ANÁLISE DO FILME “O POÇO” Prof.Esp.Alcenisio Técio Leite de Sá
O cerne de “O Poço” está em levar
às últimas consequências uma das grandes questões morais colocadas
pela filosofia, pela economia e pela política: o impulso do homem em agir
somente pelo auto interesse. ... Não que Adam Smith propusesse ser correto o
agir moral apenas pelo auto interesse.
O POÇO: A MORALIDADE
DIANTE DA DISTOPIA
Por Dr. Davi Nogueira Lopes
29/04/2020
Um paralelo entre o filme “O
Poço” e a quarentena da corona vírus.
Não é apenas o roteiro
estarrecedor que causa espanto a quem assiste o filme “O Poço”[i], em cartaz na
Netflix, mas também e principalmente a experiência de se ver transportado para
aquela distopia grotesca e alucinante, como se ali estivéssemos com tudo o que
somos, de melhor e de pior.
O filme se desenvolve
basicamente dentro de uma espécie de Pan-óptico, onde os presos são
constantemente vigiados, mas não podem ver quem os vigia. Embora não tenha a
arquitetura tal qual proposta por Jeremy Bentham[ii] em 1785, o “Poço” é uma
construção vertical com algumas centenas de andares subterrâneos, e cada andar
abriga duas pessoas.
No meio dos andares há uma
abertura quadrada por onde desce, uma vez por dia, uma plataforma suspensa no
ar (futurística) e que faz as vezes de uma enorme bandeja de comidas
cuidadosamente preparadas por chefs profissionais. E este é o problema: a
mesma bandeja serve todos os andares. No nível “zero”, quando está intocada,
ela representa não apenas a fartura de alimentos, mas principalmente a
opulência daqueles que estão no topo pirâmide econômica. Quando a mesa chega
aos últimos níveis ela está toda revirada, cheia de copos e pratos quebrados,
objetos imprestáveis, como num lixão, mas sem nenhum alimento.
Quem está no nível superior
não apenas é indiferente à fome das pessoas que estão abaixo, mas por elas tem
repugnância. Isso faz com que quem esteja nos níveis inferiores, onde não chega
comida, não tenha escolha se quiser viver senão assassinar seu companheiro para
se alimentar de sua carne.
A nosso ver, quem interpretou
o filme como uma crítica ao capitalismo passou de raspão, mas não encontrou a
sua essência. O cerne de “O Poço” está em levar às últimas consequências uma
das grandes questões morais colocadas pela filosofia, pela economia e pela
política: o impulso do homem em agir somente pelo auto interesse.
É célebre a passagem de “A Riqueza das Nações”[iii] em que Adam Smith refuta a benevolência do açougueiro, do cervejeiro e do padeiro como se tal virtude fosse a sua motivação. Na verdade, segundo o pai da economia clássica, nada além do que o próprio interesse os põe a trabalhar, de modo que não são as nossas necessidades que eles levam em conta, mas apenas as vantagens que advirão para eles. Não que Adam Smith propusesse ser correto o agir moral apenas pelo auto interesse. Basta ler a sua “Teoria dos sentimentos morais”[iv] para saber disso.
De toda forma, historicamente
a ciência da economia vem se valendo da figura hipotética do homem que
racionaliza o mundo apenas segundo o próprio interesse, apartando-o das
concepções éticas, morais, religiosas e até psicológicas. O que impulsiona o
assim chamado homo economicus é o desejo de maximizar a sua riqueza com o menor
esforço possível[v]. Alinhado à figura do homo economicus surge o homem
utilitarista de Jeremy Bentham[vi], sim, aquele mesmo que criou o Pan-óptico.
Utilitarismo parte do
pressuposto de que as pessoas tomam as suas escolhas sempre com vistas a
maximizar o prazer ou evitar a dor, e por isso ele aceita como moralmente
válido toda ação tendente à maximização da felicidade de seu autor[vii].
Ainda assim, não se pode
resumir a sociedade capitalista à figura do homo economicus ou do homem
utilitarista, pois assim como uma pessoa pode guiar-se por outros valores que
não apenas o auto interesse – e na prática é bem isso que ocorre, como
lembra Amartya Sen[viii] –, nada impede que uma sociedade encampe ao sistema
econômico capitalista outras concepções morais e políticas por meio da adoção
de princípios como o da dignidade humana, da igualdade de oportunidades e da
solidariedade, como, aliás, fez expressamente a nossa Constituição de 1988[ix].
A conciliação entre a lógica
do lucro ou do benefício próprio com outros valores morais vai depender, mais
do que qualquer outra coisa, de uma escolha a ser feita pelo indivíduo ou pela
própria sociedade.
Tal escolha nem sempre é
fácil, sobretudo porque as situações reais são um tanto nebulosas e até
paradoxais. Veja-se o caso do Corona vírus: ele pode colapsar o sistema de
saúde e até levar a óbito uma pequena parcela da população. Para que nem um,
nem outro, ocorram, os governos adotaram medidas que restringiram severamente a
circulação das pessoas, chamadas popularmente – ou impopularmente – de
“quarentenas”.
Mas essas medidas, e não o
vírus, causam um terceiro efeito social, que é a estagnação das trocas de
mercado, com a consequente crise e recessão da economia. Essa situação de crise
provoca o desemprego como quarto efeito, que por sua vez ocasiona, como quinto
efeito, a fome, desnutrição, doenças e, de novo, a morte de pequena parte da
população.
Em última análise, temos um dilema:
escolher entre a morte de parte da população como o efeito mais nefasto, embora
inevitável, do Corona vírus ou a morte de uma parcela da população ainda mais
empobrecida pela quarentena.
Será?
Vamos traçar agora um paralelo
entre a situação imposta pelo Corona vírus e a distopia apresentada no filme “O
Poço”. No filme, as pessoas que estavam nos andares de cima serviam-se de uma
bandeja com fartura de alimentos. Na vida real, dada a estrutura vertical da
renda e da riqueza[x], a quarentena faz com que as famílias que estejam nos
andares superiores também tenham um banquete farto, em algumas até opulento,
mas as que estejam nos andares inferiores tenham escassez e até ausência de
comida.
Para que essa escassez não
ocorra, ouvimos alguns políticos e até economistas argumentarem que proteger as
pessoas neste momento é acabar com a quarentena para que elas possam trabalhar.
Também dizem que são as próprias pessoas que querem sair de casa para poder trabalhar,
afinal não pretendem ficar sem comida. Contudo, se pensarmos bem, talvez eles
“queiram” trabalhar tanto quanto os personagens do filme “queriam” praticar o
canibalismo para não morrer de fome. Querer e precisar são coisas bem
diferentes.
Não podemos incorrer, ainda
que de boa-fé, na falta de responsabilidade que Ronald Dworkin atribui a um
peculiar processo de racionalização[xi]: quando a pessoa acredita
sinceramente que seu raciocínio é conduzido por algum princípio moral, mas que,
na prática, perde a força quando ela mesma é confrontada.
No exemplo do próprio autor,
isso ocorre quando ela acredita que cada indivíduo é o único responsável pelo
próprio destino e por isso vota em políticos que prometem extinguir os
programas de previdência social, ao passo que pede aos mesmos políticos que,
numa situação de crise, socorram sua empresa com dinheiro público.
De fato, não é incomum vermos
pessoas que advogam o liberalismo econômico repudiarem o Estado social, ao
passo que se valem das universidades públicas ao invés de custear o estudo de
seus filhos. Devemos ter clareza moral para nos apercebermos de que aquilo que
queremos para nós também é o que as outras pessoas provavelmente querem para
elas.
Com isso em mente, o que cada
um pode fazer para amenizar os efeitos da distópica quarentena vai depender da
resposta a uma simples pergunta: em qual andar você está?
Dr Davi Nogueira Lopes -
Advogado (Foto: Arquivo Pessoal)
Davi Nogueira Lopes. Mestrado
em Direitos Humanos pela UFMS. Pós-Graduação Lato Senso em Direito
Constitucional pela PUC/SP. Advogado sócio do Lima, Pegolo e Brito Advocacia.
[1] Artigo publicado
originalmente no site JOTA, em 27/04/2020. Disponível em:
<https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-poco-a-moralidade-diante-da-distopia-27042020>
[i] O POÇO. Filme original
Netflix. 2019. Direção: Galder Gaztelu-Urrutia. Elenco: Ivan Massagué, Zorion
Eguileor, Antonia San Juan. Nacionalidade: Espanha. Série exibida pela Netflix.
Acesso em: 13.04.2020.
[ii] BENTHAM, Jeremy. Teoria
das penas legais e tratado dos sofismas políticos. São Paulo: EDIJUR, 2002.
[iii] SMITH, Adam. A riqueza
das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas. Vol. I. Tradução de
Luiz João Baraúna. São Paulo: Ed. Nova Cultural Ltda., 1996.
[iv]. _____________. Teoria
dos sentimentos morais. Tradução de Lya Luft. Revisão de Eunice Ostrenkdy. 2ª
ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2015. Edição do Kindle. Ebook.
[v] HUNT, Emery Kay;
LAUTZENHEISER, Mark. História do pensamento econômico. Tradução de André Arruda
Villela. 3. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013.
[vi] BENTHAM, Jeremy. Uma
introdução aos princípios da moral e da legislação. São Paulo: Abril S/A, 1974.
[vii] SANDEL, Michael.
Justiça: o que é fazer a coisa certa. Tradução de Heloisa Matias; Maria Alice
Máximo. 13. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
[viii] SEN, Amartya. A ideia
de justiça. Tradução de Denise Bottmann e Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011.
[ix] BRASIL. Constituição
(1988) Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>.
Acesso em: 13/04/2020.
[x] PIKETTY, Thomas. O capital
no século XXI. Tradução de Monica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Ed.
Itrínseca Ltda., 2014.
[xi] DWORKIN, Ronald. A raposa
e o porco-espinho: justiça e valor. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São
Paulo: WMF Martins Fontes, 2014.
“O POÇO” CARREGA CRÍTICAS SOCIAIS E FORTE SIMBOLISMO RELIGIOSO
O
suspense espanhol O Poço, dirigido
por Galder Gaztelu-Urrutia, é uma grande alegoria para a sociedade na qual
estamos inseridos. Urrutia incluiu generosas doses de críticas sociais e
referências religiosas para impactar os espectadores, além do horror gore calculado
na medida.
Um dos diferenciais desse filme
é que são apresentadas bem mais perguntas do que respostas. São várias formas
de interpretar o que foi mostrado na tela, o que incentiva o debate entre o
público para enriquecer ainda mais a experiência.
Essa característica já coloca O
Poço na mesma prateleira de filmes como Mãe!,
de Darren Aronofsky, e O Homem Duplicado, de
Denis Villeneuve, por exemplo. Filmes que melhoram à medida que conversamos
sobre eles e compartilhamos as experiências individuais.
A HISTÓRIA
O Poço acompanha
Goreng (Ivan Massagué), um homem que acorda em uma espécie de prisão vertical.
À medida que conversa com seu companheiro de andar, ele vai descobrindo mais
detalhes de como funciona o lugar.
Todos os andares comportam dois
ocupantes e possuem um vão no centro, por onde diariamente desce uma plataforma
cheia de comida. O banquete fica disponível por apenas dois minutos antes de
descer para o próximo nível. Nessa dinâmica, quem está abaixo come o que restar
dos andares superiores – e quanto mais baixo, menos vai sobrar.
O problema é que os presos trocam de andar aleatoriamente a cada mês. Se você está em uma posição alta hoje, pode ir para uma mais baixa depois. Isso desperta os sentidos mais primitivos nas pessoas.
AS METÁFORAS
Duas questões são óbvias na
interpretação do roteiro de David Desola e Pedro Rivero. A primeira é o
paralelo com a realidade dos sistemas econômicos atuais.
O protagonista, Goreng, entra
no Poço sem saber como o local funciona e rapidamente entende a melhor forma de
resolver o problema de falta de comida para os andares mais baixos: se cada um
comer apenas o que precisa, vai ter para todo mundo. Mas vai convencer o
pessoal mais alto a fazer isso…
O filme explora muito bem a
natureza egoísta do ser humano e como ela se sobrepõe à lógica. O instinto de
comer o máximo que conseguir por estar em uma posição privilegiada simplesmente
apaga da equação o fato de que essas mesmas pessoas podem ficar lá embaixo no
futuro. Eles preferem abraçar a selvageria que se torna passar um mês em jejum
do que compartilhar com o próximo. Na vida real é a mesma coisa, mas com
dinheiro no lugar da comida.
A fala de um dos companheiros
de cela de Goreng é impactante:
SÓ HÁ TRÊS TIPOS DE PESSOAS: AS DE CIMA, AS DE BAIXO E AS QUE
CAEM.
O alpinismo social não existe
em O
Poço porque as leis – inclusive a gravidade – não permitem. O
Poço é cruel e corrompe até as melhores pessoas que entram lá. Nesse sentido, a
mensagem anticapitalista era clara, mas também havia um contraponto, segundo o
próprio diretor.
Em entrevista ao Digital Spy, ele
lembrou que outras ideologias também não foram tão eficazes no Poço. “Nós
certamente pensamos que deve haver uma melhor distribuição de riquezas, mas o
filme não é estritamente sobre o capitalismo”, disse Gaztelu-Urrutia. “Talvez
haja uma crítica ao capitalismo no começo, mas nós mostramos que, assim que
Goreng e Baharat começam a usar o socialismo para convencer os outros
prisioneiros a compartilhar a comida, eles acabam matando metade das pessoas
que tentaram ajudar”.
“No fim, o problema surge quando
você tenta exigir a colaboração de todos e vê que não há nenhuma conquista no
final. Goreng faz o que planejou, levando a panacota e a criança até o último
nível, mas ele não mudou a opinião de ninguém sobre compartilhar a comida”,
concluiu.
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