O golpe contra Dilma Rousseff
O afastamento da presidenta é sem dúvida o capítulo mais vergonhoso da
história política brasileira
O
afastamento definitivo de Dilma Rousseff da
Presidência da República é sem dúvida o capítulo mais vergonhoso da história
política brasileira. Acusada de praticar uma manobra contábil, as chamadas
“pedaladas fiscais”, contra ela não foram levantadas quaisquer suspeitas de
enriquecimento ilícito ou aproveitamento do cargo em benefício próprio, ainda
que sua vida, privada e pública, tenha sido vasculhada com lupa por seus
adversários. Se ela cometeu crime de responsabilidade, também o fizeram e
deveriam perder o cargo 16 dos 27 atuais governadores, que usaram o mesmo artifício
para fechar as contas em seus estados.
Mas,
evidentemente, a presidente Dilma Rousseff não foi levada a julgamento por
isso. As manifestações de rua contra seu governo, orquestradas por defensores
dos mais diversos interesses, muitos deles espúrios, levantavam bandeiras
anti-corrupção, porém alimentavam-se de ressentimento. Parte da população,
acostumada historicamente a usufruir dos mais amplos privilégios, nunca aceitou
dividir espaço com a camada mais pobre, destinada, em sua invisibilidade, a
manter-se apenas como uma espécie de reserva técnica de mão de obra
desqualificada. As poucas, mas importantes, mudanças nesse quadro, patrocinadas
pelos governos petistas, fermentaram uma reação de ódio e intolerância.
Assim,
com o claro objetivo de arrancar a qualquer custo o poder das mãos da presidente
Dilma Rousseff, as oposições, lideradas nas sombras pelo vice-presidente Michel Temer, passaram a articular
demonstrações de força. Por trás dos protestos “espontâneos” contra o governo
havia entidades como o Movimento Brasil Livre (MBL), financiado pelo DEM, PSDB,
SD e PMDB; Vem pra Rua, criado em 2014 por um grupo de empresários para apoiar
a candidatura do senador tucano Aécio Neves à Presidência da República; e
Revoltados On-Line, gerenciado pelo empresário Marcello Reis, que não esconde
sua simpatia pela ideia de intervenção militar e que possui ligações com o
deputado fascista Jair Bolsonaro (PSC-RJ), pré-candidato à Presidência da
República.
O
passo seguinte foi dado pelo então presidente da Câmara, deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ),
atualmente afastado por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), alçada na
qual é réu por crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Cunha tinha
interesse em negociar a manutenção de seu mandato, em perigo desde a
instauração, no dia 3 de dezembro, de um processo por quebra de decoro
parlamentar no Conselho de Ética da Casa. Indignado com a retirada de apoio do
PT à sua causa, Cunha deu andamento ao pedido de admissibilidade do impeachment contra a presidente Dilma Rousseff. No dia 17 de abril, o
plenário da Câmara, que entre seus 513 membros conta com 53 réus na Suprema
Corte, enquanto outros 148 parlamentares respondem a inúmeros crimes em
diversas instâncias, antecipou o destino inglório da nação.
Baseado
em um relatório de Antonio Anastasia (PSDB-MG), burocrata tornado político
pelas mãos do candidato derrotado em 2014, Aécio Neves, o Senado cassou o
mandato da presidente Dilma Rousseff. Do total de parlamentares que a
julgaram, 60% são suspeitos ou acusados de crimes que vão desde falsidade
ideológica até abuso de poder econômico. Um terço da Casa – 23 parlamentares –
responde a inquérito em ação penal no STF, entre eles nomes bastante conhecidos
como Cássio Cunha Lima (PSDB-PB), Fernando Collor (PTB-AL), Jader Barbalho
(PMDB-PA), Lobão Filho (PMDB-MA), Renan Calheiros (PMDB-AL) e Romero Jucá
(PMDB-RR).
Com uma coragem e altivez poucas vezes vistas na política brasileira, a presidente Dilma Rousseff enfrentou 14 horas de interrogatório nas dependências do Senado. Inutilmente, ela sabia, porque o resultado daquela farsa já havia sido decidido muito antes, nos bastidores, envolvendo as mais inconfessáveis negociações. Sentada em frente ao presidente do STF, Ricardo Lewandowski, Dilma não enfrentava somente o rancor da elite contrariada, mas também todos os preconceitos existentes contra as mulheres, principalmente aquelas que não aceitam submeter-se ao poder patriarcal. Blindada por uma força extraordinária, Dilma ousava afirmar que, como ser humano passível de equívocos, errou algumas vezes durante o exercício de seu mandato. Assentada em utopias, Dilma ousava afirmar que continua acreditando na luta por um Brasil mais justo. Somos medíocres, não atrevemos sonhar; somos hipócritas, não admitimos assumir nossas falhas. Cassar arbitrariamente o mandato da presidente Dilma Rousseff significou um ato de cinismo covarde contra o desejo manifestado nas urnas por 54.501.118 brasileiros. A isso se chama golpe de estado.
LUIS
RUFATTO (EL PAIS)
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