CULTURALISMO, HISTÓRIA E NORMATIVISMO: A ARTE DE FAZER DIREITO NA MESOPOTÂMIA E NO EGITO ANTIGO Rogério de Araujo e Lucas Cavalcante
As formas por meio das quais o direito se apresenta são delineadas no e pelo processo histórico. Para entendê-las é preciso conhecer a cultura dos povos numa relação espaço-temporal. Por isso, a Teoria do Culturalismo Jurídico permite-nos vislumbrar o Direito em sua inter-relação necessária com a História.
A relação entre o Direito e a História tem sido de
há muito explorada, sem a preocupação, por nós considerada acertada, de
estabelecer qualquer critério de subordinação ou dependência entre os fenômenos
histórico e jurídico, mas sim uma relação de interdependência sob o enfoque
normativo. Isso não significa que o tema seja pacífico e desprovido de divergências
doutrinárias, sobretudo no que se refere ao mundo do Direito. Pretendemos,
neste artigo, discutir a Teoria do Culturalismo Jurídico a partir do estudo
concreto do direito vigente na Mesopotâmia e no Egito Antigo, por se entender
que ela permite compreender uma forma de pensar o Direito que mais se aproxima
da História, sem prejuízo de outras que venham estabelecer tal relação.
Com vistas à compreensão do Direito, muitas teorias
ocuparam e ocupam lugar de destaque, dentre as quais uma que, ao nosso entender,
se sobreleva por buscar na História a explicação para o processo de
surgimento e desenvolvimento dos aspectos normativos que imprimem uma conduta
aos indivíduos em sociedade. Tal teoria é denominada de Culturalismo Jurídico.
O culturalismo Jurídico localiza o direito no mundo
da cultura, encarando-o como a resultante de um processo criativo dos
indivíduos, tendente a adicionar às coisas, materiais ou imateriais, um
significado com vistas a aperfeiçoá-las (homo additus naturae).
Dentre os defensores do Culturalismo Jurídico
no Brasil, destaca-se Miguel Reale, para quem o direito resulta da
conjugação dos fatos e dos valores, que podem ou não alçar um acontecimento do
cotidiano ao status de "conduta a ser observada"
(por meio de uma norma).
Das características apontadas resumidamente
acima se pode chegar a pelo menos duas conclusões que reforçam a teoria do
Culturalismo Jurídico, aqui analisada sob a óptica da interdependência entre a
História e o Direito, que são:
a) que a conduta humana se desenvolve em um contexto
bilateral ou multilateral, historicamente estabelecido;
b) que os fatos se dão no seio da sociedade e são
valorados, em regra, conforme o momento histórico vivido por ela.
Nesse sentido, é acertada a síntese conclusiva de
Miguel Reale (apud DINIZ: 2005, p.143), ao enunciar que:
[...] A ciência do direito é uma ciência
histórico-cultural e compreensivo-normativa, por ter por objeto a experiência
social na medida, enquanto esta normativamente se desenvolve em função de fatos
e valores, para a realização ordenada da convivência humana.
Há de se perceber que o autor dá primazia ao
caráter histórico, pois a cultura, ela mesma, é forjada no devenir histórico, e
o direito, como objeto cultural, nasce nesse contexto, donde se pode afirmar
que o mesmo se fez presente tantas vezes e em quaisquer sociedades que o
estabelecera, quer seja para determinar condutas, que seja para solucionar
conflitos. Na Mesopotâmia e no Egito Antigo não haveria de ser diferente, mas
com suas características próprias e seus institutos específicos, o que se passa
a verificar doravante.
A análise do fenômeno jurídico nas referidas
civilizações serve-nos de constatação ao mostrar o Direito enquanto uma
produção humana. Ele constitui-se, portanto, como um artefato produzido para
atender a necessidades sociais, posto fazer parte do mundo da cultura. Este,
cognominado também como o "Mundo das Finalidades" (POLETTI, 1996,
p.80), diz respeito à produção acrescida à natureza do indivíduo e,
concomitantemente, da coletividade. Desta feita, a cultura pode ser
conceituada, nas palavras de Maria Helena Diniz, como o "complexo de
adaptações e ajustamentos feitos pelo homem, para que as coisas sirvam aos fins
humanos" (1999, p.132). Por tudo isso, se pretendemos conhecer o Direito
de uma sociedade necessário é entender sua cultura.
No Egito Antigo a manifestação do dever ser estava
umbilicalmente ligado à moral, à religião e à
magia. Os princípios morais orientavam tanto o elaborador quanto o aplicador da
norma. Esta era legitimada pela crença de que emanava da divindade, e a conduta
contrária à prevista era considerada não só antijurídica, mas também herética,
pois assim descumpria-se a vontade dos deuses.
A arte de fazer direito era mágica assim como sua
interpretação e aplicação. Ritualística tal qual a cultura jurídica
mesopotâmica, o Direito entre os egípcios seguia sob o símbolo de Maet. Esta,
conforme explica Antônio Brancaglion Junior, é uma "ordem moral e cósmica
que abrangia as noções de ‘verdade’, ‘justiça’, ‘equilíbrio’ e ‘ordem’,
personificada como uma deusa, filha do deus-sol [Rá ou Ré]" (2004, p.59).
Este princípio divino de ordem protegia a sociedade do caos e da destruição.
Não é àtoa que o controle onipresente de Maet (ou Maat) era tido como a razão
para o Egito ter-se constituído como o mais duradouro império da antiguidade
oriental, quando por volta de 3.000 a.C. constituiu-se como Estado soberano e
unificado, sob méritos de Menés.
Esta simbologia, também compreendida como um
princípio jurídico e filosófico, atuava não só entre os vivos como também na
vida post mortem. Ela "é protagonista da maior importância no
julgamento dos mortos, no Tribunal de Osíris; [era] colocada na balança para
equilibrar o coração do julgado" [CUNHA: (s.d.), p.13].
Na MESOPOTÂMIA o campo jurídico
restringia-se à experiência em vida, até porque os mesopotâmicos não
acreditavam na vida pós-morte. No EGITO a experiência pós-túmulo também
pretendia o controle da ordem, pois na cultura egípcia acreditava-se que o
mundo dos vivos e o mundo dos mortos mantinham estreita relação. Se porventura
a desordem reinasse numa dessas dispensações, a outra parte poderia ser
afetada. Daí porque Maat está tanto num quanto noutro mundo para manter o
equilíbrio na inter-relação entre ambos.
A normatividade pré-jurídica da Civilização do
Nilo, além de ser indissociável do mito e da religião, também se mostra
sintonizada com o poder. A cultura jurídica desse povo favorecia o domínio do
Estado sobre o indivíduo e, por consequência, do social, pois, como esclareceu
Weber, a sociedade é feita de indivíduos portadores da unidade compreensível da
ação que mantém referência à conduta de outrem (WEBER: 1991 p. 3). A
sacralidade do Direito egípcio garantiu aos faraós longos anos de reinado com
raros períodos de turbulência. A organização político-religiosa do Império
consagrava o rei como uma espécie de divindade. Ele era a principal fonte do
Direito e da religião. Desobedecê-lo era conduzir-se contra os deuses e
ignorar a ordem, a justiça e a verdade (Maet). A promulgação de uma sentença
não carecia de apelação haja vista ter-se definido em cooperação com os deuses,
onipresentes e oniscientes. Eles veem tudo e igualmente sabem de tudo; logo,
suas decisões são verdadeiras e justas. Mas esta constatação não pode ocultar o
fato de que possivelmente em algumas situações uma decisão jurídica tenha sido
questionada e o réu tenha solicitado o veredicto do próprio Faraó. O poder
divino dessa figura podia ser considerado a "Constituição" do Egito
Antigo. Daí porque para uma segurança jurídica ele deveria ser evocado.
O Vizir era o principal encarregado de aplicar a
lei. Esse era o título dado ao bem-aventurado que era concomitante sacerdote da
deusa Maat e funcionário real, incumbido de ser juiz na solução das lides.
Como esclareceu Cristiano Pinto, "a jurisdição
era titularizada pelo Faraó que poderia, a seu critério, delegar funcionários
especializados para a tarefa de decidir questões concretas" (2002, p.52).
Como não havia um código sistematizado de leis escritas, tal qual o Código de
Hamurábi, o guia para orientar o aplicador do direito consistia basicamente nas
prescrições do rei para o plano do sollen (dever ser) e nas
instruções para o campo do sein (ser). Muito mais que isso, o
corpo das decisões dos especialistas (chamados não só a aplicar a norma, mas
também a pensar sobre o próprio fenômeno jurídico) contava no momento do
julgamento e constituída conteúdo de novas normas. Ou seja, dado um fato novo
seria submetido a uma valoração subjetiva, no que resultava em proposições
normativas objetivadas. É a dialética da polaridade do tridimensionalismo de
Miguel Reale: Fato, Valor e Norma numa relação dinâmica.
Ademais, também se desenvolveu no Egito, como
produto cultural, um sistema de leis baseadas no costume. Desde o período
pré-dinástico (5.500-3.050 a.C) o direito costumeiro teve sua importância a
ponto de posteriormente se impor até mesmo ao Faraó. "No Egito, então,
havia um direito consuetudinário (a permanência do "ontem eterno",
como diria Weber [01]) e corpos de leis, orientados de acordo
com a determinação do soberano" (NASCIMENTO, 2002, p. 21). O Rei era o
juiz supremo e poderia julgar qualquer questão. Mas também havia "juízes
singulares, que julgavam as causas menores, e um tribunal composto de 31
membros, que julgava as causas mais importantes" (ibidem, p.122). O povo
egípcio concebeu essa forma jurídica que foi o retrato de sua época, espaço e
cultura. Não só isso, mas a própria forma daquela civilização enxergar o mundo
circundante. Nesse sentido, pode-se inferir que "O direito será sempre uma
manifestação cultural. Inserido invariavelmente no mundo da cultura, ele
implica, nessa vocação para a ordem, a cosmisação do mundo"
(POLETTI,1996, p.85)
Na Mesopotâmia encontraremos um direito menos
fragmentário e uma ideologia normativa mais consolidada. Naquela região banhada
pelos rios Tigres e Eufrates desenvolveu-se não uma civilização, mas
civilizações das quais as mais importantes foram os sumérios e acádios
(2.800-2.000 a.C), paleobabilônio (amoritas; 2000-1600 a.C), assírios (1300-612
a C) e neobabilônios (caldeus; 612-539 a.C). Caracterizada por um território frequentemente
invadido e de uma instabilidade política, Ciro, em 539 antes de nossa era,
comandou os persas na invasão e domínio definitivo sobre a região.
No que tange à cultura (na qual está inserido o
direito) sua essência não foi destruída pelos invasores, tendo estes na verdade
incorporado-a às suas próprias expressões culturais. O sistema jurídico
mesopotâmico, por exemplo, apresentou uma influência para muito além de sua
época e espaço. Para se ter idéia, muitas das questões normativizadas no nosso
atual Código Penal estabelecem uma equivalência comparativa com o Código de
Hamurábi: o papel da testemunha; o furto; a difamação; o estrupo; a vingança
etc. Este código jurídico antigo, promulgado aproximadamente em 1750 a.C,
compõe-se de três partes: introdução, texto propriamente dito e conclusão. Há
nos 282 artigos determinações respeitantes aos delitos, à família, à
propriedade, à herança, às obrigações, muitos artigos de direito comunitário e
outros relativos à escravatura. Essas leis defendiam, especialmente, os
direitos e interesses de cúpula da sociedade babilônica. Esta, à época de Hamurábi,
estava dividida em três classes sociais: Awilum (homens
livres, cidadãos); Muskênum (funcionários públicos); Wardum (escravos,
prisioneiros de guerra). No topo da pirâmide social estava o Imperador e sua
família, seguidos pelos nobres, sacerdotes, militares e comerciantes. Artesãos,
camponeses e escravos compunham as camadas não privilegiadas. O direito, nesse
contexto, objetivava manter a ordem estabelecida e garantir a permanência da
estrutura sócio-política das Cidades-Estado. Haja vista a divisão da sociedade
em classes e o desejo de poder dos líderes políticos, não seria difícil
constatar o princípio da desigualdade perante a lei. Mas não podemos esquecer
que este conjunto de leis sistematizadas apresentou algumas tentativas
primeiras de garantias dos direitos humanos. Vale aqui a anotação de Walter
Viera do Nascimento de que no sistema babilônico a posição da mulher na
sociedade já lhe concedia direitos equiparados aos do homem (2002, p.23).
"O legislador babilônico consolidou a tradição jurídica, harmonizou os
costumes e estendeu o direito e a lei a todos os súditos [02]".
Outros estudiosos preferem afirmar que o referido rei foi não o legislador, mas
o compilador:
Tudo indica, na verdade, que se trata de uma grande
compilação de normas anteriormente dispostas em outros documentos e de decisões
tomadas em casos concretos, que serviram de base para a elaboração dos artigos
(PINTO, 2002, p.48).
De uma ou de outra forma o certo é que esse sistema
jurídico serviu de orientação aos aplicadores do direito e manteve por um
considerável período a coesão social. Como destacou Jayme de Altavila (2001,
p.59), o rei jurista deixou em seu código muita punição, muita justeza e muito
rigor. Dada a inexistência da gradação da pena, crimes das mais diversas espécies
(uns menos outros mais graves) eram punidos com a pena de morte, e a lei de
talião ("olho por olho e dente por dente") era o princípio básico que
regia a aplicação das leis. Mas em tudo a finalidade é fazer justiça, ou nas
palavras do próprio Hamurábi, registradas no preâmbulo de seu código,
"trazer justiça à Terra" (apud GAVAZZONI, 2005, p.34).
CONCLUSÕES
Se no Egito a deusa Maat simbolizava a justiça e a
verdade, na Mesopotâmia esse papel era desempenhado por UTU (Shamasch em
acádio) [03], o deus do Sol e da justiça. O conjunto de leis do
rei Hamurábi não foi o mais antigo já descoberto. "Ao longo dos três
milênios de história, os mesopotâmicos criaram os mais antigos códigos de leis
conhecidos: Ur-Nammu (2100 a.C); Lipit-Istar (1930 a.C); Leis de Esnunna (1800
a.C); e o Código de Hamurábi (1750 a.C), sendo os dois primeiros escritos em
sumério e os dois últimos em acádio" [POZZER, (s.d.), p.12].
A arte de fazer direito na Mesopotâmia também se
caracterizou pelos aspectos simbólicos da cultura jurídica da região. Assim
como no Egito, a sacralização da justiça mesopotâmica ou ainda a expressão
jurídica do sagrado permitiu a interconexão entre o Universo Jurídico (da
esfera real) e o Universo Sobrenatural (da esfera mágica), representadas por
suas práticas marcadas por essa íntima ligação. Marcelo Rede [04] apresenta
como os principais elementos simbólicos: o juramento em nome dos deuses,
entendidos como a fonte do direito; e o ordálio, um ritual em que a pessoa
mergulha no rio [05] para ser julgada: se sobrevivesse,
era inocente; se morresse afogada, era culpada e recebia o castigo merecido
(2006, p. 2 a 3). Por vezes a solução das lides era remetida ao julgamento
divino. Mas a Assembléia dos magistrados (UNKIN em sumério e puhrum em
acádio) tinha competência para julgar os casos civis, penais, políticos ou
administrativos. Dessa assembléia também participavam membros do Conselho de Anciãos
da cidade e cidadãos comuns. "Os juízes eram homens letrados, que teriam
freqüentado a escola dos escribas." [POZZER, (s.d.), p.3]. Eles eram
chamados de DIKU e não eram remunerados, recebiam apenas presentes (sulmânu)
das partes requerentes.
Muitas outras considerações poderiam ser feitas,
mas as já apresentadas são suficientes para compreendermos que as formas por
meio das quais o direito se apresenta são delineadas no e pelo processo
histórico. Para entendê-las é preciso conhecer a cultura dos povos numa relação
espaço-temporal. Por isso, a Teoria do Culturalismo Jurídico permite-nos
vislumbrar o Direito em sua inter-relação necessária com a História.
REFERÊNCIAS
ALTAVILA, Jayme de. Origem do Direito dos Povos. 9 ed. – São
Paulo: Ícone, 2001;
CUNHA, Paulo Ferreira. Sob o signo de Maet: considerações
sobre o direito no antigo Egipto. (contexto, mito e sentido de um momento
político-sacro-normativo). [s.l.:s.n.], [s.d.]. Disponível em: <
http://www.ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros >. Acesso em: 10 ago. 2008;
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do
Direito. 11 ed. atual. – São Paulo: Saraiva, 1999;
GAVAZZONI, Aluísio. História do Direito: dos sumérios até
a nossa era. 2 ed. atual. e aum. – Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2005;
JUNIOR, Antônio Brancaglion. Manual de Arte e Arqueologia do
Egito Antigo II. Rio de Janeiro: Sociedade dos Amigos Museu Nacional, 2004;
NASCIMENTO, Walter Vieira do. Lições de História do Direito.
14 ed., ver. e aum. – Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2002;
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