RESENHA CRITICA DE VIGIAR E PUNIR DE MICHEL FOUCAULT
O livro
começa pela narrativa da tortura, suplício e esquartejamento de um parricida,
em 1757. Pois bem, isso é o bastante para que eu faça minhas primeiríssimas
derivações, as quais servirão de intróito à “resenha”. Falemos da tortura
de Damiens, o assassino: o modo como ela foi feita, a agressividade nela
contida, o espírito de sua época, a animalidade, o mundo dicotômico em que se
inseria – tudo isso servirá de substrato para a tese a ser apresentada ao longo
do livro, qual seja, a de que essa tortura, com o tempo (isto é, ao longo dos
séculos XIX e XX), transmuta-se em outra coisa, transfere-se para outro lugar.
Não só passa do corpo para a “alma” (as aspas são minhas, e não de Foucault,
mas acredito que estejam bem colocadas – ver a citação 23 do livro, mais
abaixo): a tortura deixa também de ser prerrogativa de quem detém um poder
político que se sustenta fortemente na moral religiosa, no crivo religioso,
para passar a ser prerrogativa do poder legal, do poder educacional, do poder
psiquiátrico, do poder presente no trabalho etc. Em outras palavras, passa a
ser tortura disseminada, difusa.
Esse aspecto
difuso da tortura, sua disseminação pelos mais diversos setores de nossa vida
diária, já está, hoje, tão introjetado no que somos que sequer a percebemos. Ao
contrário, há, na sociedade ocidental contemporânea, esquisita e
esquizofrenicamente, um certo prazer em ser “torturado”, uma vontade de não ser
livre, de delegar poderes aos carrascos, que são muitos, e também difusos, mas
ainda tão sem luzes quanto aqueles carrascos caricatos, seja do Antigo Regime,
seja da Revolução – meros cumpridores de ordens. Estamos diante deles no
condomínio, no trabalho, no transporte público, nas ruas, na beira da praia –
até o campo, com sua atmosfera de amplidão libertária, tem o seu carrasquinho.
O Ocidente julga-se livre, mas está preso, muito preso…
Se o
aprisionamento torturante, hoje, não é o do corpo, mas o da alma, há-de se
buscar, na prática, o lugar de onde emanam os eflúvios de poder que agrilhoam
essa tal alma. Não é difícil perceber que boa parte deles, talvez a mais forte
e resistente em termos miasmático-prisionais (o quê?!), venha ainda do cerne e
da carne da Igreja (assim como de seus derivados: os embutidos pentecostais,
evangélicos, macedianos…). Cordeiros torturados em número crescente bradam seus
cânticos torturantes por todo o lugar, até mesmo em Copacabana (eis a cor local
do texto), enquanto prostitutas passam ao largo dos templos, desfilando pernas,
umbigos e bocas. A necessidade de sentir-se subjugado encontra facilmente,
assim, apesar da lascívia circundante, lugar de congregação. Sob o olhar
piedoso do padre/pastor e dos irmãos em Cristo, todos estão protegidos e
devidamente anulados. O espírito aprisionado entre as quatro paredes do Senhor
é espírito satisfeito. Afinal, fora dessas quatro paredes, não há mesmo nada, a
não ser o mundo, não é? Moldada a mente, ou espírito, ou alma, pela moral que
emana da Igreja, resta pouco a moldar. Contudo, a educação escolar, o mundo do
trabalho e o mundo paralelo da cultura/entretenimento/informação seriam, entre
outras frentes, três replicadores dessa moral, pondo-se, ainda que em outros
termos, contra o indivíduo, com a finalidade precípua, apesar de tácita, de
torná-lo ainda mais dócil, ou, por fim, de moldar os que não dão ouvidos ao
discurso religioso. Afinal quem não é religioso também precisa ser controlado.
Fecham-se as brechas.
A escola, já
pelo simples fato de dispor de um currículo, prega também verdades. Sua crença
é a de que, por meio de restrições e encaminhamentos, o indivíduo será
“devidamente” moldado. Uma vez moldado, será, então, entregue à sociedade “pronto
para o trabalho”. Neste, cumprirá docilmente sua jornada de oito horas,
contribuindo não só para sua dignificação própria, mas também para “o
enobrecimento da humanidade”, dizem. Findas as oito horas, paralelamente ao
trabalho, de maneira consecutiva, haverá algum tempo e espaço para o
prazer/lazer, o conhecimento e a percepção da realidade, todos eles regidos,
hoje, pela lógica da Publicidade, a qual aproxima – sem escrúpulos e sob
um fundo eminentemente quantitativo (leia-se quantificável) e quase nada
qualitativo – prazer/lazer de entretenimento, conhecimento de
cultura em sentido restrito e percepção da realidade de informação
jornalística. Desse caldeirão escola-trabalho-diversão, surgem os belos
indivíduos que nos cercam, como se fossem “carcereiros do bem” (a expressão é
minha). No aspecto diversão (deixarei a escola e o trabalho de fora, porque o
texto já se anuncia longo), esses carcereiros do bem atuam como moedeiros
falsos contumazes, mas julgam produzir somente dobrões de ouro. Tudo, para eles,
deve imediatamente ser convertido em algo quantificável – daí os processos
infantis em que incorrem, mesmo quando adultos maduros: “viajei mais do
que você durante as férias” (entretenimento quantificado); “sei mais
sobre Erasmo de Rotterdam do que você” (cultura em sentido restrito
quantificada); “estou mais bem informado do que você sobre a crise na
Europa” (informação quantificada). Devidamente quantificada, a vida ganha ares
de competição, e os moedeiros falsos sentem-se, sempre, na liderança. De fato,
são próceres da humanidade de cuja companhia devemos muito nos orgulhar.
Depois desse
longo intróito, passemos a trechos relevantes do livro, enfim. Estou usando a
edição da Vozes, tradução de Raquel Ramalhete. Todos os trechos abaixo são do
primeiro capítulo apenas. Após uma caminhada pela praia (sim, é um inverno
quente este), pretendo analisá-los. Imaginem vocês que meu scanner
quebrou e tive de digitar todos os trechos. Santa tortura a que me submeto em
nome do sagrado conteúdo deste site…
Trechos de “Vigiar e punir” (tradução de Raquel Ramalhete) compilados
por Vinicius Figueira, sem intenção comercial, para mera análise pessoal e
intransferível.
1. “Dentre
tantas modificações, atenho-me a uma: o desaparecimento dos suplícios. […]
Punições menos diretamente físicas, uma certa discrição na arte de fazer
sofrer, um arranjo de sofrimentos mais sutis, mais velados e despojados de
ostentação.” [p. 13]
2. “A
punição […] deixa o campo da percepção quase diária e entra no da consciência
abstrata […] a certeza de ser punido é que deve desviar o homem do crime […].”
[p.14]
3. “É a
própria condenação que marcará o delinqüente com sinal negativo e unívoco:
publicidade, portanto, dos debates e da sentença; quanto à execução, ela é como
uma vergonha suplementar que a justiça tem vergonha de impor ao
condenado.” [p. 15]
4. “A
execução da pena vai-se tornando um setor autônomo, em que um mecanismo
administrativo desonera a justiça.” [p. 15]
5. “E acima
dessa distribuição dos papéis se realiza a negação teórica: o essencial da pena
que nós, juízes, infligimos, não creiais que consista em punir; o essencial é
procurar corrigir, reeducar, ‘curar’”. [p. 15]
6. “Existe
na justiça moderna e entre aqueles que a distribuem uma vergonha de punir, que
nem sempre exclui o zelo: ela aumenta constantemente: sobre esta chaga pululam
os psicólogos e o pequeno funcionário da ortopedia moral.” [p. 15]
7. “De modo
geral, as práticas punitivas se tornaram públicas. Não tocar mais no corpo ou o
mínimo possível, e para atingir nele algo que não é o corpo propriamente. […] O
sofrimento físico, a dor do corpo não são mais os elementos constitutivos da
pena. O castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia
dos direitos suspensos. […] Um exército inteiro de técnicos veio substituir o
carrasco, anatomista imediato do sofrimento: os guardas, os médicos, os
capelães, os psiquiatras, os psicólogos os educadores.” [p. 16]
8. “O
emprego da psicofarmacologia e de diversos ‘desligadores’ fisiológicos, ainda
que provisório, corresponde perfeitamente ao sentido dessa penalidade
‘incorpórea’”. [p. 16]
9.
“Desaparece, destarte, em princípios do século XIX, o grande espetáculo da
punição física: o corpo supliciado é escamoteado; exclui-se do castigo a
encenação da dor. Penetramos na época da sobriedade punitiva. ” [p. 19]
10. “ A
redução do suplício é uma tendência com raízes na grande transformação de
1760-1840. […] Castigos como trabalhos forçados ou prisão – privação pura e
simples da liberdade – nunca funcionaram sem certos complementos punitivos
referentes ao corpo: redução alimentar, privação sexual, expiação física, masmorra.
”
11. “O
afrouxamento da severidade penal no decorrer dos últimos séculos é um fenômeno
bem conhecido dos historiadores do direito. Entretanto, foi visto, durante
muito tempo, de forma geral, como se fosse fenômeno quantitativo: menos
sofrimento, mais suavidade, mais respeito e ‘humanidade’. Na verdade, tais
modificações se fazem concomitantes ao deslocamento do objeto da ação punitiva.
[…] Se não é mais ao corpo que se dirige a punição, em suas formas mais duras,
sobre o que então se exerce? A resposta dos teóricos […] é simples, quase
evidente. Dir-se-ia inscrita na própria indagação. Pois não é mais o corpo, é a
alma. Marbly formulou o princípio fundamental: ‘que o castigo, se assim possa
exprimir, fira mais a alma do que o corpo’”. [p. 21]
12. “Momento
importante. O corpo e o sangue, velhos partidários do fausto punitivo, são
substituídos. Novo personagem entra em cena, mascarado. Terminada uma tragédia,
começa a comédia, com sombrias silhuetas, vozes sem rosto, entidades
impalpáveis. O aparato da justiça tem que se ater, agora, a esta nova
realidade, realidade incorpórea.” [p. 21]
13. “Muitos
crimes perderam tal conotação [de crime], uma vez que estavam objetivamente
ligados a um exercício de autoridade religiosa ou a um tipo de vida econômica;
a blasfêmia deixou de se constituir em crime; o contrabando e o furto doméstico
perderam parte de sua gravidade.” [p. 21]
14. “Sob o
nome de crimes e delitos, são sempre julgados corretamente os objetos jurídicos
definidos pelo código. Porém, julgam-se também as paixões, os instintos, as
anomalias, as enfermidades, as inadaptações, os efeitos de meio ambiente e de
hereditariedade. […] são as sombras que se escondem por trás dos elementos da
causa que são, na realidade, julgadas e punidas. […] o conhecimento do
criminoso, a apreciação que dele se faz, o que pode saber sobre suas relações
entre ele, seu passado e o crime, e o que se pode esperar dele no futuro.” [p.
22]
15. “A alma
do criminoso não é invocada no tribunal somente para explicar o crime e
introduzi-la como um elemento na atribuição jurídica das responsabilidades; se
ela é invocada com tanta ênfase, com tanto cuidado de compreensão e tão grande
aplicação ‘científica’, é para julgá-la, ao mesmo tempo que o crime, e fazê-la
participar da punição. ” [p. 22]
16. “O laudo
psiquiátrico, […] a antropologia criminal e o discurso da […] criminologia,
introduzindo solenemente as infrações no campo dos objetos suscetíveis de um
conhecimento científico, [dão] aos mecanismos da punição legal um poder
justificável não mais simplesmente sobre as infrações, mas sobre os indivíduos;
não mais sobre o que eles fizeram, mas sobre aquilo que eles são, serão ou
possam ser. Não mais simplesmente: ‘Quem é o autor [ do crime]?” Mas “Como
citar o processo causal que o produziu? Onde estará, no próprio autor, a origem
do crime? ”. [p. 23]
17.
“Admitiram que era possível alguém ser culpado e louco; quanto mais louco,
tanto menos culpado; culpado, sem dúvida, mas que deveria ser enclausurado e
tratado e não punido; culpado, perigoso, pois manifestamente doente etc. E a
sentença que condena ou absolve não é simplesmente um julgamento de culpa uma
decisão legal que sanciona: ela implica uma apreciação de normalidade e uma
prescrição técnica para uma normalização possível. O juiz de nossos dias –
magistrado ou jurado – faz outra coisa bem diferente de julgar. ” [p. 23]
18. “Ao
longo do processo penal, e da execução da pena, prolifera toda uma série de
instancias anexas: […] peritos psiquiátricos ou psicológicos, magistrados da
aplicação das penas, educadores, funcionários da administração penitenciária
fracionam o poder legal de punir[…]. A partir do momento em que se deixa a
pessoas que não são os juízes da infração o cuidado de decidir se o condenado
‘merece ser posto em semiliberdade ou em liberdade condicional, se eles podem
pôr um termo à sua tutela penal, são sem dúvida mecanismos de punição legal que
lhes são colocados entre as mãos e deixados à sua apreciação; juízes anexos,
mas juízes de todo modo.” [p. 24 e 25]
19.
“Resumindo: desde que funciona o novo sistema penal – o definido pelos grandes
códigos dos séculos XVIII e XIX – um processo global levou os juízes a julgar
coisa bem diversa do que crimes: foram levados em suas sentenças a fazer coisa
diferente de julgar; e o poder de julgar foi, em parte, transferido a
instâncias que não são as dos juízes da infração. A operação penal inteira se
carregou de elementos e personagens extrajurídicos. Pode-se dizer que não há
nisso nada de extraordinário, que é do destino do direito absorver pouco a
pouco elementos que lhe são estranhos. Mas uma coisa é singular na justiça
criminal moderna: se ela se carrega de tantos elementos extrajurídicos, não é
para poder qualificá-los juridicamente e integrá-los pouco a pouco no estrito
poder de punir; é, ao contrário, para poder fazê-los funcionar no interior da
operação penal como elementos não jurídicos; é para evitar que essa operação
seja pura e simplesmente uma punição legal; é para escusar o juiz de ser pura e
simplesmente aquele que castiga.” [p. 25]
20.
“Objetivo deste livro: uma história correlativa da alma moderna e de um novo
poder de julgar; uma genealogia do atual complexo científico-judiciário onde o
poder de punir se apóia, recebe suas justificações e suas regras, estende seus
efeitos e mascara sua exorbitante singularidade”. [nota minha: “conceito” de
genealogia da punição] [p. 26]
21. “A
relação entre os vários regimes punitivos e os sistemas de produção em que se
efetuam: assim, numa economia servil, os mecanismos punitivos teriam como papel
trazer mão de obra suplementar – e constituir uma escravidão “civil” ao lado da
que é fornecida pelas guerras ou pelo comércio.” [p. 28]
22. “Mas o
corpo também está diretamente mergulhado num campo político; as relações de
poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem [atacam], o marcam, o
dirigem o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias,
exigem-lhe sinais. Este investimento político do corpo está ligado, segundo
relações complexas e recíprocas à sua utilização econômica […] [A
constituição do corpo] como força de trabalho só é possível se ele está preso
num sistema de sujeição; o corpo só se torna útil se é ao mesmo tempo corpo
produtivo e corpo submisso. Essa sujeição não é obtida só pelos instrumentos da
violência e da ideologia; […] pode ser calculada, organizada, tecnicamente
pensada, pode ser sutil, não fazer uso de armas nem do terror, e no entanto
continuar a ser de ordem física.” [p. 28 e 29]
23 . “Não se deveria dizer
que a alma é uma ilusão, ou um efeito ideológico, mas afirmar que ela existe,
que tem uma realidade, que é produzida permanentemente, em torno, na superfície
[e] no interior do corpo, pelo funcionamento de um poder que se exerce sobre os
que são punidos – de uma maneira mais geral sobre os que são vigiados,
treinados e corrigidos, sobre os loucos, as crianças, os escolares, os
colonizados, sobre os que são fixados a um aparelho de produção e controlados
durante toda a existência. Realidade histórica dessa alma que, diferentemente
da alma representada pela teologia cristã, não nasce faltosa e merecedora de
castigo, mas nasce antes de procedimentos de punição, de vigilância, de
castigo e de coação.” [p. 31 e 32]
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