UMA ILUSTRE
DESCONHECIDA :A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
Por Rubens R R Casara
Basta pensar no número de presos provisórios
(pessoas encarceradas antes de serem condenadas), na naturalização do uso
abusivo/desnecessário de algemas (muitas vezes com o único objetivo de aviltar
os imputados), na prisão como forma de coagir eventuais testemunhas ou obter
confissões de indiciados e na “inversão do ônus probatório em matéria
penal” (declarada por um dos Ministros do Supremo Tribunal Federal no
julgamento da AP 470, para justificar seu voto pela condenação de um dos réus)
para se perceber que a incidência do princípio da presunção de
inocência tem se tornado problemática. Vista por alguns como um
óbice à eficiência repressiva do Estado e por outros como um fenômeno contra
natura, a “presunção de inocência” merece ser compreendida e resgatada
em nome da necessidade, sempre presente nas sociedades democráticas, de conter
o poder penal.
Procurar-se-á, neste pequeno texto, apresentar
algumas considerações acerca dessa ilustre desconhecida: a presunção de
inocência. Isso como forma de contribuir à construção de uma cultura
democrática, na medida em que, no Estado Democrático de Direito, modelo marcado
tanto pelo controle do poder quanto pela necessidade de concretização dos
direitos fundamentais, se impõe apostar na liberdade e no máximo respeito ao
indivíduo durante o procedimento de persecução penal (procedimento tendente à
aplicação de uma resposta estatal aos desvios etiquetados de criminosos) até o
esgotamento de todos os recursos cabíveis de eventual condenação, o que veda a
antecipação da punição, a aplicação de medidas vexatórias/estigmatizantes e
torna excepcional o encarceramento cautelar (a prisão de natureza processual).
As primeiras notícias do princípio da
presunção de inocência remontam ao direito romano, contudo ele
encontrou seu período de mais baixa concretude durante a Idade Média, no qual
vigoravam procedimentos inquisitoriais, juízos de semi-culpabilidade, provas
tarifadas e fogueiras. Correlato ao princípio da necessidade de
jurisdição (não há declaração de culpabilidade sem juízo), o
princípio constitucional da presunção de inocência revela que “a culpa,
e não a inocência, deve ser demonstrada” (FERRAJOLI, 2002, p. 441).
Trata-se, como quer LUIGI FERRAJOLI, de um princípio fundamental de
civilidade, “o fruto de uma opção garantista a favor da tutela da
imunidade dos inocentes, ainda que ao custo da impunidade de algum culpado” (FERRAJOLI,
2002, p. 441). Mais do que uma opção legislativa em prol da parte mais fraca da
relação de processual (relação, vale sempre lembrar, estruturalmente desigual,
uma vez que coloca o acusado/indivíduo em oposição ao Estado), o princípio da
presunção de inocência representa uma proposta de segurança para o corpo
social, posto que o arbítrio estatal, corporificado na condenação de inocentes,
representa uma forma de violência igual, ou mesmo pior (por se tratar de
violência estatal ilegítima), que a cometida pelo sujeito criminalizado.
O princípio da presunção de inocência encontra-se
elencado no artigo 5.º, inciso LVII, da Constituição de República, no artigo 9º
da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e em um grande número de
diplomas de direito internacional, inclusive na Convenção Americana de Direitos
Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), da qual o Brasil é signatário, em
que se lê: “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua
inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”.
A redação (diga-se: tímida e dúbia) dada ao artigo
5.º, inciso LVII, da Constituição Federal não faz referência explícita à
presunção de inocência e reproduz, em linhas gerais, a solução conciliatória
adotada pela Constituição Italiana de 1947. Naquela ocasião, diante da
redemocratização italiana, buscou-se evitar uma ruptura dogmática com a
tradição dogmática-autoritária. Em realidade, como percebeu LUIZ FLÁVIO
GOMES, “no eixo da discussão sobre a essência da presunção de inocência está
uma clássica e histórica polêmica entre correntes liberais e antiliberais”
(GOMES, 1988, p. 102). Em apertada síntese, na Itália,confrontavam-se
teóricos que conferiam ao princípio da inocência a sua
amplitude máxima, como forma de realçar/reforçar a liberdade individual, como
símbolo frente ao obscurantismo processual, e aqueles que detinham o poder
político durante o fascismo italiano (e que representaram forte influência no
direito brasileiro ao tempo da elaboração do Código de Processo Penal de 1941),
que vislumbravam excessos na defesa das garantias individuais e entendiam
impossível a existência de uma verdadeira presunção de inocência que acobertasse
pessoas acusadas de crimes. Para esses teóricos, vinculados ao movimento
autoritário, o que vigorava durante o processo criminal era uma “declaração
(presunção) de não-culpabilidade”, uma postura que via o imputado (aquele a
quem se atribui uma conduta criminosa) numa situação “neutra”’, em que ainda
não podia ser tido como culpado, mas também não era visto como inocente.
Como se percebe, a disputa entre liberais e antiliberais reproduz, na
compreensão desse princípio, o conflito entre o interesse repressivo e o
interesse de manutenção da liberdade do cidadão. Todavia, ao acompanhar a lição
de JAIME VEGAS TORRES, “não é possível distinguir ‘presunção de não
culpabilidade’ e ‘presunção de inocência’” (TORRES, 1993, p. 31), pois a
neutralidade (conceitualmente, a ausência de valores) é impossível: a pessoa
não é presumida culpada por ser tida como inocente até o trânsito em julgado
(até a impossibilidade de impugnar a condenação pela via recursal) de sentença
penal condenatória.
Aqui entre nós, a presunção de inocência constitui
direito fundamental de dimensão constitucional. Não se trata de uma presunção
em sentido técnico, mas de uma valoração constitucional que condiciona a
atuação de todos os agentes estatais em diversos momentos. Para EUGÊNIO PACELLI
DE OLIVEIRA, o mencionado princípio, estrutural, leva à concretização jurídica
do estado de inocência, entendido como “posição do sujeito diante das normas da
ordenação, resultando também direitos subjetivos públicos a
serem exercidos em face do Estado, que haverá de justificar sempre ou em lei ou/e motivadamente –
quando judicial a decisão – quaisquer restrições àqueles direitos” (OLIVEIRA,
2004, p. 174). Na lição de AMILTON BUENO DE CARVALHO, a realização desse
princípio exige a adoção de uma postura ativa (e não de mera passividade) da
Agência judicial, a saber: deve o juiz entrar no feito convencido de que o
cidadão é inocente e só prova forte em contrário, destruidora da convicção
inicial, é que levará ao resultado condenação (CARVALHO, 1998, p. 104-105).
A concretização do princípio da presunção de
inocência se dá em três dimensões diversas: a) a dimensão do tratamento
conferido ao indiciado ou réu (regra de tratamento); b) a dimensão de garantia
(regra do Estado); e c) a dimensão probatória (regra de juízo).
A presunção de inocência revela, em primeiro lugar,
uma regra de tratamento, que favorece do indiciado ao réu, desde a
investigação preliminar até, e inclusive, o julgamento do caso penal nos
tribunais superiores (por “tribunal superior” entende-se o órgão judicial com
competência em todo o território nacional). Todos os imputados (indiciados ou
acusados) devem ser tratados como se inocentes fossem, até que advenha a
certeza jurídica da culpabilidade oriunda de uma sentença penal irrecorrível. O
tratamento diferenciado entre o réu e qualquer outro indivíduo só se justifica
diante do reconhecimento estatal, devidamente fundamentado, da necessidade de
se afastar o tratamento isonômico. Assim, por exemplo, tanto o uso de algemas
quanto a decretação de prisões cautelares são medidas de exceção que só podem
ser adotadas em situações excepcionais. A regra é, portanto, que,
independentemente da gravidade do crime, o imputado responda ao processo em
liberdade.
Em segundo lugar, a presunção de inocência
representa uma regra probatóriaque se exprime através da máxima
latina que orienta a apreciação da prova penal: in dubio pro reo.
No processo penal, a carga probatória é toda da acusação. Mesmo diante da
inércia da defesa técnica, o acusado deverá ser absolvido se o Estado não for
capaz de demonstrar a autoria, a materialidade e a culpabilidade descritas na
denúncia (ou queixa), i.e., cabe à parte-autora produzir a prova segura da
conduta típica, ilícita e culpável. Se o órgão acusador, para o exercício
legítimo da ação penal condenatória, tem o dever de imputar um fato criminoso
(leia-se: um fato típico, ilícito e culpável), a ele também cabe demonstrar a
tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade afirmadas. Com razão, portanto,
AFRÂNIO SILVA JARDIM (JARDIM, 2013, pp. 227-244) e GERMANO MARQUES (MARQUES,
2000, p. 170) ao aduzirem que não compete ao réu provar as circunstâncias
justificantes e exculpantes por ele alegadas. É também
a dimensão probatória do princípio da presunção de inocência que torna
inconstitucional qualquer ato (legislativo, administrativo ou judicial) que
implique na inversão do ônus da prova no processo penal. Há, portanto, um claro
limite material à liberdade de conformação da prova pelo legislador ordinário
“constituído pela especial dignidade e importância atribuídas a determinados
bens constitucionais (vida, liberdade, integridade física)” (CANOTILHO, 2004,
174). Na lição de CANOTILHO, “isso significa que quando alguns direitos
invioláveis estejam sujeitos a restrições e essas restrições pressuponham a
existência de determinados fatos acoplados a juízos de prognose, o ônus da
prova pertence não a quem invoca o direito” (CANOTILHO, 2004, 174). No
mais, in dubio pro libertate.
Por fim, o princípio da presunção de inocência é também
dirigido ao Estado, como regra de garantia contra as opressões
tanto públicas quanto privadas. Dito de outra forma: o Estado, para concretizar
o princípio da presunção de inocência, recebe do legislador constituinte o
dever de adotar todas as medidas que permitam assegurar ao indiciado ou acusado
tratamento digno.
E, mais do que isso: o princípio da presunção de
inocência deve servir como óbice e constrangimento às tentações totalitárias
(de fazer do imputado um objeto a ser manipulado pelo Estado) e às perversões
inquisitoriais que levam ao encarceramento em massa da população brasileira, em
especial aqueles que não interessam à sociedade de consumo. PERFECTO ANDRÉS
IBÁÑES, com sensibilidade, afirma que “se, como penso, no emprego da prisão
cautelar há um inevitável momento de ilegitimidade, o juiz tem que assumir esse
dado na forma de uma mala conciencia, geradora nele de um
verdadeiro mal estar moral que torne impossível o uso cômodo e rotineiro dela”
(IBÁÑES, 2007, p. 147).
Rubens Casara é
Doutor em Direito, Mestre em Ciências Penais, Juiz de Direito do TJ/RJ,
Coordenador de Processo Penal da EMERJ e escreve a Coluna ContraCorrentes, aos
sábados, com Giane Alvares, Marcelo Semer, Marcio Sotelo Felippe e Patrick
Mariano.
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