades arcaicas para as sociedades culturalmente evoluídas trouxe como característica a assunção pelo Estado do dever de administrar a justiça e restaurar o que se convencionou chamar de paz jurídica violada pela prática de um delito.
O Estado assume, então, o dever de atuar com eficácia e presteza (a maior possível) na apuração dos crimes, a fim de diminuir a sensação de impunidade e insegurança que assolava e assola a sociedade.
Contudo, ao tempo em que o Estado assume o dever de exercer a persecução penal, surge igualmente a necessidade da criação de barreiras contra a possibilidade de abuso desse poder[3], pois não é possível se pensar a administração da justiça sem um marco de garantias e sem a afirmação de direitos individuais preferíveis aos fins da própria aplicação da pena[4].
Os direitos e garantias individuais previstos em observância ao primado da dignidade da pessoa humana[5]devem ser visualizados a partir de um marco constitucional e aplicados por um processo penal identificado como um estatuto que proteja ao mesmo tempo o inocente e o culpado[6], ou seja, que realize o direito penal sem menosprezo aos direitos fundamentais do imputado[7].
Tal dualidade se mostra evidente quando se pensa na hipótese da decretação da custódia cautelar preventiva do imputado, porém, o embate entre o princípio da presunção da inocência e a realização do Direito Penal pode ser aferido pelo simples indiciamento no curso da investigação preliminar e se potencializa durante o processo, o que, por si só, já pode causar sofrimento ao inocente (ou mesmo ao culpado[8]), especialmente quando são inobservados os prazos razoáveis de sua duração. Conforme ressalta Daniel R. Pastor:
“La situación descrita muestra las dos caras del problema de la excesiva duración del proceso penal. Por un lado, la prolongación del enjuiciamiento sin definición sobre la relación material que subyace a la acción perjudica los fines sustantivos del derecho objetivo, impide que la paz jurídica, jaqueada por la sospecha, se restablezca con la sentencia, sea absolutória o condenatória. Por el otro, también el derecho fundamental del imputado a ser juzgado tan rápidamente como sea posible es violado por la excesiva duración del proceso”[9].
A chamada “pena de processo”[10] (também identificada como “pena de banquillo”[11]), ou seja, o mal causado pelo decurso desarrazoado do processo (e, antes, pela eternização do indiciamento[12]), expõe a ferida da crise de legitimidade ius puniendi estatal e acaba por gerar a deterioração dos direitos fundamentais do acusado, em especial, a presunção da sua inocência[13].
Presente a dificuldade hercúlea que é adequar os direitos e garantias individuais – destacando-se o direito de ser julgado dentro de um prazo razoável – e ao mesmo tempo zelar pela eficácia da justiça[14] – especialmente quando o Estado de vale do Direito Penal como um instrumento de “lei e ordem” ou de “tolerância zero”[15] –, o que se pretende com o ensaio é abordar a “doutrina do não-prazo” e as soluções aventadas para salvaguardar o direito do cidadão ser julgado sem dilações indevidas.
A consagração do direito de ser julgado dentro de um prazo razoável
Os traços iniciais do direito a ser julgado dentro de um prazo razoável podem ser encontrados em antecedentes Anglo-Saxões tais como no Assize of Claredon[16], na Magna Carta[17] e no Habeas Corpus Act[18]. Porém, o primeiro instrumento a positivar o direito de uma pessoa autora de um crime a ser julgada dentro de um prazo razoável foi a Declaração de Direitos do Povo da Virginia, em 1776[19]. Conforme se infere do texto legal, toda a pessoa submetida a uma persecução penal tem o direito a um julgamento rápido perante um juízo imparcial. Posteriormente, com a proclamação da Sexta Emenda, restou positivado que: “Em todos os juízos criminais o acusado gozará do direito a um processo rápido”.
Após a Segunda Guerra Mundial e a consagração internacional da universalização dos direitos humanos[20], uma série de convenções e acordos internacionais passaram a estipular o direito a um julgamento sem duração excessiva, destacando-se: (i) a Convenção Americana dos Direitos e Deveres do Homem, aprovada na Nona Conferência Internacional Americana, realizada em Bogotá, em 1948; (ii) a Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais (1950); (iii) o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (vigente no Brasil desde 1992); e, (iv) a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (vigente no Brasil desde 1992)[21].
No direito pátrio, a Constituição da República de 1934 foi a primeira a fazer referência ao tema em estudo disciplinando, no seu artigo 113, 35, primeira parte, que: “A lei assegurará o rápido andamento dos processos nas repartições públicas […]”[22]. Contudo, o direito a ser julgado em um prazo razoável restou definitivamente disciplinado  – com status de direito fundamental[23] – pela Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, a qual acrescentou ao art. 5º, da Constituição da República de 1988, o inciso LXXVIII, consagrando a seguinte redação: “Art. 5º. (…). LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”[24][25].
Assumindo a característica de direito fundamental, a duração razoável do processo está intimamente ligada ao acesso à justiça e não pode ser restringida por qualquer lei infraconstitucional. “Com efeito, os direitos – quer de liberdade como sociais – são elementos limitadores do Poder Estatal, e o grau de garantia desses direitos se constitui como parâmetro de medição da legitimidade e qualidade de uma democracia. As garantias funcionam, então, como técnicas de tutela dos direitos, exercitáveis em face do Estado”[26].
Dificuldade prática
Embora o direito de ser julgado em um prazo razoável esteja consagrado no próprio texto constitucional, a Constituição da República não fixou qualquer parâmetro objetivo para a aferição do eventual desrespeito a tal garantia (especialmente para os casos onde o réu responde em liberdade[27]); tampouco a legislação ordinária prevê consequências diretas pelo descumprimento da soma dos prazos processuais identificados nos diversos procedimentos do Código de Processo Penal e legislação esparsa[28].
O conceito do que seja “razoável” continua sendo um significante peculiar para o qual os significados podem ser infinitos, logo, presta-se como standard à avaliação subjetiva[29], a ser analisado à luz da idiossincrasia do julgador e do caso em exame, embora assim não tivesse que ser se o lapso temporal está – ou estivesse – expressamente disposto nos preceitos legais, como parece elementar.
Danos gerados pelo descumprimento
São inúmeros os problemas gerados pela morosidade processual. Além de abalar o ideal de justiça (identificado como a capacidade do Estado de resolver os casos penais)[30], a tramitação em tempo desarrazoado causa prejuízos à produção probatória, em especial à realizada pela Defesa (vez que, como regra, muitas das provas que se vale a acusação já foram produzidas quando da investigação), tornando cada vez mais incerta a decisão judicial e acarretando prejuízos financeiros ao acusado, além de mitigar – aos olhos de terceiros[31] – sua presunção de inocência, razão por que produz danos de ordem psicológica (a estigmatização e a angústia são proporcionais à procrastinação do processo) e ainda desconstrói a garantia do devido processo legal[32]. Conforme afirma Nicolò Trocker, “um processo que perdura por longo tempo transforma-se também num cômodo instrumento de ameaça e pressão, uma arma formidável nas mãos dos mais fortes para ditar ao adversário as condições da rendição”[33].
O perigo da aceleração processual: em busca do tempo adequado
Tempo razoável deve ser aquele da maturação dos atos, particularmente das decisões. De qualquer modo, em um processo concebido como procedimento em contraditório, o conhecimento deve advir da iniciativa das partes na formação das fattispecie[34] e, assim, é necessário o tempo suficiente para os atos serem adequadamente praticados, tudo de modo a se permitir o devido conhecimento do caso penal. É por isso que, em processo penal, acelerar pode significar – e em geral significa – não se ter o conhecimento suficiente para se decidir conforme o CR (da melhor maneira possível, isto é, de modo maduro), mormente sem o sacrifício dos direitos e garantias individuais.
A garantia do julgamento em tempo razoável, então, não pode servir de fundamento para a construção de uma ideia de celeridade imediatista apta a eclipsar os direitos e garantias individuais do acusado na busca de uma “justiça” a qualquer preço e a qualquer tempo[35], temperada por uma lógica maniqueísta de tudo ou nada. Assim, é imprescindível que o acusado tenha tempo e meios para promover a verdadeira (e técnica) defesa, observando-se a justa paridade de armas. Deve-se sopesar a prestação jurisdicional em tempo  razoável e a proteção do acusado mediante o tempo e os meios necessários para a preparação da sua defesa. Ou seja, deve o acusado ser julgado no mais curto prazo compatível com seus direitos e garantias constitucionais[36].
Por outro lado e como referido, não se pode olvidar que a decisão judicial também precisa de tempo (temporalidade adequada) para ser maturada, especialmente quando se está diante do caso penal, onde faz-se necessária a análise artesanal dos fatos sob pena de se fomentar o açodamento da (in)justiça. Enfim, com a exclusão do non liquet e a definição temporal precisa – no termo definido pelo rito –, as decisões devem ser lançadas e, em particular, a sentença. À primeira vista e desde uma análise seca a partir do espaço jurídico, parece que elas (as decisões) são simples e devem – ou podem – ser mecânicas, o que encobre com uma capa de sentido tudo aquilo que de mais vivo tem nelas: a humanidade do órgão jurisdicional.
Ora, todos sabem que em direito processual quando se diz que a palavra sentença vem do latim sentire não se está querendo dizer liberdade para dizer qualquer coisa e sim que o ato (profundamente humano), mesmo sendo e devendo ser controlado de todas as formas possíveis, não perde – e não pode perder – sua dose de humanidade. Falar disso, porém, é reconhecer no homem/mulher um ser clivado por definição (como mostra a psicanálise), razão por que é passível de todas as vicissitudes e, assim, marcado pela dúvida sobre o desconhecido, qualquer que seja e mesmo sobre um simples caso penal.
O tempo – e em especial o tempo razoável –, desde este ponto de vista, carece ser o da maturação das decisões, de modo a se possibilitar que a dúvida (sempre presente) não seja definida pela falta de tempo para se obter o conhecimento da forma correta, ou seja, a partir da iniciativa das partes. É por isso, dentre outras coisas, que se o conhecimento não chegar ao processo, deve o(s) réu(s) ser(em) absolvido, por falta de provas, em face do in dubio pro reo. Nesta hipótese e como é primário, deve sempre restar claro aquilo que a sociedade, pelo contido na CR, pretende do juiz competente do processo, isto é, que decida o caso penal com o conhecimento que lhe chegou pela iniciativa das partes, tudo ao contrário da matriz inquisitorial, a qual sacrificando os postulados básicos da Constituição – começando pela correta imparcialidade como equidistância – acaba por promover, com frequência, a injustiça, inclusive em relação ao próprio juiz. Logo, se é assim – e é mesmo –, de um lado ele exerce função que constitucionalmente não é dele (onus probandi), mormente em relação à acusação e, do outro, tomando-se a decisão/sentença como expressão necessária da Verdade (para alguns uma verdade material ou mesmo absoluta, por mais absurdo que possa ser), o máximo que consegue chegar é em uma certeza (de cernere) com a qual se acaba (todos) tendo que se contentar, em face da coisa julgada.
Assim, não raro o preço a pagar por essa evidente falta de sintonia (eis o absurdo de que falava Camus, Sartre e outros) proporcionada pelo sistema inquisitorial do CPP de 41 e ainda em vigor (embora contra a CR) é a culpa, a ser analisada a partir daquilo que primorosamente Freud demonstrou em Mal-estar da civilização[37]. Em definitivo, os juízes, pelo simples fato de serem juízes, não merecem um lugar assim, mormente se em descompasso com a CR e em razão da função primordial conferida a eles, ou seja, de garante da ordem posta (começando pelo cidadão) e de decidir, se for o caso, contramajoritariamente.
Critérios adotados pelos tribunais
De acordo com a jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), o direito a ser julgado dentro de um prazo razoável constitui um conceito jurídico indeterminado e não guarda relação com a prática de atos processuais dentro de marcos legais previamente identificados e precisos. Assim, o reconhecimento quanto ao descumprimento da duração razoável do processo resta atrelado à chamada “doutrina do não-prazo”. Para sua análise ao caso concreto, são sopesados os seguintes critérios[38]: a) a duração total do processo (desde o primeiro ato da persecução penal até o julgamento do último recurso cabível); b) a complexidade do caso e da prova; c) a gravidade do fato imputado (atentando-se para a pena prevista ao tipo penal e a culpabilidade do agente); d) a conduta do acusado durante o andamento do feito e sua possível relação com a demora processual[39]; e e) o comportamento das autoridades oficiantes.
Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), por sua vez, passou a analisar e balizar três critérios para a aferição da dilação indevida do andamento processual: a) a complexidade do caso; b) a atividade processual dos interessados; e, c) a conduta das autoridades judiciais, dos auxiliares e da jurisdição interna de cada país. Outrossim, conforme alerta Décio Alonso Gomes, por vezes, ainda é utilizado um quarto elemento, ou seja, a forma como se tramitou a etapa da instrução processual[40].
Segundo a jurisprudência do Tribunal Constitucional espanhol, o reconhecimento da dilação indevida do processo passa pela análise dos seguintes elementos: “a) complejidad del litígio; b) los márgenes ordinários de duración de los conflictos del mismo tipo; c) el interes que en pleito arriesga el demandante del amparo; d) su conducta procesal y la conducta de las autoridades; e) al solo efecto de ponderar los efectos del pronunciamiento a dictar, evaluar se ha cesado o no la dilación denunciada”[41].
Suprema Corte dos EUA igualmente não adota um critério temporal objetivo para delimitar o conceito de tempo razoável, restando assentado em Barker v. Wingo (407 U.S. 514 – 1972): “we find no constitucional basis for holding that the speedy trial right can be quantified into a specified number of days or months[42]. Comentando o caso em questão, Kamisar et al. extrai que o direito constitucional ao speedy trial não pode ser estabelecido de maneira inflexível por qualquer regra, pois carece ser sopesado pelos seguintes fatores: a) o tempo transcorrido após a consumação dos prazos; b) as razões que levaram o processo a ter um trâmite dilatado; c) os argumentos levantados pela defesa; d) o prejuízo para o acusado. Outrossim, restou assentado no referido julgamento que o direito ao speedy trial é diferente de qualquer outra garantia assegurada ao acusado, pois o direito tanto beneficia ele quanto à própria sociedade[43].
No Brasil, o e. Supremo Tribunal Federal igualmente adota a “doutrina do não-prazo” e sopesa o reconhecimento da dilação indevida do processo à presença dos seguintes fatores: natureza e complexidade da causa (HC 116.447[44]); contribuição da defesa (HC nº 116.113); inércia do poder judiciário (HC nº 116.113)[45]. Outrossim, recentemente, a Lei nº 12.850, de 02 de agosto de 2013[46], passou a adotar dois dos critérios referenciados pela jurisprudência brasileira e estrangeira para a aferição da duração razoável do processo nos casos a ela submetidos: complexidade da causa e dilação indevida por fato procrastinatório atribuível ao réu[47].
Soluções: em busca do tempo perdido
Predomina junto ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) a adoção de soluções compensatórias no caso de descumprimento ao postulado da duração razoável do processo. Segundo Pastor, trata-se de uma mera indicação para que os juízes avaliem ao final do processo (ex post iudicium) a ocorrência de dilações indevidas e, em caso positivo, outorguem alguma forma de compensação ao acusado, tais como: indenizações, atenuação da pena, exclusão da pena, suspensão da sua execução, graça, indulto e, em casos excepcionais, a extinção do processo[48].
Merece destaque a solução legal prevista pelo Código de Processo Penal do Paraguai. Na referida legislação, uma vez constatada a superação dos prazos fixados em lei, adota-se a resolução ficta do julgamento em favor do acusado e sem a possibilidade de repropositura da ação. Conforme especificado, o procedimento observará o prazo máximo de quatro anos, suspendendo-se com a interposição de incidentes, exceções, apelações e recursos, mas, uma vez superado o prazo, o juiz ou tribunal, de ofício ou a requerimento, declarará extinto processo[49]. Tratando-se de medida cautelar privativa de liberdade, transcorrido o prazo para o julgamento, o imputado poderá requerer imediata decisão, a qual deve ser proferida no prazo de vinte e quatro horas, sob pena de concessão da liberdade.
Código de Processo Penal Boliviano (art. 133) fixa o prazo máximo de três anos para a conclusão do processo e estabelece (art. 134) que a etapa investigatória deverá se encerrar em seis meses[50]. Segundo adverte Décio Alonso Gomes (op. cit., p. 118), se “vencido o prazo da etapa preparatória, o Ministério Público não acusa nem apresenta outro pedido conclusivo, o juiz provocará o Procurador-Geral para que o faça no prazo de cinco dias. Transcorrido este prazo sem que se apresente pedido por parte da Procuradoria, o juiz declarará extinta a ação penal, salvo se a demanda puder continuar com base na atuação do querelante, sem prejuízo da responsabilidade pessoal do Procurador-Geral”.
No Brasil, praticamente não existe preocupação da jurisprudência em buscar qualquer forma de solução para o descumprimento da garantia do julgamento em prazo razoável, salvo na hipótese do réu se encontrar preso. Contudo, merece verdadeiro destaque o julgado proferido pela c. 6ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, quando da apreciação da Apelação nº 70019476498, rel. Des. Nereu José Giacomolli, j. 14/06/2007. Na hipótese concreta, restou reconhecida a dilação indevida do processo, o qual teria durado quase sete anos desde o recebimento da denúncia até a apreciação do recurso de apelação. Assim, entendeu o eminente relator em adotar uma solução compensatória, absolvendo o acusado com fundamento no art. 5º, LXXVIII, da Constituição da República e no artigo 386, VI, do Código de Processo Penal[51].
Por fim, merece destaque o avanço objetivado a partir do PLS nº 156/2009 (aprovado junto ao Senado Federal, remetido à Câmara dos Deputados em 21/12/2010 e lá, atualmente, “dormitando”), o qual estrutura um novo Código de Processo Penal, pensado e (mais) adequado aos ditames constitucionais de 1988. Ciente do estigma que representa a manutenção indeterminada do presumidamente inocente no cárcere[52] e buscando tornar realidade o princípio da provisoriedade das medidas cautelares (caso contrário, tornar-se-ia escancarada antecipação de pena[53]), o projeto fixa prazos limite para a custódia cautelar preventiva e determina que a mesma seja reexaminada no interregno máximo de 90 (noventa) dias, sob pena de ser considerada ilegal[54].
Para além da compensação
A despeito das várias formas de equacionar a dilação indevida do processo (como, por exemplo, estabelecendo sanções compensatórias, processuais e sancionatórias), há de se entender que a sanção de natureza processual (extinção do feito) é a que melhor equaciona a questão, pois inibe a continuidade do processo já abalado pelo desrespeito a uma garantia fundamental[55].
Décio Alonso Gomes sugere que essa decisão extintiva deve ter natureza híbrida, “determinando a extinção do processo, sem apreciação do mérito (acusatório), e a extinção da punibilidade do fato (acrescentando-se, portanto, mais uma causa ao rol do art. 107 do CP)”[56]. A hipótese é sugestiva, mas encontra dificuldade técnica nas regras de regência. Ora, sendo a base de natureza processual, poder-se-ia (até que se tivesse preceitos próprios regulando a matéria), aplicar, pela via do art. 3º, do CPP, as regras relativas às decisões de procedência da exceção de coisa julgada e litispendência, nos termos do art. 95 e seguintes, do CPP. A questão de fundo – essa sim – deve estar ligada à punibilidade e sua extinção se se quiser que a decisão tenha trânsito em julgado material; e parece ser o caso. Há de se perceber, porém, que se não trata, no caso, da prescrição penal e sim de causa análoga, ligada ao tempo disponível para o processo, razão por que há de se fazer analogia in bonam partem. O fundamento de mérito, então, não é dado pela decisão (que não é constitutiva) e sim pela regra de regência, a qual cria uma causa extra de extinção da punibilidade.
Ainda, a presente decisão (extintiva) deveria ser obrigatoriamente comunicada aos órgãos correcionais de cada tribunal, não apenas para a adoção de eventual procedimento administrativo contra magistrado (CR, art. 96, II, e), mas, como forma de se operar prognosticamente uma melhoria na prestação jurisdicional, eis que, em muitos dos casos, a falta de estrutura somada à extensa pauta jurisdicional não pode ser imputada ao magistrado (tampouco às partes e em especial ao acusado).
Para tanto, a doutrina do “não-prazo” deve ser revisada, passando-se a adotar marcos normativos mais rígidos e adequados para cada tipo de crime e procedimento[57], mesmo que ainda reste resguardada certa flexibilidade para casos destoantes (nunca para a generalidade dos casos, como ora se adota[58]; e muito menos contra os acusados). Conforme pontuado por Rangel:
“A razoabilidade do prazo de duração do processo é a garantia do exercício da cidadania na medida em que se permite que todos possam ter acesso à justiça, sem que isso signifique demora na prestação jurisdicional. Prestação jurisdicional tardia não é justiça, mas prestação imediata, açodada, é risco à democracia. Deve, portanto, ser razoável, proporcional ao caso concreto objeto de apreciação”[59].
Deve o legislador, então, fixar prazos “reais”, ou seja, lapsos temporais verdadeiramente condizentes à prática dos atos processuais, mirando-se, de um lado, o procedimento “ideal” e, de outro, as peculiaridades locais e nacional, além de observar, igualmente, os direitos e garantias constitucionais e o tempo de maturação da decisão judicial[60]. Feito esse sopesamento, qualquer processo que desrespeite o que seja fixado pelo legislador deve ser tisnado pelo desrespeito da garantia fundamental da duração razoável do processo[61].
A inexistência de um dispositivo expresso na CADH disciplinando uma sanção objetiva pelo desrespeito à duração razoável do processo não significa que o legislador pátrio não possa estabelecer uma garantia mais ampla ao cidadão brasileiro (como aliás fazem outros sistemas processuais, tais como o do Paraguai e da Bolívia), pois a convenção disciplina garantias mínimas e não máximas aos direitos fundamentais.
O exercício da persecução penal apenas se mostra legítimo quando são observadas as garantias fundamentais do investigado/acusado, moldadas a um procedimento temporalmente adequado, previamente determinado pelo legislador e quando as regras do jogo são efetivamente obedecidas. A discussão sobre a garantia à duração razoável do processo é algo relativamente novo no direito brasileiro, porém, os efeitos infamantes e sancionatórios da perpetuação da investigação/processo sobre a vida do investigado/acusado há muito já é conhecido. É o momento de se tentar minimizar as consequências do tempo perdido.

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