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CÓDIGO DE PROCESSO PENAL DE 1941: TUDO O QUE VOCÊ DISSER PODERÁ SER USADO
CONTRA VOCÊ
Dando continuidade à série de
colunas “A herança legal das ditaduras: nossas cicatrizes jurídicas” (artigos anteriores
disponíveis aqui e aqui),
nessa semana vamos falar sobre o Código de Processo Penal brasileiro, que desde
1941 regula os direitos e garantias processuais dos cidadãos acusados de crime.
Assim como o Código Penal, o
Código de Processo Penal também é um decreto-lei imposto por Getúlio Vargas
durante a ditadura do Estado Novo. Ou seja: todo o problemático contexto de
restrição severa das liberdades civis e de graves violações de direitos humanos
existente quando da promulgação do Código Penal servia igualmente de cenário ao
então novo Código de Processo Penal – aplicando-se aqui, é claro, os mesmos
apontamentos feitos em relação ao Código Penal (no texto “Código Penal de 1940: não parece
que foi ontem?”) quanto ao fato de uma norma de tamanha
importância para o resguardo dos direitos individuais fundamentais ser fruto
não de um processo legislativo democrático realizado por membros de um
Congresso representante do povo, mas sim dos rasgos autoritários de um ditador,
e, pior, ainda estar em vigor sem despertar maiores inquietações da comunidade
jurídica brasileira.
Se o problema já se mostrava grave em
relação ao Código Penal, o autoritarismo de tendências fascistas de Vargas se
mostrará ainda com mais nitidez nas regras do direito processual penal
brasileiro formuladas pelo então Ministro da Justiça Francisco Campos (aliás, o
mesmo jurista responsável pelo texto do Código Penal de 1940 e da Constituição
de 1937): o direito de defesa do cidadão seria expressamente limitado em favor
da “defesa da sociedade”.
As exposições de motivos das leis
costumam ser ricas fontes de pesquisa, nas quais é possível identificar a
intenção do legislador e os vieses ideológicos subjacentes ao texto
aparentemente “neutro” da norma. No caso do Código de Processo Penal, vale
conferir as palavras de Campos:
“A
REFORMA DO PROCESSO PENAL VIGENTE (…)
As
nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos
em flagrante ou confundidos pela evidência das provas, um tão extenso catálogo
de garantias e favores, que a repressão se torna, necessariamente, defeituosa e
retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo à expansão da
criminalidade. Urge que seja abolida a injustificável primazia do
interesse do indivíduo sobre o da tutela social. Não se pode continuar a
contemporizar com pseudodireitos individuais em prejuízo do bem comum.
(…)
No
seu texto [o CPP de 1941], não são reproduzidas as fórmulas tradicionais de um
mal-avisado favorecimento legal aos criminosos. O processo penal é
aliviado dos excessos de formalismo e joeirado de certos critérios normativos
com que, sob influxo de um mal-compreendido individualismo ou de um
sentimentalismo mais ou menos equívoco, se transige com a necessidade de uma
rigorosa e expedita aplicação da justiça penal.”
Opa, alguém aí sentiu, de leve, uma
semelhança com aquele discurso que afirma algo como “bandido tem é muito
direito e muita brecha na lei, precisamos proteger o ‘cidadão de bem’ da
criminalidade”?
Pois é, sem novidades: esse é o
discurso hegemônico no processo penal brasileiro desde os anos 1940, a
evidenciar ainda mais que, mesmo quando se retiram expressamente direitos do
acusado, isso não implica uma maior sensação de segurança (ou alguém vem se
sentindo mais seguro de 1941 pra cá?).
Mas quais foram os impactos no Código
de Processo Penal da adoção deste objetivo expresso de “abolir a
primazia do interesse do indivíduo” em face de um Estado
autoritário?
Foram muitos, e vários deles somente
amenizados por modificações muito recentes, ou seja, anos após a promulgação da
Constituição de 1988 e, não raro, somente devido a uma intensa mobilização dos
juristas e profissionais atuantes na defesa de acusados para que se adequasse o
texto legal às normas constitucionais que passaram a prever garantias
processuais penais como direitos individuais fundamentais.
Eram muitas as dissonâncias existentes
entre o texto do Código de Processo Penal e a Constituição de 1988. Veja só:
Até 2003, o réu não tinha assegurado o
direito ao silêncio: o artigo 186 do CPP determinava expressamente que "o
seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa”. Foi
apenas a partir desse ano também que, após uma alteração do artigo 187, o
defensor passou a poder fazer perguntas ao seu cliente durante o
interrogatório, pois até então somente o juiz inquiria o réu.
Em 2008, os procedimentos criminais
foram profundamente modificados em diversos pontos. Mas a principal mudança se
deu no tocante à defesa do réu no processo: de 1941 a 2008, o interrogatório do
réu (que é o único momento em que o acusado fala pessoalmente com o juiz,
apresentando a sua versão dos fatos e exercendo seu direito de autodefesa) era
o primeiro ato a ser realizado, logo após o recebimento da denúncia oferecida
pelo Ministério Público. Isso significava que a pessoa processada criminalmente
somente tinha oportunidade de se manifestar antes de saber o que seria dito a
respeito dos fatos posteriormente por testemunhas, ou o que comprovariam
eventuais documentos e provas periciais. Com a reforma de 2008, o
interrogatório foi adequadamente deslocado para o final do procedimento e
seguindo uma coerência lógica: primeiro a pessoa acusada tem conhecimento de
tudo que se produziu a respeito dos fatos imputados para somente então se
pronunciar perante o juiz.
Foi também no ano de 2008 que se
reduziram de cinco para três as hipóteses de prisão antes do julgamento: se
hoje contamos com a prisão em flagrante, a prisão temporária e a prisão
preventiva (e seus muitos excessos), antes dessa alteração legal ainda se
acresciam a essas a prisão decorrente de pronúncia no procedimento do júri, e a
prisão em razão de sentença condenatória de 1ª Instância – aliás, vale
observar que o recolhimento à prisão era obrigatório para quem quisesse exercer
o direito de apelar da sentença (e sim, o artigo 394, que trazia essa previsão
flagrantemente violadora do direito à ampla defesa também só foi modificado em
2008).
E foi somente em 2011 que o Código de
Processo Penal passou a prever outras medidas cautelares de restrição à
liberdade do acusado diversas do aprisionamento. Mesmo que, cinco anos após sua
introdução no ordenamento jurídico brasileiro, as cautelares ainda encontrem
resistência do Poder Judiciário em sua aplicação – muitos magistrados ainda tem
um apego quase sentimental à prisão preventiva – sua previsão legal ao menos
torna possíveis outras formas de responder ao processo com a liberdade de ir e
vir menos limitada do que ocorre no cárcere.
Antes da Constituição de 1988, é
importante dizer que outros pontos relevantes foram alterados, tais como a
prisão preventiva expressamente obrigatória para crimes cuja pena máxima
superasse 10 anos (mas não sei o quanto evoluímos, se consideramos as muitas
prisões preventivas “tacitamente obrigatórias” nos casos de tráfico de drogas e
roubo), ou na obrigatoriedade de prender réus “vadios” mesmo em crimes
afiançáveis (falaremos da vadiagem na próxima coluna, sobre a Lei de
Contravenções Penais, fica aqui o teaser!). E já em 1946 foi extinto o antigo
Tribunal de Segurança Nacional, com atribuição de processar e julgar opositores
da ditadura varguista[1].
Não obstante essas modificações
pontuais – e, vale dizer, várias delas profundas e importantes – ainda assim o
direito de defesa é legalmente tolhido em diversos pontos do Código de Processo
Penal, como no inquérito policial, fase em que, ante a “justificativa” de ser
apenas uma investigação e não uma acusação formal, não se exige legalmente a
presença de um advogado ou defensor em atos como a prisão em flagrante ou a
oitiva do indiciado. “Mas não é proibido, oras”, dirão alguns. Porém, provoco:
se mesmo nas situações em que a presença obrigatória do advogado não supre
violações ao direito de defesa, acho que podemos imaginar o que ocorre nesses
outros em que a presença do defensor não é proibida, mas tampouco é
obrigatória. Outro problema grave diz respeito ao nebuloso capítulo das
nulidades, com sua sistemática indecifrável a exigir uma tremenda ginástica
hermenêutica de combinação com regras (que deveriam ser consideradas) simples
da Constituição Federal, tais como protestar pela anulação de atos que causem
cerceamento de defesa: não há essa previsão no Código de Processo Penal. Mas a
Constituição Federal assegura a ampla defesa. E aí como convencer as
mentalidades formatadas por Francisco Campos de que a defesa foi, sim,
prejudicada? Não por acaso, menos de dez artigos (artigo 259 a 267, CPP)
dedicam regras ao acusado e seu defensor.
E, de outro lado, nosso Código de
Processo Penal tem suas muitas “gavetinhas da bagunça”, entulhadas com
dispositivos obsoletos ainda em vigor – como os artigos 101, 264 e 277 e
suas inacreditáveis multas cominadas em “mil-réis”- ou outros que, embora
tacitamente revogados há mais de trinta anos, continuam largados no texto
legal, caso das disposições relativas à execução da pena, cuja vigência foi
suplantada pela Lei de Execução Penal em 1984. Isso demonstra o desinteresse
com a matéria e o desprestígio do tema. O quanto se produziu de novas
legislações (sem entrar no mérito de sua conveniência, qualidade ou eficácia)
no tocante a crimes financeiros ou ao tráfico de entorpecentes?
São mais de seis décadas durante as
quais pessoas vem sendo processadas e condenadas com base em um procedimento
que foi concebido para desprivilegiar o direito de defesa, compreendido pelo
autor do Código como um “sentimentalismo mais ou menos equívoco”. O quanto essa
previsão legal capenga não terá contribuído para o monstro de muitas cabeças que
se tornou o sistema carcerário brasileiro? Quantas condenações injustas se
produziram simplesmente porque um ditador em 1941 determinou que se abolisse “a
primazia do indivíduo”?
Mas talvez pior do que isso seja nos
darmos conta de que muitas gerações de juristas ainda em atividade aprenderam e
escreveram nestes moldes do Código de Processo Penal. E mais: continuam a
escrever e a ensinar as novas gerações. As ditaduras brasileiras deixam
cicatrizes que atingem pessoas por décadas.
Maíra Zapater é
graduada em Direito pela PUC-SP e Ciências Sociais pela FFLCH-USP. É
especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Escola Superior do
Ministério Público de São Paulo e doutoranda em Direitos Humanos pela FADUSP.
Professora e pesquisadora, é autora do blog deunatv.
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