quinta-feira, 11 de maio de 2017

O Direito de Vizinhança no Novo Código Civil
1. Introdução

O direito de vizinhança é o ramo do direito civil que se ocupa dos conflitos de interesses causados pelas recíprocas interferências entre propriedades imóveis próximas. Não há necessidade, como se sabe, de serem as propriedades imóveis contíguas; basta serem próximas para que possa ter lugar a interferência, que será, então, coibida pelas normas protetoras dos direitos de vizinhança.

Portanto, trata-se de normas que tendem a compor, a satisfazer os conflitos entre propriedades opostas com o objetivo de tentar definir regras básicas da situação de vizinhança. Busca-se, como disse, a satisfação de interesses de proprietários opostos.

2. Características do direito de vizinhança

São características dos direitos de vizinhança, em primeiro lugar, regular situações entre proprietários, estabelecendo, nesse sentido, limitações, restrições ao uso da propriedade, ou seja, trata-se aqui de deveres criados pela lei.

Uma outra característica do direito de vizinhança é que nesse tema não se busca criar vantagens para os proprietários, para qualquer prédio, ao contrário, visa-se tão-somente a evitar prejuízos. Daí essas restrições serem denominadas pela doutrina restrições defensivas. As restrições, no direito civil, podem decorrer também da autonomia privada. Como exemplo de restrição negocial, nós temos as servidões que, ao contrário do direito de vizinhança, visam a conferir justamente maiores

Mais uma característica do direito de vizinhança: procura-se, mediante as normas que compõem as relações de vizinhança, coibir as interferências indevidas nos imóveis vizinhos. Hoje em dia é adotado pela doutrina o termo interferência, que substituiu o termo anterior - imissão - por se entender que este último possui um significado algo material, concreto, palpável. Por isso, com a evolução do direito de vizinhança, o termo técnico que significa o incômodo, o distúrbio indesejado passou a ser interferência, para se ampliar a possibilidade de defesa do proprietário diante das ingerências não corpóreas, não palpáveis.vantagens para os proprietários, para os prédios dominantes. A servidão, portanto, se distingue do direito de vizinhança, seja pela fonte, seja pela finalidade. Pela fonte, porque as servidões têm sempre fonte convencional ou contratual; e pela finalidade, porque as servidões visam à criação de vantagem para a propriedade dominante, enquanto que a vizinhança surge sempre da lei, por meio de normas imperativas que visam a evitar prejuízos.

Por outro lado, essas interferências devem ser sempre indiretas ou mediatas, decorrentes, portanto, da própria utilização do imóvel vizinho, das proximidades. Nunca deverá ser uma interferência direta ou com esse fim; caso contrário, não se está em sede de direito de vizinhança, mas sim de ato ilícito. Se, por exemplo, o particular atira uma pedra em imóvel vizinho, esta situação independe das regras de vizinhança para a sua composição, pois se trata mesmo de ato ilícito e será sancionado como tal. Por outro lado, noutro exemplo, se em exploração de uma pedreira, voam fragmentos para a propriedade próxima, aí sim, inserem-se as normas do direito de vizinhança.

O tema liga-se diretamente à função social da propriedade, de índole constitucional, que permeia toda a estrutura do direito de propriedade.

Hoje em dia, já é quase pacífico que a propriedade tem – ao lado do seu aspecto estrutural, formado por seus elementos econômico e jurídico (elemento econômico, ou interno, é a senhoria, a possibilidade de usar, fruir e dispor e o elemento jurídico, ou externo, é a possibilidade de repelir as ingerências alheias) – um aspecto funcional, por força de ditame constitucional, que deve permear os aspectos econômicos e jurídicos do instituto.

O fenômeno da urbanização, do desenvolvimento das cidades, torna também mais e mais vasto o campo de incidência dos conflitos de vizinhança, sobretudo em edifícios de apartamentos, os condomínios regulamentados pela Lei 4.591/64 e pelo novo Código Civil. A esse propósito, aliás, o Código de 2002, em passagem que ainda não mereceu maior atenção da doutrina, erigiu como dever do condômino “dar às suas partes a mesma destinação que tem a edificação, e não as utilizar de maneira prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes” (artigo 1.336, IV).

3. Parte geral do direito de vizinhança

Vamos abordar aqui, em primeiro lugar, o que se denomina de parte geral dos direitos de vizinhança, que são as normas que vão definir a possibilidade de uso da propriedade, os limites a esse uso e quais as interferências que serão coibidas.

Nesse primeiro momento, vamos procurar definir quais sejam essas interferências que devem ser tolhidas, reprimidas, dentro desse aspecto geral, demarcando a diferença para com as atividades que são toleradas, admitidas, para depois, em um segundo momento, ingressarmos nas regras especiais dos direitos de vizinhança, destacando, desde já, que o novo Código consagrou, em grandes proporções, o que vem sendo desenvolvido pela jurisprudência e também a tese do Prof. San Tiago Dantas, que é a origem e o melhor trabalho de vizinhança em nosso território, em nossa literatura jurídica e que ganhou larga aplicação, pacificando verdadeiramente os tribunais.

Costuma-se dizer que interferências sempre haverá; o simples fato do convívio entre propriedades próximas já é, por si só, um motivo de acirramento de ânimos e, portanto, costuma-se até definir a relação de vizinhança como uma relação de confronto e não de cooperação, onde a satisfação do interesse de um proprietário implica restrições ao interesse do proprietário vizinho. Então, se interferências sempre haverá, o que resta é distinguir quais são as consideradas lícitas e que poderão ser praticadas, daquelas que, ao contrário, não têm esse caráter e devem ser sancionadas, reprimidas pelo ordenamento jurídico.

San Tiago Dantas já afirmava, na sua tese de cátedra, que o direito de vizinhança não tolera soluções unilaterais, sob pena de se aniquilar o direito de uma das partes - ou se tolhe a atividade e se priva o titular da propriedade de seu uso, da sua utilização, que consiste em elemento integrante da senhoria, do conteúdo econômico da propriedade, ou, por outro lado, caso se permita esse uso, pode-se estar afetando diretamente a propriedade próxima, que terá, já por sua vez, a sua utilização comprometida pela interferência do vizinho. Logo, em tema de direito de vizinhança, a solução deve ser, preferencialmente, uma solução bilateral.

Voltando à questão central: quais interferências devem ser coibidas? Esse aspecto da parte geral do direito de vizinhança estava previsto no art. 554 do Código Civil de 1916, dispositivo que se constitui em uma das poucas cláusulas gerais do antigo Código Civil. Esse artigo, de fato, fixa verdadeira cláusula geral cujo conteúdo, como se sabe, amolda-se a permitir a evolução do direito e a construção de critérios seguros em cada etapa da evolução sócio-econômica que se apresenta em nosso país. Dita cláusula geral, de certa forma, é preservada na sua essência, no novo Código Civil, mas ela é desdobrada em três dispositivos: vale dizer, o artigo 554  do Código de 1916 desdobra-se, portanto, nos artigos 1277, 1278 e 1279 do Código de 2002 e, nesse sentido, na busca de se distinguir quais são as interferências que devam ser coibidas daquelas que devem ser permitidas e toleradas, é que foram historicamente surgindo as teorias do direito de vizinhança. Vejamos as principais delas.

3.1    Principais teorias do direito devizinhança

A primeira teoria que se propôs a cuidar da questão foi a teoria de Spangenberg, romanista alemão que em 1826, com base na experiência do Direito Romano, sustentava a vedação das chamadas imissões corpóreas, as que eram palpáveis, portanto. Permitia-se ao proprietário vizinho qualquer atividade, contanto que o incômodo não fosse causado por algo de material, e nessa teoria, como proibição à imissão corpórea, se inseriam a água, a fumaça e a poeira, consideradas interferências corpóreas e nocivas à propriedade.

A essa teoria opôs-se a crítica de que, por apenas alcançar as imissões corpóreas, excluía os rumores, os barulhos e os maus cheiros, que freqüentemente interferem na propriedade vizinha. Essa tese da imissão material acabou sendo completamente refutada, já no século XIX, pela falta de um critério seguro para se estabelecer a distinção entre as imissões corpóreas e as incorpóreas.

A segunda teoria que se propôs a solucionar a questão foi a teoria do uso normal, de Ihering, em 1862. Ihering procurava diferenciar os casos em que a interferência devesse ser suportada, daqueles nos quais ela devesse ser repelida. Para isso propôs, então, um standard do uso normal da propriedade, e para se aferir esse uso normal era necessário perquirir os aspectos ativo e passivo do uso da propriedade.

Sob o aspecto ativo, é necessário saber se a utilização da propriedade está dentro dos parâmetros já consagrados em determinada região. Por outro lado, sob o aspecto passivo, cabe avaliar a receptividade abstrata do homem normal, do homem médio, o que Ihering denominou de grau médio de tolerabilidade, naquela determinada época e localidade, no sentido de que esses standards são sempre relativos, flexíveis.

Tal teoria, consagrada pelo Código Civil Alemão (BGB), tem maior relevo entre nós, porque aplicada em nosso ordenamento desde o Código de 1916 (que, no particular, se inspirou no BGB), sendo mantida pelo Código de 2002. Aliás, importa salientar que o novo Código, ainda sob a influência da teoria em comento, alterou a denominação da seção destinada aos direitos de vizinhança, abandonando a expressão uso nocivo da propriedade para adotar a expressão uso anormal da propriedade.

Como desdobramento dessa teoria de Ihering, surge a subteoria do desequilíbrio, de Ripert, em 1902, que se assemelhava, por seu turno, à subteoria da pré-ocupação, de Demolombe. Para Ripert, o conflito de vizinhança estaria baseado em uma ruptura do equilíbrio que vigorasse em uma dada região. Esse rompimento seria causado pelo proprietário ou possuidor que iniciasse uma atividade não ajustada aos parâmetros das atividades normalmente desenvolvidas naquela localidade. Sobre ele, então, que rompia aquele equilíbrio, pesava a correspondente responsabilidade e, para se saber quando isto acontecia, Georges Ripert lançava mão do standard do uso normal, e a pré-ocupação é que definia o grau de normalidade. O que era normal? Normal era a utilização que se fazia naquela região, naquela localidade, naquela vizinhança. Essa teoria se constituiu em verdadeira arma da propriedade doméstica contra o surto de industrialização daquele momento, na medida em que as fábricas, naquelas circunstâncias, possuíam um alto grau de interferência nas propriedades vizinhas.
A terceira teoria que surge é a teoria da necessidade, de Bonfante. Ela surge justamente em contraposição à teoria do uso normal. O romanista italiano afirmava não ser correto concluir que o uso anormal deveria ser sempre coibido, pois há interesse social no desenvolvimento das indústrias, no progresso crescente.

Daí essa teoria, que nasce em contraposição à do uso normal, ter sido considerada a defesa da propriedade industrial, numa época de industrialização crescente. Uma fábrica, mesmo que causasse, com sua enorme quantidade de fumaça, interferência indevida nas propriedades vizinhas, poderia ter a manutenção da sua atividade garantida por força do que Bonfante denominava necessidade geral do povo, e com base nessa necessidade, o juiz deveria manter essas atividades. Diferente do que ocorreria, por exemplo, com uma lareira, pois se essa provocasse uma fumaça anormal, como ali só se estaria diante de uma situação de interesses particulares, a atividade deveria cessar.

Finalmente, entre nós, quem melhor sistematizou o assunto foi o Professor San Tiago Dantas. A sua tese de cátedra, apresentada à Faculdade Nacional de Direito em 1939, denominada “O Conflito de Vizinhança e Sua Composição”, é uma obra clássica, do conhecimento de todos. Este grande civilista, em sua teoria que depois denominou de teoria mista, propôs uma espécie de aliança, de combinação entre os principais subsídios das teorias de Ihering e de Bonfante.

A teoria mista de San Tiago, portanto, se baseia em dois princípios fundamentais. O primeiro é o da coexistência dos direitos, e se destina à situação onde vigore o interesse particular, ou seja, a orientar a vizinhança comum. O outro princípio é o da supremacia do interesse público. Esse segundo princípio governará a vizinhança industrial. Na hipótese de conflito, como deve atuar o magistrado na investigação de uso nocivo? Deve, em primeiro lugar, perquirir se o uso daquela propriedade que está em jogo é normal ou não. Se o uso for normal, a partir dos standards de Ihering, dos aspectos passivo e ativo do uso normal, ele produz interferências lícitas e o ato é considerado lícito e, como tal, deve continuar. Se o uso, no entanto, é considerado anormal dentro daqueles standards a gerar, então, incômodos por demais excessivos, deve-se pesquisar para se saber se tal atividade é necessária socialmente ou se é, ao contrário, desnecessária. Se a supremacia do interesse público legitimar esse uso excepcional, o juiz manterá os incômodos inevitáveis, ordenando, no entanto, que se faça cabal indenização ao prejudicado, correspondente, aqui, a uma espécie de expropriação de direito privado.

O juiz deve também, já dizia San Tiago, na medida do possível, buscar compatibilizar os interesses, ou seja, sempre que possível, o magistrado deveria (com base nas técnicas que vão se desenvolvendo para contornar os distúrbios causados por uma dada atividade) coibir aquela interferência mediante o emprego de filtros, de vedações acústicas, de equipamentos cada vez mais modernos que a impeçam. Esse deve ser o caminho prioritário a ser tomado. Se tal não for possível, todavia, passa-se à permissão da atividade com a indenização cabal; ou, se o interesse público não legitimar o uso excepcional da propriedade naquela região, é de mau uso que se trata e o juiz, então, irá mandar cessar a atividade.

3.2- A disciplina no Código de 2002: inovações e o conteúdo da cláusula geral

Essa teoria foi amplamente consagrada, seja em doutrina, seja pela jurisprudência de maneira geral, e agora foi incorporada expressamente no novo Código Civil, ganhando esse reconhecimento na redação do eminente mestre Prof. Ebert Chamoun, que foi o relator do anteprojeto nesse tema de direitos reais e vizinhança.
A leitura dos artigos 1.277 e 1.278 revela a adoção dos ensinamentos do Mestre San Tiago Dantas:
Art. 1.277. O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha. Parágrafo único: Proíbem-se as interferências considerando-se a natureza da utilização, a localização do prédio, atendidas as normas que distribuem as edificações em zonas, e os limites ordinários de tolerância dos moradores da vizinhança.
“Art. 1.278. O direito a que se refere o artigo antecedente não prevalece quando as interferência forem justificadas por interesse público, caso em que o proprietário ou o possuidor, causador delas, pagará ao vizinho indenização cabal”.
A leitura atenta desses dois dispositivos parece revelar que o artigo 1.277 regula aquilo que San Tiago denominou de interesse privado, interesse particular, ou seja, de estatuto da vizinhança comum, estando nitidamente presente em seu teor a teoria do uso normal, de Ihering. Por seu turno, o artigo 1.278 cuida da vizinhança industrial, em que prevalece o interesse público, com base na teoria da necessidade, de Bonfante.

Também o artigo 1.279 (cujo teor, no entanto, se deve muito mais ao trabalho da jurisprudência) tem a sua origem na obra de San Tiago Dantas. O referido dispositivo legal dispõe: “Ainda que por decisão judicial devam ser toleradas as interferências, poderá o vizinho exigir a sua redução, ou eliminação, quando estas se tornarem possíveis”. Note-se que, em sendo possível, sempre devem ser tomadas as medidas necessárias para reduzir ou mesmo eliminar as interferências. Se, quando a questão vier colocada, for possível ao magistrado lançar mão desses artifícios, isso deve ser feito. Se não, sem embargo da determinação para que as interferências prevaleçam, se, em um momento futuro for possível, pelo desenvolvimento tecnológico, o emprego dessas técnicas, aí sim, não obstante aquela determinação judicial, o proprietário, ou possuidor, terá direito à aplicação desses mecanismos de redução.

Cumpre destacar, outrossim, um outro aspecto que me parece fundamental: o conteúdo da cláusula geral de vizinhança, à luz do texto do artigo 1.277 do novo Código. Como bem destacado pelo Professor Gustavo Tepedino, o preenchimento desse conteúdo há de ser feito sob os ditames da carga axiológica constitucional. De fato, o magistrado deverá perquirir a função social, o atendimento ao meio ambiente, a dignidade da pessoa humana, enfim todos os valores que são carreados pela Constituição, para que verifique se, naquele determinado caso, o exercício é nocivo, se provoca interferências, melhor dizendo, que devam ser coibidas. Já o parágrafo único contém em seu teor diretrizes para dar algum conteúdo à cláusula geral, como visto. Louvável a orientação. Porém, a integração somente se completa mediante o recurso à fonte constitucional.

Para finalizar a abordagem acerca da parte geral da vizinhança, ponhamse em destaque as inovações desse conjunto de artigos, quando comparados com o Código anterior. Os artigos 1.278 e 1.279 do Código Civil de 2002, já vistos, não encontram correspondentes no Código Civil de 1916, e quando do cotejo do artigo 1.277 com o artigo 554 do Código de 1916, seu correspondente no Direito anterior, merecem ser destacadas três alterações, além da novidade trazida no parágrafo único.
Em primeiro lugar, a substituição de “inquilino” por “possuidor”. O Código anterior afirmava “o proprietário ou inquilino de um prédio tem direito de impedir que o mau uso da propriedade vizinha(...)”. Em redação bastante melhorada, contempla-se agora, também como gênero, o “possuidor”, porque o que importa é a posse, a relação direta com o imóvel, seja proprietário, usufrutuário, locatário, comodatário, o que for. Esta novidade reflete a exegese que já vigorava em relação ao alcance do artigo 554 do Código de 1916.

A segunda alteração de destaque é a utilização do termo “interferências”. O texto fala em “fazer cessar as interferências prejudiciais à saúde, à segurança, ao sossego”, o que reflete a orientação mais técnica da doutrina e da jurisprudência, como visto anteriormente.

O terceiro aspecto que merece menção está contido na parte final do caput do artigo 1.277. É a afirmação de que tais interferências devem ser “provocadas pela utilização de propriedade vizinha”. Quer dizer, trata-se da interferência mediata, a qual, como já averbamos ao tratar das características do direito de vizinhança, não se confunde com eventuais interferências diretas, dolosas, deliberadamente praticadas, sem relação com a utilização da propriedade vizinha. Repita-se o exemplo da pedra que é intencionalmente lançada no imóvel vizinho, quebrando uma vidraça. Isto é um ato ilícito, e o dano dele resultante será tratado como tal.
Assim terminamos essas considerações iniciais sobre a parte geral do direito de vizinhança.

4. Parte especial do direito de vizinhança

Vamos adentrar agora nas observações acerca da parte especial do direito de vizinhança, composto por regras específicas que no Código Civil de 2002 dizem respeito aos seguintes temas: árvores limítrofes, passagem forçada, passagem de cabos e tubulações (que é uma novidade do Código), águas comuns, linha divisória e direito de tapagem, direito de construir e auxílio mútuo.

4.1    Árvores limítrofes

 Deste tema tratam os artigos 1.282 a 1.284 do Código de 2002. O novo Código em praticamente nada alterou a disciplina anterior, ou seja, continua valendo a presunção relativa, iuris tantum, de co-propriedade ou condomínio das árvores cujos troncos se encontrem nos limites de dois imóveis.
Além disso, as duas regras clássicas em termos de árvores limítrofes continuam contempladas, tanto a de cortar os ramos e raízes que invadem a propriedade vizinha, como a relativa à titularidade, a propriedade dos frutos daquelas árvores. Nesse sentido se afirma nos artigos 1.283 e 1.284 que os ramos pertencem ao dono, porém, o proprietário ou possuidor do imóvel vizinho, onde se deitam ramos ou raízes, pode podar ou cortar a árvore. É claro que essa poda observará também, necessariamente, as normas ambientais e administrativas aplicáveis à espécie.

Em relação aos frutos, enquanto na árvore estiverem, pertencerão ao proprietário onde ela deite raízes; porém, se caírem naturalmente, pertencerão ao proprietário do solo onde caírem. Se o proprietário ou possuidor do imóvel vizinho de alguma forma interferir para que os frutos caiam, e essa queda se consumar de forma não natural, ele não tem direito a esses frutos. Aqui, não há qualquer observação de relevância a ser feita nesse tema.

4.2     Passagem forçada

O segundo instituto que merece a nossa atenção é o da passagem forçada, prevista no Código de 2002 em um único artigo, o 1.285. O novo Código reproduz, nesse tema, a regra que permite ao proprietário encravado pela propriedade vizinha o acesso às vias públicas de maneira a preservar os contornos desse instituto. Essa passagem forçada constitui, como assinalam Caio Mário da Silva Pereira e o saudoso Darci Bessone, uma verdadeira desapropriação de direito privado.
Há vários aspectos dignos de nota, quanto à passagem forçada.

Em primeiro lugar, ela não se confunde com a servidão de passagem, que como se sabe, é resultante de consenso entre as partes, portanto, tem sua fonte em convenção e existe para melhorar o acesso, para se criar uma vantagem, um benefício para o imóvel, para o prédio dominante. Enquanto que a passagem forçada é matéria de direito de vizinhança, com fonte na lei e para evitar prejuízo, como foi dito anteriormente, com fundamento no princípio da solidariedade social.

O artigo 1.285, logo no caput, fixa um requisito importantíssimo ao instituto da passagem forçada: O dono do prédio que não tiver acesso à via pública, nascente ou porto.... Portanto, trata-se do imóvel encravado, sem saída. Há um amplo debate nos tribunais pátrios, a fim de se apurar qual a solução correta em hipóteses muito próximas à do encravamento, quando há alguma passagem, mas essa é precária, difícil, quase inacessível, se nessas hipóteses se considera ou não viável a utilização da passagem forçada. Majoritariamente, doutrina e jurisprudência se inclinaram pela resposta negativa, considerando que a passagem forçada impõe uma restrição à propriedade privada do vizinho, somente na medida em que o prédio não encontre qualquer possibilidade de saída é que ele terá direito a essa passagem. Só, portanto, quando literalmente encravada é que terá direito à passagem forçada, é o entendimento que prevalece. O juiz, então, diante dessa hipótese, vai fixar o rumo da passagem, de maneira a tentar minimizar o sofrimento e o ônus do prédio que tem de suportar a passagem do vizinho; e, assim que cessar essa situação de encravado, seja pela abertura de novas vias, seja pela aquisição de novas terras, cessa para o vizinho o dever de franquear a passagem.
O artigo 1.285, além disso, prevê uma indenização cabal, ou seja, tratase de direito de vizinhança oneroso. A onerosidade se faz presente na indenização cabal.

Dentre as novidades trazidas no bojo do art. 1.285, destaca-se a do § 1º, que cuida da hipótese onde o imóvel encravado possa alcançar a via pública por várias propriedades confinantes há várias possibilidades de acesso à via pública. Então, a regra é que sofrerá o constrangimento o vizinho cujo imóvel mais natural e facilmente se prestar à passagem. Como se vê, o novo Código estabelece regra de importância prática para a definição de qual será o imóvel que suportará a passagem forçada. Mas vale lembrar que este já era o entendimento consolidado da jurisprudência nesse assunto. As inovações contidas nos demais parágrafos do art. 1.285 não oferecem qualquer dificuldade para o intérprete, razão pela qual nos absteremos de as analisar nesta sede.

Finalizando este tópico, para não extrapolar o tempo que me foi concedido, importa registrar que alguns dispositivos que eram controversos no Código Civil de 1916 não encontraram paralelo no Código Civil de 2002, como os antigos artigos 561 e 562, que se dizia estarem erradamente posicionados, insertos entre as disposições referentes à passagem forçada quando, na verdade, se tratava de servidão.

4.3    Passagem de cabos e tubulações

Chegamos, então, ao terceiro instituto específico, que é a passagem de cabos e tubulações. Cuida-se, aqui, de uma novidade, uma inovação do Código de 2002. São dois artigos que procuram estabelecer normas diante das novas necessidades sociais da população, normas essas que se assemelham, na maioria dos seus contornos, ao instituto da passagem forçada, que acabamos de ver. Teceremos brevíssimas considerações acerca de sua disciplina legal.

Em primeiro lugar, trata-se de direito de vizinhança oneroso, também. O próprio caput do artigo 1.286 do Código se inicia estabelecendo a onerosidade, pela fórmula mediante recebimento de indenização que atenda também à desvalorização da área remanescente.

Em segundo, pode-se concluir que terá lugar a passagem de cabos e tubulações somente quando indispensável. É o que se depreende da parte final do caput desse mesmo artigo 1.286, que dispõe o seguinte: “Mediante recebimento de indenização que atenda, também, à desvalorização da área remanescente, o proprietário é obrigado a tolerar a passagem, através de seu imóvel, de cabos, tubulações e outros condutos subterrâneos de serviços de utilidade pública, em proveito de proprietários vizinhos, quando de outro modo for impossível ou excessivamente onerosa” (grifou-se).
Além disso, vai-se procurar estabelecer a passagem de forma menos gravosa à propriedade prejudicada, nos termos do parágrafo único do 1.286, que guarda coerência com a linha traçada pelo Código em todas as passagens acerca da situação de vizinhança: o enfrentamento bilateral dos problemas, a que nos referimos anteriormente. Por fim, se houver riscos potenciais, ou seja, se a passagem dos cabos ou tubulações trouxer riscos (como é o caso das tubulações de gás e dos cabos de energia elétrica), pode-se exigir, a teor do artigo 1.287, que também é novidade, a realização de obras de segurança.

4.4    Águas comuns

O Código, em seqüência, passa a disciplinar o instituto das águas comuns, e o faz entre os artigos 1.288 e 1.296. São muitas regras que o novo Código enuncia. Vamos tentar simplificá-las. A rigor, essas regras correspondem às contidas nos artigos 563 a 568 do Código Civil de 1916, os quais, no entendimento que prevalecia, haviam sido revogados pelo Código de Águas (Decreto nº 24.643, de 1934), que fixava a disciplina das águas comuns sem maiores alterações em comparação com o texto do Código de 1916.

Aqui, uma vez mais, a matéria não muda substancialmente o estado anterior do direito. O que há são algumas novidades, como ocorre sobretudo na regulamentação do aqueduto, nos artigos 1.293 a 1.296, e nas modificações trazidas nas regras gerais dos artigos 1.288 e 1.289.

A parte final do artigo 1.288 traz uma novidade, seguindo a ratio de buscar um tratamento bilateral dos direitos de vizinhança. Desde o regramento anterior já se dispunha que o dono do prédio inferior é obrigado a receber as águas que correm naturalmente para o seu imóvel. Noutras palavras, o proprietário a jusante é obrigado a receber as águas que correm do proprietário a montante, de maneira natural. Acrescentouse, ao final do artigo 1.288, que, assim como a propriedade inferior é obrigada a receber as águas que naturalmente correm da superior, o proprietário, ou o possuidor – como bem destaca o Código de 2002 –, do prédio superior, por seu turno, não pode agravar, mediante a execução de obras, a condição natural e anterior do prédio inferior.

O artigo 1.289 garante o direito de receber indenização pelas águas que correrem do prédio a montante quando nele cheguem artificialmente, ou quando aí forem colhidas. Aqui, a regra é diferente porque se trata de nascentes artificiais, então se fixa aqui a onerosidade, ou seja, aquele que é obrigado a suportar essas águas tem o direito à indenização, sempre que o outro não puder desviá-las. O parágrafo único afirma que, quanto à essa indenização, vai se abater o eventual benefício que aquela água venha por eventualidade a conceder ao prédio inferior.

4.5        Linha divisória e direito detapagem

O tema é extenso e controverso; vamos tentar suscitar suas diretrizes básicas.

Se há dúvida quanto ao delineamento da linha divisória, faz-se a busca de títulos de propriedade para determinar os lindes, os limites entre os prédios. Se não for possível, com base nesses títulos de propriedade, fixar-se a linha divisória, demarcando-se as fronteiras entre os dois prédios, como prevê o art. 1.297, lança-se mão dos critérios previstos no artigo 1.298.

O primeiro critério é o da comprovação da posse justa, que, de mais a mais, já era consagrada no sistema anterior. Não provada a posse de nenhum dos dois disputantes quanto aos limites ou, ao contrário, provada a composse, ou seja, não sendo possível se definir a questão com base na posse, lança-se mão de um segundo critério que é a novidade: a repartição em partes iguais. O Código anterior falava em repartição proporcional, o que suscitava os maiores problemas em encontrar-se o mensurador desta proporcionalidade. Seria proporcional às respectivas áreas dos imóveis? Proporcional ao número de vizinhos que estão interessados naquele pedaço de terra? Então, diante dessa ampla controvérsia que vigorava nessa matéria, vem o novo Código e simplifica, ou tenta simplificar, estabelecendo a divisão em partes iguais, restaurando enfim o que já constava do próprio Projeto de Clóvis Beviláqua, que deu origem ao Código de 1916.

O terceiro critério, também já consagrado, é aplicado na hipótese de não ser viável essa divisão em partes iguais, por não ser cômoda. Se assim for, o juiz irá determinar a adjudicação da propriedade a um dos imóveis – e é dada liberdade a ele para escolher, a lei não define parâmetros a tal determinação, indenizando assim o proprietário vizinho.

4.6    Direito de construir

O direito de construir fixa, no artigo 1.299, como regra geral, a possibilidade de o proprietário levantar a construção que lhe aprouver. Em princípio, ele constrói como quiser, desde que respeitadas as normas do direito de vizinhança e também os regulamentos administrativos, normalmente emitidos pelo Poder Público Municipal no controle de zoneamento e de definição de utilização daquela propriedade imóvel.

Além dessa liberdade de construir, tolhida por esses dois aspectos, seja pela vizinhança, seja pelo Direito Administrativo, pelas normas sobretudo municipais atinentes a gabaritos, a recuos etc, há algumas regras específicas, também no Código Civil. A primeira delas é a das distâncias legais. O novo Código aumentou a distância mínima para a construção de edificações em relação aos limites entre imóveis rurais - era de um metro e meio no Código de 1916 e passou a ser de três metros no Código de 2002 (artigo 1.303). Portanto, hoje são três metros até o limite do terreno para erguer a construção rural.

A contrario sensu, como já se interpretava, o proprietário pode construir no seu imóvel urbano até o limite da divisória, mas a lei impede a abertura de janelas a menos de um metro e meio de terreno vizinho. Isso se mantém no novo Código, expressamente  (artigo 1.301); eis outra regra específica.

Os parágrafos do artigo 1.301, por seu turno, veiculam grandes novidades.

Dispõe o parágrafo primeiro: As janelas cuja visão não incida sobre a linha divisória, bem como as perpendiculares, não poderão ser abertas a menos de setenta e cinco centímetros”. Diminui-se pela metade a disposição do caput. Isso é uma novidade, contrariando até um entendimento sumulado pelo Supremo Tribunal Federal, que não distingue a vista oblíqua da direta, na abertura de janelas ou afins, naquela proibição de um metro e meio.

O parágrafo segundo também apresenta uma outra novidade de monta, que é estabelecer-se para as aberturas menores, que não são tecnicamente consideradas janelas (ou seja, medem menos de dez por vinte centímetros), que a permissão para a sua abertura está condicionada a que estas aberturas estejam a mais de dois metros de altura, para se evitar que se devasse o prédio vizinho, que se rompa a privacidade. No sistema anterior não havia esse requisito de altura, que, aliás, foi de inspiração do Código Civil Italiano.

Concluindo, o artigo 1.300 aduz outra regra específica, no sentido de que não se pode despejar águas diretamente sobre o vizinho. É uma fórmula mais genérica, melhorando-se a redação da disposição legal em relação à anterior correspondente. A depender das circunstâncias, poderá ser necessário o uso de calhas ou de qualquer mecanismo congênere a fim de evitar tal transtorno.

4.7    Auxílio mútuo

Por fim, cabe breve referência ao instituto do auxílio mútuo ou direito de ingresso na propriedade alheia que está previsto no artigo 1.313 do novo Código, apresentando os requisitos seguintes: deve ser temporário; deve se dar mediante prévio aviso; e deve ser indispensável o ingresso na propriedade vizinha.

Obviamente, se esse ingresso gerar dano ao vizinho, há que se fazer acompanhar da devida reparação. Essas eram as considerações que pude fazer dentro do limite do tempo que me foi designado. Agradeço a atenção de todos e me coloco à disposição para eventual debate.

CARLOS EDISON DO RÊGO MONTEIRO FILHO
Professor de Direito Civil da UERJ. Procurador do Estado/RJ

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