quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

HUMANIZAÇÃO EM SAÚDE

A humanização dos serviços de saúde se faz necessária considerando que nos serviços de saúde há situações "desumanizantes". São apontados, em todas as décadas, muitos aspectos considerados "desumanizantes", relacionados a falhas no atendimento e nas condições de trabalho. Em relação a falhas na organização do atendimento são apontadas, por exemplo, as longas esperas e adiamentos de consultas e exames, ausência de regulamentos, normas e rotinas, deficiência de instalações e equipamentos, bem como falhas na estrutura física: "(...) espera às consultas e à entrada, nas admissões em tempo dilatado, nos adiamentos impostos aos exames e aos tratamentos, no amontoado humano dentro das salas
São também enfatizados aspectos "desumanizantes" ligados especificamente com a relação com o doente como o anonimato, a despersonalização, a falta de privacidade, a aglomeração, a falta de preparo psicológico e de informação, bem como a falta de ética por parte de alguns profissionais: "O doente é um número, um caso, objeto de atividades, mas não um centro de interesse; permanece geralmente sem esclarecimentos sobre a própria sorte e sem explicação sobre o que lhe é imposto"(4).
Ao não se dar conta onde termina a máquina e começa o paciente, a relação com a máquina pode tornar o cuidado de enfermagem um ato mecânico e o paciente ser visto como uma extensão do aparato tecnológico [refere-se ao atendimento em CTI](5).
No que diz respeito às condições de trabalho, os textos mostram que baixos salários, dificuldade na conciliação da vida familiar e profissional, jornada dupla ou tripla, ocasionando sobrecarga de atividades e cansaço, o contato constante com pessoas sob tensão geram ambiente de trabalho desfavorável: "As instituições não oferecem um ambiente adequado, recursos humanos e materiais quantitativos e qualitativos suficientes, remuneração digna e motivação para o trabalho, oportunidade para os enfermeiros se aperfeiçoarem em sua área de atuação (...) para que estes possam exercer as suas funções de uma forma mais humanizada.
A racionalização, a mecanização e a burocratização excessiva do trabalho, ao impedirem que o trabalhador desenvolva sua capacidade crítico-criativa, atuam como "desumanizantes", na perspectiva de alguns autores. Esse modo de organização do trabalho está presente na modalidade funcional, muito utilizada na enfermagem, cuja ênfase é na realização de tarefas fragmentadas, perdendo de vista o paciente na sua totalidade:o paciente deixa de ser uma pessoa para ser um caso interessante (uma úlcera, uma estenose mitral, etc...) ou um número. Com freqüência a enfermagem planeja e distribui tarefas em função do número de banhos de leito, curativos, inalações etc... O paciente individualizado, com seus problemas, temores e necessidades, não é sempre levado em conta .
Humanização emerge como necessidade no contexto da civilização técnica. As situações "desumanizantes" presentes nas instituições de saúde fazem parte do contexto mais amplo da civilização moderna, segundo alguns autores.
Muitos textos, ao longo dos anos, mostram a importância da humanização, confrontando-a com o desenvolvimento tecnológico na sociedade atual. Ou seja, considera-se que o desenvolvimento tecnológico vem dificultando as relações humanas, tornando-as frias, objetivas, individualistas e calculistas: Pela técnica, o homem projeta e realiza coisas impossíveis no campo da física, eletrônica, medicina. Com isto modifica-se a relação homem-mundo. Torna-se indireta. Deixa de ser concreta e passa a ser um tanto abstrata, pois, o cálculo, os aparelhos tomam conta. Daí o risco de o relacionamento homem-homem também tornar-se calculista, de aparelho, de fórmula, frio, pouco humano.
A maioria dos textos das décadas de 50, 60 e 70, ao se referirem ao confronto tecnologia x humanização, compreendem a humanização como uma possibilidade de resgatar valores caritativos/religiosos. Ainda nessas décadas, no contexto da enfermagem, é também valorizado "o interesse humano pelo próximo", em uma lógica caritativa: "Nessa conjuntura [sociedades atuais] enquadram-se muitos dos aspectos da atividade de enfermagem, especialmente aqueles ligados à ação da própria vontade dirigida pela sensibilidade afetiva - amor, pena, compaixão - que se vão embotando para dar lugar a uma racionalização - mais condizente com a mecanização da época atual.
Apesar da idéia predominante de confronto entre tecnologia e humanização, também é mencionado que ambas podem ser conciliadas: não existe incompatibilidade ou antagonismo entre ciência e ideal, entre humanização e racionalidade. Portanto, deve-se procurar crescente adequação da ciência ou racionalidade como meio para se atingir um mundo cada vez mais humano.
A compreensão da humanização está relacionada a um modo de perceber o paciente no contexto dos serviços de saúde
Há um discurso que enfoca a situação de fragilidade e vulnerabilidade vivida pelo doente, considerando seu afastamento das atividades profissionais e familiares, a dor física e psicológica: O doente que já está à margem da vida da comunidade, da atividade profissional e da vida de família, sofre a dor física, o medo da morte, inquietude pelos entes queridos, preocupação pelo futuro, sentimentos de inferioridade.
Em alguns textos da década de 70, essa fragilidade parece ser enfocada de um modo que enfatiza ainda mais a dependência do paciente, visto com sentimento de piedade:O doente continuará a ser fraco, dependente, sofredor no seu corpo e no seu espírito.
É também comentado que, ao ser admitido na instituição de serviço, o paciente permanece com seus sentimentos, suas idéias, enfim, com sua história de vida, devendo ser mantido um elo com seu meio familiar e social, enfocando-o como um todo.
Cabe ressaltar que um texto do ano 2000 refere-se ao usuário do serviço de saúde como sujeito: "(...) Humanizar significa reconhecer as pessoas que buscam nos serviços de saúde a resolução de suas necessidades de saúde, como sujeitos de direitos (...) é observar cada pessoa em sua individualidade, em suas necessidades específicas, ampliando as possibilidades para que possa exercer sua autonomia (...)"(12).
Humanização relacionada à organização do serviço de saúde, envolvendo investimento na estrutura física da instituição e na revisão de estrutura e métodos administrativos
Face às situações "desumanizantes", os textos mostram possibilidades de modificá-las através do investimento na estrutura física e nos métodos administrativos da instituição, bem como no trabalhador em relação às condições de trabalho.
Alguns textos das décadas de 50, 60 e 70 enfocam, com muita ênfase, a necessidade de humanizar os serviços de saúde, especificamente hospitalares, relacionando-a à organização do serviço em termos de investimento na sua estrutura física. E também são feitas considerações sobre a arquitetura, o mobiliário, os equipamentos, como elementos fundamentais: "A arquitetura, o acabamento, as dimensões das unidades de serviço, das unidades de Enfermagem, posição e tamanho dos quartos, a localização, o tamanho e acabamento das salas de estar são alguns itens importantes no que diz respeito à parte física, muito influentes no preparo num ambiente hospitalar humano"(8).
A revisão de estrutura e métodos administrativos é outro aspecto apontado, porém, com menor ênfase.
Humanização implica também investir no trabalhador para que ele tenha condições de prestar atendimento humanizado
É priorizada a importância do trabalhador como elemento fundamental para a humanização do atendimento, devendo ser implementadas ações de investimento em termos de número suficiente de pessoal, salários e condições de trabalho adequadas, bem como atividades educativas que permitam o desenvolvimento de competência para o cuidar.
Em se tratando do trabalhador, em alguns textos das décadas de 60, 70 e início da década de 80, são feitos comentários a seu respeito, incluindo a enfermeira e o médico, com destaque para algumas características que esses trabalhadores devem possuir para reponder por suas atividades, cabendo ressaltar que muitas dessas características têm um cunho caritativo: "(...) Por sua presença, sua doçura, pela repetição de pequenos atos infinitamente delicados, por sua compaixão e seu sorriso (...) a enfermeira reconforta, acalma ou estimula o doente trazendo-lhe esse calor humano insubstituível (...)"(4).
Ao ser dada ênfase no trabalhador, como elemento fundamental para a humanização, são também apontados alguns "meios" mais subjetivos relacionados à atitude profissional, para humanizar o atendimento em saúde. A humanização é pouco abordada no processo de formação. Além disso, admite-se a dificuldade em ensinar "humanização" nas relações interpessoais, considerando as questões subjetivas que se fazem presentes como, por exemplo, a sensibilidade.
A humanização insere-se em um projeto político de saúde.Cabe ressaltar que até a década de 80, o modelo de assistência à saúde no país era centrado no atendimento curativo, especializado, individual, tendo como principal espaço para as ações de saúde, o hospital. Além disso, não se constituía como direito de todos. A partir do movimento da reforma sanitária, nos anos 80, começa a se delinear um novo projeto de saúde que passa a valorizá-la como direito de todo cidadão a ser garantido pelo Estado, envolvendo princípios como a eqüidade do atendimento, a integralidade da atenção e a participação social do usuário.
Desse modo, ao longo desses anos, a temática humanização vem se constituindo, no contexto de saúde, desde uma perspectiva caritativa até a preocupação atual com a valorização de saúde como direito do cidadão. Até o início da década de 80, mostram um discurso idealizado que denota uma percepção do doente como ser frágil e dependente. Nessa condição, o doente parece despertar piedade dos trabalhadores, sendo valorizada algumas características que os profissionais devem possuir para terem condições de prestarem atendimento humano em saúde como, por exemplo, doçura, compaixão, espírito de caridade, capacidade para perdoar, desprendimento, sendo até enfocado que são privilegiados e escolhidos por Deus.
Nesse discurso, revela-se a dimensão caritativa da humanização em saúde, cabendo salientar que, na enfermagem, esse discurso construiu-se historicamente, a partir de nossas origens caritativas.A valorização do doente/usuário do serviço de saúde como sujeito de direitos, capaz de exercer sua autonomia, é abordada nos textos mais atuais (década de 90 aos dias atuais), revelando uma idéia de humanização distinta da lógica da caridade, anteriormente mencionada, compreendendo-a como a possibilidade de dar condições para que o usuário seja participante. Partilhar das decisões é um caminho para implementar o princípio ético da autonomia dos indivíduos e da coletividade).
Humanizar a relação com o doente realmente exige que o trabalhador valorize a afetividade e a sensibilidade como elementos necessários ao cuidar. Porém, compreendemos que tal relação não supõe um ato de caridade exercido por profissionais abnegados e já portadores de qualidades humanas essenciais, mas um encontro entre sujeitos, pessoas humanas, que podem construir uma relação saudável, compartilhando saber, poder e experiência vivida. Ter sensibilidade para a escuta e o diálogo, mantendo relações éticas e solidárias, envolve um aprendizado contínuo e vivencial, pouco enfatizado no ambiente de trabalho, levando-se em conta, ainda, o predomínio de estruturas administrativas tradicionais, rígidas e burocratizadas.
As propostas de humanização em saúde também envolvem repensar o processo de formação dos profissionais ainda centrado, predominantemente, no aprendizado técnico, racional e individualizado, com tentativas muitas vezes isoladas de exercício da crítica, criatividade e sensibilidade.
Os conhecimentos sobre a natureza humana e o desenvolvimento de atitudes de valorização do homem são fundamentais para a humanização, sendo prioritário que os currículos incluam conteúdos relativos aos aspectos psicológicos, sociológicos e antropológicos na área da saúde. As matérias humanísticas podem contribuir na busca por novas abordagens em saúde.
Ressaltamos, contudo, que não basta a inclusão desses conteúdos, mas repensar a maneira como são articulados à prática para que façam sentido ao aluno.
Em todas as décadas, há alguns textos que fazem referência à humanização em saúde relacionando-a à questão da tecnologia, seja contrapondo-as ou conciliando-as. Esse discurso é limitante ao idealizar a humanização como "aquilo que é bom" e repudiar a tecnologia como impeditivo à possibilidade de humanização. "Ser humano", entretanto, não é algo idealizado. Como humanos podemos constituir ações "humanizantes" que consideram o outro em seus direitos, em sua singularidade e integralidade; enfim, em sua dignidade e, ao mesmo tempo, somos capazes também de constituir ações "desumanizantes" que "coisificam" o outro ou nós mesmos. Além disso, a tecnologia pode ser compreendida de forma ampliada(19): a tecnologia representada por máquinas e aparelhos (tecnologia dura), a tecnologia que engloba o saber profissional que pode ser estrutura e protocolizado (tecnologia leve-dura) e a tecnologia leve que se refere à cumplicidade, à responsabilização e ao vínculo manifestados na relação entre usuário e trabalhador de saúde.
Consideramos que essa é uma dimensão significativa no processo de humanização, interferindo no conforto e no bem-estar do paciente, desde que não seja vista de modo isolado, mas articulada às demais dimensões - políticas, administrativas e subjetivas - que compõem a humanização.
A temática humanização envolve questões amplas que vão desde a operacionalização de um projeto político de saúde calcado em valores como a cidadania, o compromisso social e a saúde como qualidade de vida, passando pela revisão das práticas de gestão tradicionais até os microespaços de atuação profissional nos quais saberes, poderes e relações interpessoais se fazem presentes. Assim, é necessário compreender a humanização como temática complexa que permeia o fazer de distintos sujeitos.
Compreendemos que a humanização dos serviços de saúde implica em transformação do próprio modo como se concebe o usuário do serviço - de objeto passivo ao sujeito, de necessitado de atos de caridade àquele que exerce o direito de ser usuário de um serviço que garanta ações técnica, política e eticamente seguras, prestadas por trabalhadores responsáveis. Enfim, essa transformação refere-se a um posicionamento político que enfoca a saúde em uma dimensão ampliada, relacionada às condições de vida inseridas em um contexto sociopolítico e econômico.
No processo de humanização do atendimento em saúde/enfermagem, compreendemos que, diferentemente da perspectiva caritativa que aponta o trabalhador como possuidor de determinadas características previamente definidas e até idealizadas, é fundamental a sua participação como sujeito que, sendo também humano, pode ser capaz de atitudes humanas e "desumanas" construídas nas relações com o outro no cotidiano.
Nesse contexto, é fundamental não perder de vista a reflexão e o senso crítico que nos auxiliem no questionamento de nossas ações, no sentido de desenvolver a solidariedade e o compromisso.

Prof. Esp Administrador Alcenisio Técio Leite de Sá

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